Vaso grego.
Este soneto aqui é um conhecido do leitor. A maioria das aulas de literatura do currículo escolar básico ilustra a estética parnasiana usando-se deste soneto e daqueloutro, do mesmo autor, a respeito de um vaso chinês. O tom geral dos comentários feitos pelos professores é quase sempre zombeteiro, reduzindo o nosso parnasianismo a uma aglomeração espalhafatosa de escritores inaptos ou algo do tipo. Como lemos nosso passado literário todo pela ótica modernista, o que obviamente esparrama por onde passa um extenso rastro de achatamentos caricaturescos aplicável até aos próprios modernistas, então os parnasianos, que teriam sido os arqui-inimigos da geração de 22, são deixados de lado, postos a escanteio com desprezo.
Temos visto algumas iniciativas admiráveis de revalorização do período, por exemplo graças a Ivan Teixeira na década de 90, Luís Augusto Fischer nos anos 2000 ou, mais recente, Emmanuel Santiago. Será um processo demorado até que possamos reconhecer a arte ótima que Olavo Bilac empregou por exemplo em muitos de seus poemas ou a que pode ser vista na poesia de Raimundo Correia e Francisca Júlia, nomes que mais e mais têm me surpreendido. No caso de Alberto de Oliveira, por mais que eu realmente não o ache lá um grande poeta, nem mesmo se comparado aos acima citados, ele foi, no mínimo, autor de um dos mais bem acabados e estupendos sonetos de nosso idioma - Ironia - e em alguns momentos demonstrou uma consciência artesanal muito além da sensaboria alegada pelas aulas de ensino médio.
Vejamos o caso do soneto, em específico sua primeira estrofe. Ele não só descreve um objeto. Ele descreve um ideal, qual seja, o ideal da estética antiga greco-romana, muito buscada pelos parnasianos de modo geral (e até aqui o leitor pode checar as informações com o que rabiscou num caderno de doze matérias.) O objeto descrito, um vaso grego feito com esmero, se revela capaz de comunicar uma longa história e uma longa tradição àquele que souber apreciá-lo. E o que surpreende no poema é justamente isso: ele consegue, pela sinuosidade considerável da sintaxe, sugerir, a quem souber, claro, apreciar, alguma coisa do sabor da poesia escrita em grego e latim, permitindo, assim, que dois aspectos eu reputo característicos da boa poesia possam ser apontados: em primeiro lugar, o fato de que expande os limites da nossa língua e, em segundo, que usa a forma do texto para comunicar algo além, para nos fazer sentir de modo mais palpável o que nos é descrito.
Leiamos:
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.
Era o poeta de Teos que o suspendia
Então, e, ora repleta ora esvasada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.
Depois... Mas, o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,
Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse.
A sintaxe do poema é bastante embaralhada. Creio que é bem possível que o leitor que encare a primeira estrofe saia dela sem saber muito bem o que pensar. Sua ordem direta seria algo como:
Esta brilhante copa de áureos relevos, trabalhada de [por] divas mãos, um dia vinda do Olimpo, servia a um novo deus, como [uma vez que] já cansada de servir aos deuses.
A oração principal é "Esta brilhante copa de áureos relevos servia a um novo Deus". O número de epítetos, de caracterizações à copa, ou seja, ao vaso, é sem dúvidas notável e nos remete de imediato aos epítetos que comumente encontraremos na poesia antiga quase toda. "trabalhada de divas mãos", ou seja, por divas mãos (o uso da preposição tem um quê de arcaico) e "um dia vinda do Olimpo" são orações que ajudam a descrever o objeto. Logo depois teremos "como já cansada", que serve aqui como uma subordinada adverbial explicativa ao verbo "servia" da oração anterior, e, num terceiro degrau na cadeia subordinativa, teremos "de servir aos deuses", que serve como substantiva objetiva indireta em relação a "cansada".
É um período relativamente complexo mesmo quando colocado na ordem direta e que faz uso de muitas orações subordinadas reduzidas: de particípio (trabalhada, cansada), infinitivo (servir) e gerúndio (vinda). Mas o que realmente espanta é o modo como o poeta embaralha a sintaxe e dispõe os elementos da frase de maneira estilhaçada, como que sugerindo de modo literal a sinuosidade da construção daquele vaso.
Veja a primeira palavra do poema: o demonstrativo "Esta". Ao invés de encontrarmos a seguir o substantivo a que se refere o demonstrativo, encontraremos, pelo contrário, seu adjunto adnominal "de áureos relevos". O substantivo mesmo só aparecerá no verso seguinte: "brilhante copa", e, antes inclusive de chegarmos a ele, teremos uma oração que serve também para caracterizar esse substantivo até então enigmático: "trabalhada / De divas mãos".
Depois a locução adverbial "um dia", que será completada só no começo do verso quatro por "Vinda do Olimpo", e então adentramos o reino do terceiro verso, no qual a sintaxe se estilhaça ao extremo: "Já de aos deuses servir como cansada". Seguindo a análise sintática que propus antes, sabemos que "Já", no início do verso, é advérbio que caracteriza um verbo que só aparecerá no final: "cansada". O mesmo ocorre com a preposição "de", que faz parte da estrutura verbal de "cansada". Logo após, "aos deuses" é objeto indireto do verbo que surge logo em seguida, "servir", e "como" é a conjunção que dá partida à oração e que deveria em tese iniciar o verso, já que conecta a oração de que consiste a maior parte desses dois últimos versos da estrofe à oração iniciada nos dois anteriores.
Nessa estrutura toda, tão complexa, o que se percebe é que a oração que ocupa o terceiro degrau da subordinação sintática, ou seja, a substantiva objetiva indireta "de servir aos deuses", está toda ela englobada dentro da estrutura da oração que lhe serve de principal, ou seja, a adverbial explicativa "como já cansada". Isso é muito incomum em português. A ordem corriqueira seria incluir a oração subordinada logo após a principal ou, no mínimo, isolá-la por vírgulas. Todavia, não é nem de longe o que ocorre aqui. A sintaxe que Alberto de Oliveira emprega não parece estar seguindo a sintaxe do português e sim a de línguas flexionais como o latim e o grego, nas quais, graças à marcação morfológica ao fim das palavras que lhes dá a função sintática que devem desempenhar, a colocação das palavras nos períodos é muito mais livre. Uma vez que as formas nominais dos verbos também podem exigir seus complementos verbais, então, no caso de orações em latim ou em grego que contem com tais formas em sua estrutura, é comum que toda a estrutura dessas orações esteja englobada dentro da estrutura da oração principal, quase como uma espécie de parêntesis. Um exemplozinho simples, retirado de um manual didático de latim muito usado em universidades brasileiras (o Reading Latin), dá como exemplo ao aluno a seguinte frase:
dux milites hortatus audacter se in proelium tulit
"Dux" é nominativo, sendo, portando, o sujeito da frase. "Milites" é acusativo, isto é, objeto direto de algum verbo. A seguir temos o particípio perfeito "hortatus", ligado a "dux", e que significa "tendo conclamado". Os particípios, como dito, exigem complementos verbais: quem conclama, conclama algo. No caso, o duque conclamou os soldados, os "milites". Logo então temos "audacter", advérbio, e logo após o reflexivo "se", que, no acusativo, será objeto direto de algum verbo. Seria o caso de "hortatus"? Dificilmente, afinal de contas apesar de "milites" estar no acusativo também, ele está no acusativo plural. Encontramos a seguir a preposição "in" e a palavra "proelium" no acusativo: no acusativo pois é regida pela preposição. E por fim, o verbo da frase, "tulit", isto é, levou, dando a entender que o duque (dux) ousadamente (audacter) levou (tulit) a si (se) à batalha (in proelium), após ter conclamado (hortatus) os soldados (milites). Note o leitor que a oração subordinada "hortatus milites" está literalmente dentro da principal "dux (...) tulit".
Não é nada fácil alcançar um efeito assim num idioma como o nosso. Penso que só um grande poema é capaz disso.
Temos visto algumas iniciativas admiráveis de revalorização do período, por exemplo graças a Ivan Teixeira na década de 90, Luís Augusto Fischer nos anos 2000 ou, mais recente, Emmanuel Santiago. Será um processo demorado até que possamos reconhecer a arte ótima que Olavo Bilac empregou por exemplo em muitos de seus poemas ou a que pode ser vista na poesia de Raimundo Correia e Francisca Júlia, nomes que mais e mais têm me surpreendido. No caso de Alberto de Oliveira, por mais que eu realmente não o ache lá um grande poeta, nem mesmo se comparado aos acima citados, ele foi, no mínimo, autor de um dos mais bem acabados e estupendos sonetos de nosso idioma - Ironia - e em alguns momentos demonstrou uma consciência artesanal muito além da sensaboria alegada pelas aulas de ensino médio.
Vejamos o caso do soneto, em específico sua primeira estrofe. Ele não só descreve um objeto. Ele descreve um ideal, qual seja, o ideal da estética antiga greco-romana, muito buscada pelos parnasianos de modo geral (e até aqui o leitor pode checar as informações com o que rabiscou num caderno de doze matérias.) O objeto descrito, um vaso grego feito com esmero, se revela capaz de comunicar uma longa história e uma longa tradição àquele que souber apreciá-lo. E o que surpreende no poema é justamente isso: ele consegue, pela sinuosidade considerável da sintaxe, sugerir, a quem souber, claro, apreciar, alguma coisa do sabor da poesia escrita em grego e latim, permitindo, assim, que dois aspectos eu reputo característicos da boa poesia possam ser apontados: em primeiro lugar, o fato de que expande os limites da nossa língua e, em segundo, que usa a forma do texto para comunicar algo além, para nos fazer sentir de modo mais palpável o que nos é descrito.
Leiamos:
Esta de áureos relevos, trabalhada
De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.
Era o poeta de Teos que o suspendia
Então, e, ora repleta ora esvasada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.
Depois... Mas, o lavor da taça admira,
Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,
Ignota voz, qual se da antiga lira
Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse.
A sintaxe do poema é bastante embaralhada. Creio que é bem possível que o leitor que encare a primeira estrofe saia dela sem saber muito bem o que pensar. Sua ordem direta seria algo como:
Esta brilhante copa de áureos relevos, trabalhada de [por] divas mãos, um dia vinda do Olimpo, servia a um novo deus, como [uma vez que] já cansada de servir aos deuses.
A oração principal é "Esta brilhante copa de áureos relevos servia a um novo Deus". O número de epítetos, de caracterizações à copa, ou seja, ao vaso, é sem dúvidas notável e nos remete de imediato aos epítetos que comumente encontraremos na poesia antiga quase toda. "trabalhada de divas mãos", ou seja, por divas mãos (o uso da preposição tem um quê de arcaico) e "um dia vinda do Olimpo" são orações que ajudam a descrever o objeto. Logo depois teremos "como já cansada", que serve aqui como uma subordinada adverbial explicativa ao verbo "servia" da oração anterior, e, num terceiro degrau na cadeia subordinativa, teremos "de servir aos deuses", que serve como substantiva objetiva indireta em relação a "cansada".
É um período relativamente complexo mesmo quando colocado na ordem direta e que faz uso de muitas orações subordinadas reduzidas: de particípio (trabalhada, cansada), infinitivo (servir) e gerúndio (vinda). Mas o que realmente espanta é o modo como o poeta embaralha a sintaxe e dispõe os elementos da frase de maneira estilhaçada, como que sugerindo de modo literal a sinuosidade da construção daquele vaso.
Veja a primeira palavra do poema: o demonstrativo "Esta". Ao invés de encontrarmos a seguir o substantivo a que se refere o demonstrativo, encontraremos, pelo contrário, seu adjunto adnominal "de áureos relevos". O substantivo mesmo só aparecerá no verso seguinte: "brilhante copa", e, antes inclusive de chegarmos a ele, teremos uma oração que serve também para caracterizar esse substantivo até então enigmático: "trabalhada / De divas mãos".
Depois a locução adverbial "um dia", que será completada só no começo do verso quatro por "Vinda do Olimpo", e então adentramos o reino do terceiro verso, no qual a sintaxe se estilhaça ao extremo: "Já de aos deuses servir como cansada". Seguindo a análise sintática que propus antes, sabemos que "Já", no início do verso, é advérbio que caracteriza um verbo que só aparecerá no final: "cansada". O mesmo ocorre com a preposição "de", que faz parte da estrutura verbal de "cansada". Logo após, "aos deuses" é objeto indireto do verbo que surge logo em seguida, "servir", e "como" é a conjunção que dá partida à oração e que deveria em tese iniciar o verso, já que conecta a oração de que consiste a maior parte desses dois últimos versos da estrofe à oração iniciada nos dois anteriores.
Nessa estrutura toda, tão complexa, o que se percebe é que a oração que ocupa o terceiro degrau da subordinação sintática, ou seja, a substantiva objetiva indireta "de servir aos deuses", está toda ela englobada dentro da estrutura da oração que lhe serve de principal, ou seja, a adverbial explicativa "como já cansada". Isso é muito incomum em português. A ordem corriqueira seria incluir a oração subordinada logo após a principal ou, no mínimo, isolá-la por vírgulas. Todavia, não é nem de longe o que ocorre aqui. A sintaxe que Alberto de Oliveira emprega não parece estar seguindo a sintaxe do português e sim a de línguas flexionais como o latim e o grego, nas quais, graças à marcação morfológica ao fim das palavras que lhes dá a função sintática que devem desempenhar, a colocação das palavras nos períodos é muito mais livre. Uma vez que as formas nominais dos verbos também podem exigir seus complementos verbais, então, no caso de orações em latim ou em grego que contem com tais formas em sua estrutura, é comum que toda a estrutura dessas orações esteja englobada dentro da estrutura da oração principal, quase como uma espécie de parêntesis. Um exemplozinho simples, retirado de um manual didático de latim muito usado em universidades brasileiras (o Reading Latin), dá como exemplo ao aluno a seguinte frase:
dux milites hortatus audacter se in proelium tulit
"Dux" é nominativo, sendo, portando, o sujeito da frase. "Milites" é acusativo, isto é, objeto direto de algum verbo. A seguir temos o particípio perfeito "hortatus", ligado a "dux", e que significa "tendo conclamado". Os particípios, como dito, exigem complementos verbais: quem conclama, conclama algo. No caso, o duque conclamou os soldados, os "milites". Logo então temos "audacter", advérbio, e logo após o reflexivo "se", que, no acusativo, será objeto direto de algum verbo. Seria o caso de "hortatus"? Dificilmente, afinal de contas apesar de "milites" estar no acusativo também, ele está no acusativo plural. Encontramos a seguir a preposição "in" e a palavra "proelium" no acusativo: no acusativo pois é regida pela preposição. E por fim, o verbo da frase, "tulit", isto é, levou, dando a entender que o duque (dux) ousadamente (audacter) levou (tulit) a si (se) à batalha (in proelium), após ter conclamado (hortatus) os soldados (milites). Note o leitor que a oração subordinada "hortatus milites" está literalmente dentro da principal "dux (...) tulit".
Não é nada fácil alcançar um efeito assim num idioma como o nosso. Penso que só um grande poema é capaz disso.