Um parágrafo de Martha Batalha.
Acho no mínimo mais honesto por parte do crítico que, em vez de despejar juízos do galho mais alto, ponha os pés no chão e discorra devagarinho pra gente sobre o porquê gostou ou desgostou de algo, já que é só assim que o leitor pode, por exemplo, criticá-lo. Ao que tudo indica o juízo de valor não tem um solo lá muito firme sobre o qual se sustente, mas, se pelo menos um esforço puder ser feito para que a coisa não vire no mínimo uma bagunça, creio que embasar nossos juízos e se preocupar em dar uma explicação mais demorada é um passo interessante para que nossas opiniões deixem de parecer tão arbitrárias e, afinal de contas, fomentem o debate.
Gosto nessas horas sempre de lembrar um comentário feito pelo grande crítico britânico (britânico?) William Empson num livro porreta que ele publicou quando era mais novo do que eu e você. Diz algo como: toda forma de beleza não explicada me aborrece. Resume de forma admirável o que penso a respeito do esforço crítico: buscar deixar bem claro qual a minha opinião, nem tanto pra vedar as frestas do argumento e me sentir enfim livre de refutações incômodas, mas, antes, para que o leitor participe da minha reação prolongada, eventualmente contribuindo com um ponto diverso e eventualmente, por que não?, me fazendo confrontar o fato de que minha formação literária pelo jeito não é tão sólida como fantasio. O crítico literário muitas vezes é só isso: alguém que se expõe ao ridículo e erra em público.
É a abertura do segundo romance de Martha Batalha, a meu ver um dos melhores parágrafos de abertura dos últimos tempos. Deixe-me explicar o porquê acho isso.
O parágrafo começa com uma descrição seca do cenário, pontuando a data e o horário de maneira muito precisa e imitando a linguagem da meteorologia: "céu parcialmente nublado". É só depois que, na mesma frase - e o fato de tudo estar contido numa única frase é um aspecto importantíssimo -, ela começará a descrever a personagem de um jeito muito indireto, preferindo contar o que a personagem faz e deixar para o leitor que deduza seu estado mental, e dará partida num suspense meio manjado, mas muito bem aplicado aqui, de jogar primeiro a deixa do adjetivo "alheia" e só pouco mais à frente na frase dar o nome da personagem, Estela.
Se a descrição até então havia sido seca e mecânica, o que veremos em seguida é uma descrição firme e exata dos arredores. Apelar para o cheiro de bife passado na manteiga, por exemplo, é uma maneira habilidosa de fisgar o leitor usando do olfato, nem sempre algo muito simples ou usado com frequência pelos escritores, que tendem a optar muito mais para a visão e para a audição. Penso que a manteiga também ativa o paladar e o fato de que o bife tenha sido assado "há pouco" às três da tarde de sábado descreve bem o que é a rotina das famílias brasileiras aos fins de semana, com seus almoços quase no meio da tarde. E então, a tacada de mestre: a voz em uníssono dos muitos Silvio Santos nas tvs. Poucas vezes um detalhe me deixou tão empolgado. Foi pincelado com maestria, destilando a dose exata de sarcasmo numa descrição minuciosa: a partir dessa informação, podemos presumir que se trata de um prédio residencial pacato numa cidade brasileira qualquer, com suas inúmeras famílias assistindo televisão sintonizadas todas no mesmo canal, o tipo de situação que era absolutamente plausível encontrar numa tarde de sábado de 1968.
O quadro geral é patético. Digo pois o que se vê a seguir é a personagem Estela chorando desesperada por alguma decepção que só conheceremos nas páginas seguintes do romance. Por agora, ela chora, ela se desespera, ou, numa gradação sutil e muito bem elaborada, ela "mancha com choro e rímel". Isso é muito mais perspicaz e delicioso de imaginar do que dizer, simples e diretamente, que a personagem estava chorando desesperada. É preciso deixar que o leitor sinta a cena. O que se espera de um narrador é isso: narrar bem, contar a história, expô-la com os elementos suficientes para que desenhemos o quadro mais nítido possível até com a menor caixa de lápis de cor. Martha Batalha quer que imaginemos a cena e reconstruamos o quadro psicológico da personagem pelos detalhes, a exemplo de quando nos põe a reencenar o movimento de Estela em: "Os pés calçados pendem para fora do colchão, até ela livrar-se dos saltos e encolher o corpo, levando os joelhos para junto do queixo".
O interesse que o leitor sente em saber mais sobre o desespero que assola a personagem, esse "caos da sua tristeza", só dá certo porque primeiro a autora descreve o cenário dos arredores com perícia, dando-nos do jeito mais curioso possível a dimensão real do tédio e do enfado de mais uma tarde de sábado daquele ano, e, no espaço da mesma frase, termina o périplo de sua câmera narrativa na imagem de Estela em posição fetal chorando na sua cama.
Gosto nessas horas sempre de lembrar um comentário feito pelo grande crítico britânico (britânico?) William Empson num livro porreta que ele publicou quando era mais novo do que eu e você. Diz algo como: toda forma de beleza não explicada me aborrece. Resume de forma admirável o que penso a respeito do esforço crítico: buscar deixar bem claro qual a minha opinião, nem tanto pra vedar as frestas do argumento e me sentir enfim livre de refutações incômodas, mas, antes, para que o leitor participe da minha reação prolongada, eventualmente contribuindo com um ponto diverso e eventualmente, por que não?, me fazendo confrontar o fato de que minha formação literária pelo jeito não é tão sólida como fantasio. O crítico literário muitas vezes é só isso: alguém que se expõe ao ridículo e erra em público.
Às três e vinte da tarde do sábado, 6 de janeiro de 1968, com ventos noroestes, céu parcialmente nublado e temperatura em declínio, alheia ao forte cheiro de bife passado há pouco na manteiga e à voz em uníssono dos muitos Silvio Santos nas tvs dos apartamentos próximos, Estela mancha com choro e rímel a fronha bordada do travesseiro novo. Os cabelos longos cobrem seu rosto, as unhas vermelhas agarram um lenço de linho. Os pés calçados pendem para fora do colchão, até ela livrar-se dos saltos e encolher o corpo, levando os joelhos para junto do queixo. Estela não pensa, só repete por quê, meu Deus, por quê, tentando encontrar no caos da sua tristeza o motivo de tanto desgosto.
É a abertura do segundo romance de Martha Batalha, a meu ver um dos melhores parágrafos de abertura dos últimos tempos. Deixe-me explicar o porquê acho isso.
O parágrafo começa com uma descrição seca do cenário, pontuando a data e o horário de maneira muito precisa e imitando a linguagem da meteorologia: "céu parcialmente nublado". É só depois que, na mesma frase - e o fato de tudo estar contido numa única frase é um aspecto importantíssimo -, ela começará a descrever a personagem de um jeito muito indireto, preferindo contar o que a personagem faz e deixar para o leitor que deduza seu estado mental, e dará partida num suspense meio manjado, mas muito bem aplicado aqui, de jogar primeiro a deixa do adjetivo "alheia" e só pouco mais à frente na frase dar o nome da personagem, Estela.
Se a descrição até então havia sido seca e mecânica, o que veremos em seguida é uma descrição firme e exata dos arredores. Apelar para o cheiro de bife passado na manteiga, por exemplo, é uma maneira habilidosa de fisgar o leitor usando do olfato, nem sempre algo muito simples ou usado com frequência pelos escritores, que tendem a optar muito mais para a visão e para a audição. Penso que a manteiga também ativa o paladar e o fato de que o bife tenha sido assado "há pouco" às três da tarde de sábado descreve bem o que é a rotina das famílias brasileiras aos fins de semana, com seus almoços quase no meio da tarde. E então, a tacada de mestre: a voz em uníssono dos muitos Silvio Santos nas tvs. Poucas vezes um detalhe me deixou tão empolgado. Foi pincelado com maestria, destilando a dose exata de sarcasmo numa descrição minuciosa: a partir dessa informação, podemos presumir que se trata de um prédio residencial pacato numa cidade brasileira qualquer, com suas inúmeras famílias assistindo televisão sintonizadas todas no mesmo canal, o tipo de situação que era absolutamente plausível encontrar numa tarde de sábado de 1968.
O quadro geral é patético. Digo pois o que se vê a seguir é a personagem Estela chorando desesperada por alguma decepção que só conheceremos nas páginas seguintes do romance. Por agora, ela chora, ela se desespera, ou, numa gradação sutil e muito bem elaborada, ela "mancha com choro e rímel". Isso é muito mais perspicaz e delicioso de imaginar do que dizer, simples e diretamente, que a personagem estava chorando desesperada. É preciso deixar que o leitor sinta a cena. O que se espera de um narrador é isso: narrar bem, contar a história, expô-la com os elementos suficientes para que desenhemos o quadro mais nítido possível até com a menor caixa de lápis de cor. Martha Batalha quer que imaginemos a cena e reconstruamos o quadro psicológico da personagem pelos detalhes, a exemplo de quando nos põe a reencenar o movimento de Estela em: "Os pés calçados pendem para fora do colchão, até ela livrar-se dos saltos e encolher o corpo, levando os joelhos para junto do queixo".
O interesse que o leitor sente em saber mais sobre o desespero que assola a personagem, esse "caos da sua tristeza", só dá certo porque primeiro a autora descreve o cenário dos arredores com perícia, dando-nos do jeito mais curioso possível a dimensão real do tédio e do enfado de mais uma tarde de sábado daquele ano, e, no espaço da mesma frase, termina o périplo de sua câmera narrativa na imagem de Estela em posição fetal chorando na sua cama.