Harry Potter algum dia será um clássico?
Vejo um pessoal meio esperançoso por vezes defendendo a tese de que algum dia Harry Potter será visto como um clássico, no que enfim teríamos o prazer de ler as aventuras do bruxinho nos elegantes volumes encadernados da coleção Pléiade francesa. Se vai ou não vai, é futurologia aplicada pura e simples, de modo que só nos resta especular e pôr um pouquinho os pés no chão.
Eu responderia mais ou menos o seguinte: a saga continua a ser lida mais de duas décadas depois do seu lançamento, o que não deixa de ser um bom sinal. O suficiente, contudo, para que seja um clássico da mesma maneira que O Vermelho e o Negro é um clássico? Não. Se Harry Potter vier a se tornar um clássico, será de uma maneira um pouco mais decepcionante do que a esperança de quem cresceu lendo seus livros tende a depositar. Digo decepcionante pois não será clássico no sentido carregado do termo, como uma obra de referência e de modelo para outras posteriores. Clássico no sentido clássico, na esteira do que Aulo Gélio faz a certa altura de suas Noites áticas ao distinguir o scriptor classicus do scriptor proletarius usando, para tanto, um critério romano de recrutamento militar que dividia as classes sociais entre aquelas de primeira linha, classici ou clássicas propriamente ditas, e as de segunda linha, infra classem. Se Harry Potter vier a ser clássico, será simplesmente no sentido brando e volúvel de que permaneceu lido e que pelo jeito marcou de modo muito forte com seu ferrete o couro da nossa geração.
Ora: mesmo obras que continuaram a ser lidas por décadas a fio podem parar de ser de uma hora pra outra. Uma vez que o único critério para que permaneçam relevantes é que sua vendagem seja gorda a ponto de permitir ao editor que programe viagens anuais às Bahamas, então uma reviravolta no mercado pode espanar a obra sem muita dificuldade. Se Harry Potter hoje vende livros, quadrinhos, jogos de tabuleiro e um conjunto de cuecas infantis, é porque o mercado injeta uma dosagem considerável de ativos para que o universo da saga continue a ser vendido, e isso não deixa de ser uma maneira de forçar sua sobrevivência por mais um tempo. Difícil é saber se sem essa injeção cavalar de somas monetárias em suas veias, a obra permaneceria.
Pois aqui é preciso levar em conta que um clássico, no sentido carregado do termo, não é formado apenas porque leitores suspiram de paixão lendo seus livros favoritos. O que torna um livro um livro clássico, no sentido que chamei de "carregado", é sucintamente um processo de sedimentação de valor. É quando leitores realizam apreciações diretas ou indiretas de sua qualidade, isto é, conseguem realizar defesas enfáticas de sua qualidade artística. Por isso que para a formação de um clássico não basta recensear a opinião do maior número possível de leitores com base num sistema singelo de estrelinhas; é preciso consultar a opinião de bons leitores, isto é, leitores interessados em realizar interpretações e defesas enfáticas a respeito da qualidade daquele texto. Defesas enfáticas: não disciplinas de verão que parecem estar mais preocupadas em trocar farpas com o cânone do que colocar a obra em pé de igualdade com o que de melhor já foi feito dentro daquele gênero.
Isso eu simplesmente não vejo leitores de Harry Potter fazendo isso. Parecem fiar-se única e exclusivamente no argumento de que se todo mundo anda lendo até hoje, é o suficiente - e não me entendam mal; em alguns sentidos é sim o suficiente para que venhamos a reconhecer como uma obra clássica, agora no sentido menos "carregado", uma obra que resume em cápsula o que é parcela do gosto artístico do nosso tempo, o que, bem ou mal, não quer dizer muita coisa, assim como não quer dizer muita coisa saber que o suspense caricaturesco de Tom Clancy ajudou a moldar o imaginário da geração de nossos pais. Não basta apenas que a obra seja vista como um reflexo particularmente cristalino do que é o gosto médio das pessoas. Isso nem de longe nos permite concluir por sua excelência artística, afinal de contas os livros mais badalados de autoajuda também serão vistos daqui a um século como sintoma do que é parcela do nosso gosto hoje.
Naturalmente não ignoro que fatores, digamos, extra-literários (afinal é duvidoso saber até que ponto eles são propriamente exteriores) influenciam a apreciação. Nem, claro, parto do princípio que a chancela de clássico seja maquinação de algum crítico influente o bastante. Penso que abranjo parte considerável dessas objeções pela escolha da palavra "sedimentação". O que não arredo pé é: só pode ser considerado clássico no sentido verdadeiramente completo do termo, que é o que com frequência usamos quando vamos discutir a seu respeito, o que recebeu toda uma apreciação crítica ao longo do tempo. É isso. Discussões laterais podem e devem desnudar mecanismos escusos por trás do cânone, mas não nos fazem concluir que o clássico passa a ser somente o que a maior parte das pessoas lê, já que isso nos levaria quando muito a um conceito mais fraco de clássico, que passa longe da excelência e do mérito artístico propriamente ditos.
Um exercício de comparação será útil. Na mesma época em que o primeiro volume de Harry Potter saía, outro livro muito aguardado no cenário literário americano também era dado a lume: Infinite Jest. Escrito por David Foster Wallace, o livro se tornou uma espécie de clássico contemporâneo, alcunha certo modo contraditória mas que expõe com clareza o entusiasmo gerado a respeito do livro. Diversos críticos elogiaram o requinte de sua elaboração artística e a agudeza de suas análises. Quando, décadas depois, chegou ao Brasil, a editora que o recebeu chamou um de seus melhores tradutores para enfrentar a tarefa, o mesmo que traduziu o grande clássico da modernidade (Ulysses) anos atrás, e lhe deu um tratamento editorial de luxo. Percebam: tanto o Infinite Jest quanto Harry Potter continuam a ser lidos; não sob as mesmas cifras astronômicas, é claro, mas continuam a vender lá suas brochuras. A diferença é que enquanto o primeiro recebeu defesas enfáticas a respeito de sua qualidade, passando pelo crivo de alguns dos críticos mais exigentes e influentes de nosso tempo (podemos tomar como exemplo o recém-falecido Harold Bloom), Harry Potter não se saiu bem quanto ao mesmo quesito. Até pelo contrário. A crítica que Bloom escreveu ao primeiro livro da saga foi a um só tempo devastadora e sagaz, por exemplo ao apontar que suas origens estariam num clássico inglês de segunda linha publicado em meados do século XIX: Tom Brown's School Days, de Thomas Hughes.
Se algum dia, portanto, vier a ser clássico, só poderá vir a ser clássico no sentido carregado do termo se os leitores se puserem a empreender defesas de sua qualidade, coisa a meu ver um tanto improvável de acontecer, especialmente considerando a falta de vontade do público, mais preocupado em desfiar um rosário de reminiscências do que ler a saga com olhos de lince. E não que me queixe. É esperável. E normal. Muitos são marinheiros de primeira viagem e muitos não estão nem mesmo tão preocupados assim com essa coisa toda sobre literatura ser tecnologia de ponta. Querem apenas um escape para a realidade estafante dos dias, e, enquanto a saga dos bruxinho puder proporcionar-lhes esse remédio, tanto melhor - até pelo menos que outra se mostre mais capaz de fazer o mesmo.
pós-escrito: Poucas horas da postagem, o Raphael veio nos comentários me alertar que o exemplo do Bloom é muitíssimo problemático. De fato: mais até do que problemático, serve para que eu prove um pouco do meu veneno. Numa entrevista de 2011 ele diz que o Infinite Jest é simplesmente ilegível, um livro terrível diante do qual Stephen King é um Cervantes praticamente. É difícil dizer o que levou o Bloom a uma opinião assim. A certa altura do romance há um comentário ácido sobre um professor que realizava uma análise para seus alunos embasada na angústia da influência, chamada pelo narrador de "reading stupefyingly turgid sounding shit". Pode ser que tenha alguma relação. De todo modo, foi um ato falho injustificável e no mínimo cômico, fruto, quem sabe, do jeito despretensioso com que levo as coisas por aqui.
Penso porém que as linhas gerais do texto permanecem de pé, afinal de contas ainda me parece óbvio que o Infinite Jest é um livro que tem recebido uma aclamação crítica muito maior que a saga do bruxinho, no que, claro, outros exemplos mais cuidadosos poderiam ser dados. Isso não quer dizer que eu em absoluto despreze os romances da Rowling, os quais, confesso, nunca cheguei nem mesmo a ler. Sou, até para ser sincero, indiferente quanto a isso, e não acho nem de longe que será o fim do mundo se algum dia Harry Potter vier a ser considerado um clássico no sentido carregado do termo. Minha única objeção é: para tanto, deve receber uma apreciação crítica enfática e não simplesmente se escudar por trás da vendagem reiterada dos livros.
Eu responderia mais ou menos o seguinte: a saga continua a ser lida mais de duas décadas depois do seu lançamento, o que não deixa de ser um bom sinal. O suficiente, contudo, para que seja um clássico da mesma maneira que O Vermelho e o Negro é um clássico? Não. Se Harry Potter vier a se tornar um clássico, será de uma maneira um pouco mais decepcionante do que a esperança de quem cresceu lendo seus livros tende a depositar. Digo decepcionante pois não será clássico no sentido carregado do termo, como uma obra de referência e de modelo para outras posteriores. Clássico no sentido clássico, na esteira do que Aulo Gélio faz a certa altura de suas Noites áticas ao distinguir o scriptor classicus do scriptor proletarius usando, para tanto, um critério romano de recrutamento militar que dividia as classes sociais entre aquelas de primeira linha, classici ou clássicas propriamente ditas, e as de segunda linha, infra classem. Se Harry Potter vier a ser clássico, será simplesmente no sentido brando e volúvel de que permaneceu lido e que pelo jeito marcou de modo muito forte com seu ferrete o couro da nossa geração.
Ora: mesmo obras que continuaram a ser lidas por décadas a fio podem parar de ser de uma hora pra outra. Uma vez que o único critério para que permaneçam relevantes é que sua vendagem seja gorda a ponto de permitir ao editor que programe viagens anuais às Bahamas, então uma reviravolta no mercado pode espanar a obra sem muita dificuldade. Se Harry Potter hoje vende livros, quadrinhos, jogos de tabuleiro e um conjunto de cuecas infantis, é porque o mercado injeta uma dosagem considerável de ativos para que o universo da saga continue a ser vendido, e isso não deixa de ser uma maneira de forçar sua sobrevivência por mais um tempo. Difícil é saber se sem essa injeção cavalar de somas monetárias em suas veias, a obra permaneceria.
Pois aqui é preciso levar em conta que um clássico, no sentido carregado do termo, não é formado apenas porque leitores suspiram de paixão lendo seus livros favoritos. O que torna um livro um livro clássico, no sentido que chamei de "carregado", é sucintamente um processo de sedimentação de valor. É quando leitores realizam apreciações diretas ou indiretas de sua qualidade, isto é, conseguem realizar defesas enfáticas de sua qualidade artística. Por isso que para a formação de um clássico não basta recensear a opinião do maior número possível de leitores com base num sistema singelo de estrelinhas; é preciso consultar a opinião de bons leitores, isto é, leitores interessados em realizar interpretações e defesas enfáticas a respeito da qualidade daquele texto. Defesas enfáticas: não disciplinas de verão que parecem estar mais preocupadas em trocar farpas com o cânone do que colocar a obra em pé de igualdade com o que de melhor já foi feito dentro daquele gênero.
Isso eu simplesmente não vejo leitores de Harry Potter fazendo isso. Parecem fiar-se única e exclusivamente no argumento de que se todo mundo anda lendo até hoje, é o suficiente - e não me entendam mal; em alguns sentidos é sim o suficiente para que venhamos a reconhecer como uma obra clássica, agora no sentido menos "carregado", uma obra que resume em cápsula o que é parcela do gosto artístico do nosso tempo, o que, bem ou mal, não quer dizer muita coisa, assim como não quer dizer muita coisa saber que o suspense caricaturesco de Tom Clancy ajudou a moldar o imaginário da geração de nossos pais. Não basta apenas que a obra seja vista como um reflexo particularmente cristalino do que é o gosto médio das pessoas. Isso nem de longe nos permite concluir por sua excelência artística, afinal de contas os livros mais badalados de autoajuda também serão vistos daqui a um século como sintoma do que é parcela do nosso gosto hoje.
Naturalmente não ignoro que fatores, digamos, extra-literários (afinal é duvidoso saber até que ponto eles são propriamente exteriores) influenciam a apreciação. Nem, claro, parto do princípio que a chancela de clássico seja maquinação de algum crítico influente o bastante. Penso que abranjo parte considerável dessas objeções pela escolha da palavra "sedimentação". O que não arredo pé é: só pode ser considerado clássico no sentido verdadeiramente completo do termo, que é o que com frequência usamos quando vamos discutir a seu respeito, o que recebeu toda uma apreciação crítica ao longo do tempo. É isso. Discussões laterais podem e devem desnudar mecanismos escusos por trás do cânone, mas não nos fazem concluir que o clássico passa a ser somente o que a maior parte das pessoas lê, já que isso nos levaria quando muito a um conceito mais fraco de clássico, que passa longe da excelência e do mérito artístico propriamente ditos.
Um exercício de comparação será útil. Na mesma época em que o primeiro volume de Harry Potter saía, outro livro muito aguardado no cenário literário americano também era dado a lume: Infinite Jest. Escrito por David Foster Wallace, o livro se tornou uma espécie de clássico contemporâneo, alcunha certo modo contraditória mas que expõe com clareza o entusiasmo gerado a respeito do livro. Diversos críticos elogiaram o requinte de sua elaboração artística e a agudeza de suas análises. Quando, décadas depois, chegou ao Brasil, a editora que o recebeu chamou um de seus melhores tradutores para enfrentar a tarefa, o mesmo que traduziu o grande clássico da modernidade (Ulysses) anos atrás, e lhe deu um tratamento editorial de luxo. Percebam: tanto o Infinite Jest quanto Harry Potter continuam a ser lidos; não sob as mesmas cifras astronômicas, é claro, mas continuam a vender lá suas brochuras. A diferença é que enquanto o primeiro recebeu defesas enfáticas a respeito de sua qualidade, passando pelo crivo de alguns dos críticos mais exigentes e influentes de nosso tempo (podemos tomar como exemplo o recém-falecido Harold Bloom), Harry Potter não se saiu bem quanto ao mesmo quesito. Até pelo contrário. A crítica que Bloom escreveu ao primeiro livro da saga foi a um só tempo devastadora e sagaz, por exemplo ao apontar que suas origens estariam num clássico inglês de segunda linha publicado em meados do século XIX: Tom Brown's School Days, de Thomas Hughes.
Se algum dia, portanto, vier a ser clássico, só poderá vir a ser clássico no sentido carregado do termo se os leitores se puserem a empreender defesas de sua qualidade, coisa a meu ver um tanto improvável de acontecer, especialmente considerando a falta de vontade do público, mais preocupado em desfiar um rosário de reminiscências do que ler a saga com olhos de lince. E não que me queixe. É esperável. E normal. Muitos são marinheiros de primeira viagem e muitos não estão nem mesmo tão preocupados assim com essa coisa toda sobre literatura ser tecnologia de ponta. Querem apenas um escape para a realidade estafante dos dias, e, enquanto a saga dos bruxinho puder proporcionar-lhes esse remédio, tanto melhor - até pelo menos que outra se mostre mais capaz de fazer o mesmo.
pós-escrito: Poucas horas da postagem, o Raphael veio nos comentários me alertar que o exemplo do Bloom é muitíssimo problemático. De fato: mais até do que problemático, serve para que eu prove um pouco do meu veneno. Numa entrevista de 2011 ele diz que o Infinite Jest é simplesmente ilegível, um livro terrível diante do qual Stephen King é um Cervantes praticamente. É difícil dizer o que levou o Bloom a uma opinião assim. A certa altura do romance há um comentário ácido sobre um professor que realizava uma análise para seus alunos embasada na angústia da influência, chamada pelo narrador de "reading stupefyingly turgid sounding shit". Pode ser que tenha alguma relação. De todo modo, foi um ato falho injustificável e no mínimo cômico, fruto, quem sabe, do jeito despretensioso com que levo as coisas por aqui.
Penso porém que as linhas gerais do texto permanecem de pé, afinal de contas ainda me parece óbvio que o Infinite Jest é um livro que tem recebido uma aclamação crítica muito maior que a saga do bruxinho, no que, claro, outros exemplos mais cuidadosos poderiam ser dados. Isso não quer dizer que eu em absoluto despreze os romances da Rowling, os quais, confesso, nunca cheguei nem mesmo a ler. Sou, até para ser sincero, indiferente quanto a isso, e não acho nem de longe que será o fim do mundo se algum dia Harry Potter vier a ser considerado um clássico no sentido carregado do termo. Minha única objeção é: para tanto, deve receber uma apreciação crítica enfática e não simplesmente se escudar por trás da vendagem reiterada dos livros.