Brocardos latinos.
Correr os olhos em petições jurídicas é vez em quando deparar-se com vultos sorrateiros em latim. Em boa parte dos casos é de lei que o vulto encarne em palavras mal declinadas e seja escoltado por um impiedoso corretor automático que transforma o ablativo absoluto de inaudita altera parte em: pars.
Faz parte de um espalhafatoso jogo estilístico próprio
da prática jurídica, na qual pelo jeito é bonito falar de modo empolado e se revestir de uma pesadíssima indumentária de
ritos desnecessários, exatamente o que fim do ano passado assistíamos com um ministro do Supremo expondo sua indignação logo que uma advogada incorreu
na bobeira de deixar escapar um "vocês" durante sua sustentação oral.
Chamam-se brocardos latinos e têm raízes que vão dar longe, longe. Apesar de apontarem para o direito romano, muitos nem nos piores pesadelos de um paterfamilias existiriam: são, pelo contrário, compostos modernos besuntados de latim. O princípio do in dubio pro reo, por exemplo, pedra-angular do processo penal brasileiro, foi usado pela primeira vez num tratado italiano do século XVI. A lógica desses brocardos, de acrisolar em pérola algum conceito jurídico às vezes importante, data das chamadas regulae iuris, etapa final de uma prática comum entre os romanos antigos grosso modo análoga à da edição de súmulas pelos tribunais de hoje. Após uma longa sedimentação da análise de casos isolados, ela consistia na cunhagem de regras de aplicação geral que conseguiriam definir a coisa, o instituto, e ao mesmo tempo limitar seu alcance de aplicação.
Essas regulae iuris estão concentradas na seção 17 do livro 50 do Digesto. De um modo geral são fragmentos de enorme expressividade que concentram uma carga conceitual considerável. Logo no início, por exemplo, é possível encontrar uma definição do que é uma regra e uma descrição sumária do procedimento adotado pelo direito romano: non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat; "Da regra não se extraia o direito, mas do direito, tal como é, faça-se a regra". A tradução é de Dárcio Rodrigues, que, num dos melhores artigos sobre o assunto, destaca também que o ditado popular do "quem cala, consente", além de não ter nem de longe uma aplicação tão simplista no direito atual, ganhava contornos muito mais realistas já no Digesto (D 50.17.142): Qui tacet, non utique fatetur: sed tamen verum est eum non negare; "Quem cala certamente não confessa, contudo é verdade que não nega". O próprio princípio do in dubio pro reo citado acima tem um ancestral que diz que se deve favorecer mais o réu que a acusação (D 50.17.125): Favorabiliores rei potius quam actores habentur.
As regulae iuris permaneceriam vivas no estudo dedicado dos glosadores medievais, que viam nessas máximas e aforismos uma forma peculiar de aprendizado aplicando-os e contrastando-os a controvérsias jurídicas para fins de análise. Sua técnica de redação seguia o modelo daquilo que os romanos chamavam de sententia, tratada por Quintiliano no capítulo 5 do livro 8 das suas Instituições. Lá ele compara as sententiae dos antigos com aforismos e o γνώμη dos gregos. A sententia era basicamente uma frase ou expressão na qual o autor burilava o máximo da sua técnica e estilo com fins a chegar ao máximo efeito possível; lumina autem praecipueque in clausulis posita, "fulgores postos em especial no fim", como dito por Quintiliano.
O próprio termo "brocardo" vem de um monge medieval que num tratado de direito canônico recheou sua obra com máximas e aforismos. Ao longo dos séculos, a popularidade desse tipo de composição permaneceu viva e viva por conseguinte a noção de que uma curta expressão consegue acrisolar uma enorme energia conceitual. Os sermões de Vieira estão repletos de sententiae: "A mais estabelecida paz é trégua. Quando cessam batalhas, então se fabricam as máquinas", diz a abertura do sermão no sábado quarto da quaresma. Se hoje o que resta da ciência dos brocardos latinos é um manuseio insípido e ensebado de seus conceitos, nada muito diferente do que ocorre com infeliz frequência dentro do direito, à guisa do que assistimos ano passado durante o circo sobre a prisão após segunda instância, o problema é em parte nosso e em parte tem raízes muito antigas, especialmente depois que tomamos nota de que já durante a Idade Média o apreço excessivo aos brocardos latinos era criticado.
Chamam-se brocardos latinos e têm raízes que vão dar longe, longe. Apesar de apontarem para o direito romano, muitos nem nos piores pesadelos de um paterfamilias existiriam: são, pelo contrário, compostos modernos besuntados de latim. O princípio do in dubio pro reo, por exemplo, pedra-angular do processo penal brasileiro, foi usado pela primeira vez num tratado italiano do século XVI. A lógica desses brocardos, de acrisolar em pérola algum conceito jurídico às vezes importante, data das chamadas regulae iuris, etapa final de uma prática comum entre os romanos antigos grosso modo análoga à da edição de súmulas pelos tribunais de hoje. Após uma longa sedimentação da análise de casos isolados, ela consistia na cunhagem de regras de aplicação geral que conseguiriam definir a coisa, o instituto, e ao mesmo tempo limitar seu alcance de aplicação.
Essas regulae iuris estão concentradas na seção 17 do livro 50 do Digesto. De um modo geral são fragmentos de enorme expressividade que concentram uma carga conceitual considerável. Logo no início, por exemplo, é possível encontrar uma definição do que é uma regra e uma descrição sumária do procedimento adotado pelo direito romano: non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat; "Da regra não se extraia o direito, mas do direito, tal como é, faça-se a regra". A tradução é de Dárcio Rodrigues, que, num dos melhores artigos sobre o assunto, destaca também que o ditado popular do "quem cala, consente", além de não ter nem de longe uma aplicação tão simplista no direito atual, ganhava contornos muito mais realistas já no Digesto (D 50.17.142): Qui tacet, non utique fatetur: sed tamen verum est eum non negare; "Quem cala certamente não confessa, contudo é verdade que não nega". O próprio princípio do in dubio pro reo citado acima tem um ancestral que diz que se deve favorecer mais o réu que a acusação (D 50.17.125): Favorabiliores rei potius quam actores habentur.
As regulae iuris permaneceriam vivas no estudo dedicado dos glosadores medievais, que viam nessas máximas e aforismos uma forma peculiar de aprendizado aplicando-os e contrastando-os a controvérsias jurídicas para fins de análise. Sua técnica de redação seguia o modelo daquilo que os romanos chamavam de sententia, tratada por Quintiliano no capítulo 5 do livro 8 das suas Instituições. Lá ele compara as sententiae dos antigos com aforismos e o γνώμη dos gregos. A sententia era basicamente uma frase ou expressão na qual o autor burilava o máximo da sua técnica e estilo com fins a chegar ao máximo efeito possível; lumina autem praecipueque in clausulis posita, "fulgores postos em especial no fim", como dito por Quintiliano.
O próprio termo "brocardo" vem de um monge medieval que num tratado de direito canônico recheou sua obra com máximas e aforismos. Ao longo dos séculos, a popularidade desse tipo de composição permaneceu viva e viva por conseguinte a noção de que uma curta expressão consegue acrisolar uma enorme energia conceitual. Os sermões de Vieira estão repletos de sententiae: "A mais estabelecida paz é trégua. Quando cessam batalhas, então se fabricam as máquinas", diz a abertura do sermão no sábado quarto da quaresma. Se hoje o que resta da ciência dos brocardos latinos é um manuseio insípido e ensebado de seus conceitos, nada muito diferente do que ocorre com infeliz frequência dentro do direito, à guisa do que assistimos ano passado durante o circo sobre a prisão após segunda instância, o problema é em parte nosso e em parte tem raízes muito antigas, especialmente depois que tomamos nota de que já durante a Idade Média o apreço excessivo aos brocardos latinos era criticado.