Arte heroica e nacional.
Já não chamo mais de piada de mau gosto os desmandos do presidente et caterva. Tudo menos isso. É uma política pública consciente de desaparelhar o Estado e enxertar em seu lugar tudo que bajule a ideologia dominante. O desmonte da Casa Rui Barbosa é prova disso, o recente discurso do ex-secretário nacional da cultura é prova disso. O reverso da moeda de quando se empunham bandeirolas em prol de uma arte edificante revelou sua faceta mais assustadora e autoritária. Foi um verdadeiro arrepio na espinha e um legítimo flagelo ter assistido à arquitetura macabra do vídeo, com a postura séria e austera do ex-secretário, sua entonação patética, a escolha de Wagner para música de fundo, a paleta de cores fria e as repercussões nazistas no discurso de que o governo se esforçará na construção de uma arte que edifique o povo brasileiro.
Eu realmente até gostaria de nalguma oportunidade pelo menos ler o que os cupinchas que coadunam com o discurso do ex-secretário têm a dizer. Tenho curiosidade, genuína, em saber que raios de argumento poderiam usar para defender a ideia de que um estado (um estado!) é realmente capaz de criar uma arte nacional. O presidente pouco tempo depois demitiu o secretário, mas, como sabemos bem, isso se deu menos pelas ideias em si do pela repercussão negativa da frase nazista adaptada. É ótimo que mexamos os pauzinhos e façamos barulho para pelo menos estabelecer uma linha divisória mínima de decência, mas, como sei que as bases gerais do discurso permanecem aí, ditas e tacitamente ratificadas, é sempre bom lembrar que, égua!, elas não faz o menor sentido.
O Estado mal consegue criar uma estrutura de saneamento básico decente. Defender isso é rigorosamente o mesmo que dizer que o dinheiro do contribuinte será canalizado para dar vazão a um delírio do Executivo. Quando se discute investimentos públicos em arte, não há ninguém em sã consciência defendendo que isso seja o mesmo que dar aval para que um novo governante e seus consequentes penduricalhos ideológicos movimentem a máquina pública para arquitetar uma arte compatível com sua ideologia de modo análogo a quando durante campanha ele mandou fabricarem camisetas com seu número estampado. Investir em arte é investir nas possibilidades concretas de produção de arte de um modo universal, ou seja, que abarque o máximo possível de práticas artísticas e que represente, na realidade, não um investimento num tipo específico de arte, num ramo de suas correntes estéticas, e sim na própria possibilidade do fazer e do consumir artístico.
Além desse problema, básico, fundamental, que deveria ser o suficiente para que qualquer liberal pelo menos torcesse o nariz, há a ideia de que a arte realmente válida, aquela pomposamente grafada com A maiúsculo, é a que edifica e corresponde aos anseios éticos do povo brasileiro. Antes mesmo de sequer discutir a noção de que uma arte de qualidade é necessariamente uma arte edificante, o que ignora por completo que obras de arte podem ser valoradas por muitas outras razões, seria interessante se pelo menos por alguns instantes nos indagássemos sobre a aplicação dessa ideia dentro da geringonça desajeitada do Estado.
É simples. Quem vai de fato averiguar se a obra está de acordo com a moral a que anseia o povo brasileiro? Quem, aliás, pode verificar o que diabos seria isso num país de dimensões continentais? Especialistas? Professores? Alunos do COF? Militares da reserva? Como saber diferenciar se o que se pretende com isso é outra coisa que não chancelar um apoio estatal irrestrito a obras que afaguem os ouvidos da besta quadrada com faixa presidencial no peito?
Mesmo quem defende a famigerada imaginação moral, conceito célebre desenvolvido por Russell Kirk a partir, se bem me recordo, de uma passagem de Edmund Burke sobre a revolução francesa, segundo a qual a finalidade de um grande livro é ética, ou seja, nos ensinar o que é ser genuinamente humano; mesmo ela reconhece que o grande escritor não é quem professa incessantemente homilias, já que ele pode escrever muito mais sobre o que é mal e degradado do que sobre o que é bom. Ora: como teremos certeza que o estado estará ele próprio apto a efetuar essa distinção muitas vezes tão sutil? Nada. Não é o estado que deve fazer as vezes de crítico literário. Sua função não é essa. Se a imaginação moral tem algum tipo de relevância, ela só tem quando falamos de comunidades de indivíduos que se determinam de forma livre e espontânea, pois é somente aí que o "genuinamente humano" de que fala Russell Kirk pode ser percebido a partir da Vida como ela é, sem os riscos de que um governo qualquer se aproprie da premissa para angariar apoio a suas políticas.
A edificação pretendida pelo ex-secretário nada mais é do que meses atrás mencionei ao caracterizar os conservadores brasileiros: é obra de um conservadorismo mefistofélico. Não é que defenda, propriamente falando, um valor transcendental e genuinamente humano, nem muito menos que intentem fomentar a tal literatura ética da imaginação moral. O que querem, no íntimo, é qualquer coisa que seja uma não-esquerda, qualquer coisa que varra até mesmo as conquistas mais legítimas dos governos passados e ponha em seu lugar algo que seja oposto. Apenas isso: oposto. Negação pura e simples.
Eu realmente até gostaria de nalguma oportunidade pelo menos ler o que os cupinchas que coadunam com o discurso do ex-secretário têm a dizer. Tenho curiosidade, genuína, em saber que raios de argumento poderiam usar para defender a ideia de que um estado (um estado!) é realmente capaz de criar uma arte nacional. O presidente pouco tempo depois demitiu o secretário, mas, como sabemos bem, isso se deu menos pelas ideias em si do pela repercussão negativa da frase nazista adaptada. É ótimo que mexamos os pauzinhos e façamos barulho para pelo menos estabelecer uma linha divisória mínima de decência, mas, como sei que as bases gerais do discurso permanecem aí, ditas e tacitamente ratificadas, é sempre bom lembrar que, égua!, elas não faz o menor sentido.
O Estado mal consegue criar uma estrutura de saneamento básico decente. Defender isso é rigorosamente o mesmo que dizer que o dinheiro do contribuinte será canalizado para dar vazão a um delírio do Executivo. Quando se discute investimentos públicos em arte, não há ninguém em sã consciência defendendo que isso seja o mesmo que dar aval para que um novo governante e seus consequentes penduricalhos ideológicos movimentem a máquina pública para arquitetar uma arte compatível com sua ideologia de modo análogo a quando durante campanha ele mandou fabricarem camisetas com seu número estampado. Investir em arte é investir nas possibilidades concretas de produção de arte de um modo universal, ou seja, que abarque o máximo possível de práticas artísticas e que represente, na realidade, não um investimento num tipo específico de arte, num ramo de suas correntes estéticas, e sim na própria possibilidade do fazer e do consumir artístico.
Além desse problema, básico, fundamental, que deveria ser o suficiente para que qualquer liberal pelo menos torcesse o nariz, há a ideia de que a arte realmente válida, aquela pomposamente grafada com A maiúsculo, é a que edifica e corresponde aos anseios éticos do povo brasileiro. Antes mesmo de sequer discutir a noção de que uma arte de qualidade é necessariamente uma arte edificante, o que ignora por completo que obras de arte podem ser valoradas por muitas outras razões, seria interessante se pelo menos por alguns instantes nos indagássemos sobre a aplicação dessa ideia dentro da geringonça desajeitada do Estado.
É simples. Quem vai de fato averiguar se a obra está de acordo com a moral a que anseia o povo brasileiro? Quem, aliás, pode verificar o que diabos seria isso num país de dimensões continentais? Especialistas? Professores? Alunos do COF? Militares da reserva? Como saber diferenciar se o que se pretende com isso é outra coisa que não chancelar um apoio estatal irrestrito a obras que afaguem os ouvidos da besta quadrada com faixa presidencial no peito?
Mesmo quem defende a famigerada imaginação moral, conceito célebre desenvolvido por Russell Kirk a partir, se bem me recordo, de uma passagem de Edmund Burke sobre a revolução francesa, segundo a qual a finalidade de um grande livro é ética, ou seja, nos ensinar o que é ser genuinamente humano; mesmo ela reconhece que o grande escritor não é quem professa incessantemente homilias, já que ele pode escrever muito mais sobre o que é mal e degradado do que sobre o que é bom. Ora: como teremos certeza que o estado estará ele próprio apto a efetuar essa distinção muitas vezes tão sutil? Nada. Não é o estado que deve fazer as vezes de crítico literário. Sua função não é essa. Se a imaginação moral tem algum tipo de relevância, ela só tem quando falamos de comunidades de indivíduos que se determinam de forma livre e espontânea, pois é somente aí que o "genuinamente humano" de que fala Russell Kirk pode ser percebido a partir da Vida como ela é, sem os riscos de que um governo qualquer se aproprie da premissa para angariar apoio a suas políticas.
A edificação pretendida pelo ex-secretário nada mais é do que meses atrás mencionei ao caracterizar os conservadores brasileiros: é obra de um conservadorismo mefistofélico. Não é que defenda, propriamente falando, um valor transcendental e genuinamente humano, nem muito menos que intentem fomentar a tal literatura ética da imaginação moral. O que querem, no íntimo, é qualquer coisa que seja uma não-esquerda, qualquer coisa que varra até mesmo as conquistas mais legítimas dos governos passados e ponha em seu lugar algo que seja oposto. Apenas isso: oposto. Negação pura e simples.