Véspera; Debris.

Por considerar o Pedro um dos mais talentosos tradutores de poesia da minha geração e o respeitar como poeta autor de uma portentosa recriação do quadrado sator, é que penso que um juízo sincero sobre seu livro de estreia (Véspera; Debris, editora Patuá) é a maior prova de amizade que posso dar. Gosto de partir do princípio que como um livro, um poema e às vezes até um verso costuma conter muito de quem os produz, seja um curto relance de uma vida inteira, seja o fruto de horas a fio na calada da noite, então a única resposta possível a quem nos aborda com laudas debaixo do braço é, em vez de acolchoar resenhas ocasionais com eufemismos sortidos, dizer do fundo do coração o que aquilo lhe causou, afinal de contas até quem acha feio tudo que não é espelho cedo ou tarde se enfada com o baile previsível de sinônimos girando em torno de lugar nenhum.

Não sei ainda muito bem, confesso, como bater o martelo e emitir um juízo do todo. Há momentos que me pareceram quando muito medianos, repletos de um sentimentalismo meio piegas que só não saiu mais piegas porque o Pedro, bem, ele é talentoso e se permite algumas firulas aqui e ali, por exemplo rimando "afins que" com "Stravinsky". Que fique bem claro: esse tipo de poesia simplesmente não me interessa, poesia na qual piruetas formais ou batuques sentimentais no tablado das formas fixas ganham a dianteira às expensas de uma investigação criativa dos meandros da poesia. "Agora somos só nós dois, Pergunta / de todas as respostas", por exemplo, é o tipo de pirueta posta de maneira pretensamente surpreendente no fim de um poema datado, desses que, suspeito, o leitor achará com relativa facilidade na poesia brasileira de cem anos atrás. Compare com:

Do pomo que se desprende
sobre o paladar maduro
(onde germina o presente
em seu estado mais puro),

atiramos as sementes
no árido solo futuro
(quanto mais dele se lembre,
tão mais amargo, mais duro);

mas no fruto que se ignora
— muito aquém dos nossos saltos
projetados contra o tempo —,

a defloração do Agora
(é para os pomos mais altos
a carne do esquecimento).

É de um poema dedicado a Paulo Henriques Britto. Se o Pedro imita a linguagem do Britto, é, pelo menos aqui, não de maneira servil e sim para emular, para competir, algo bem diverso do que no poema anterior, Staccato, víamos com o fecho "(não sei quando, / mas tudo leva a crer que seja ontem)", em que, mais uma vez, a pirueta do finalzinho só me parecer ser capaz de surpreender os incautos, ainda mais quando o melhor verso do poema é o de abertura, de sonoridade sugestiva: "A vida é um beijo brutalmente breve". Pois bem. O poema do Britto com o qual o Pedro dialoga é esse daqui:

POMO

Da vida só têm substância
a casca e o caroço.
No meio só tem amido,
embromações do carbono.

Porém todo o gosto reside
nessa carne intermediária,
sem valor alimentício,
sem realidade, sem nada.

É nela que os dentes encontram
o que os mantém afiados;
com ela é que a língua elabora
a doce palavra.

É um diálogo enriquecedor. Criativo. Caramba, e como! É a esse tipo de criatividade que me refiro. A criatividade que explicita por trás das malhas do texto um leitor meticuloso. Enquanto no poema do Britto o fruto do título não parece ser dos mais suculentos, afinal de contas a substância reside só nos elementos que jogamos fora durante o preparo (casca e caroço) e a polpa não tem valor alimentício, cabendo pois à língua elaborar, daquela matéria amorfa e sem suculência pendente no galho, o que de doce exista, sendo este, em resumo, o dever de quem vive e se depara com a aspereza do real; no poema do Pedro temos um desenvolvimento inteligente da ideia que segue de perto o cabedal de imagens e mesmo parte da sintaxe do original, por exemplo ao iniciar o texto com a preposição "de", e empreende uma reflexão aguda a respeito da natureza do tempo e das expectativas que criamos.

Nesse sentido chamo a atenção do leitor, já no segundo verso, para o uso inteligentíssimo do adjetivo "maduro" qualificando não o pomo, como se esperaria, mas sim o paladar, exatamente o sentido que se lê no poema do Britto. Ainda, no final do texto, o uso também muito criativo do advérbio "aquém" numa posição em que esperaríamos, da pena de qualquer outro poeta menos atento, o seu correlato banal "além". Com isso o Pedro demonstra domínio sobre seu texto, revertendo com inteligência a cena comum de seres humanos melancólicos saltando com afinco em busca do inalcançável. Não é isso o que o poema nos diz. O fruto ignorado está aquém dos nossos saltos - e justamente por isso ele é ignorado. O que buscamos é um fruto que está além, muito acima, numa zona em que o esquecimento impera e nossas aspirações se perdem uma vez que não põem os pés no chão. Compare, nesse sentido, o uso do substantivo "carne" se referindo a tais frutos, além, com o uso de "defloração" qualificando o Agora, o fruto aquém: se em um temos uma noção palpável e clara, no outro temos um processo análogo ao da elaboração a que o Britto se referia no seu poema.

Curioso também no poema é notar que seu final faz menção a um célebre soneto de um poeta paulista mal e mal recordado em nossas antologias escolares:

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Como se vê, um intertexto inteligentíssimo com dois grandes poetas, coisa que somente um grande poeta também poderia a seu turno empreender. E não será a primeira vez que um diálogo tão rico assim será estabelecido. A qualidade das traduções contidas na segunda parte do livro, os debris do título, já é indicativo deste fato; nelas o leitor poderá contemplar por exemplo o tour de force inacreditável de recriar o acróstico oculto num poema de Edgar Allan Poe. No âmbito da poesia autoral, posso citar, de uma das melhores páginas do livro:

Ipê desflorido
sabiá desce do galho
som de folhas secas.

Chama-se apenas "Bashô" e é uma paráfrase do célebre haicai do mestre. Nele, o retrato direto de uma cena simples, Bashô conseguiu revolucionar a poesia do período ao retratar um dos símbolos mais férteis da poesia japonesa do período, a rã, de um modo inesperado: não por seu canto e sim no exato instante em que alta num velho açude. O Pedro compreendeu bem a lição e recortou de um jeito muito justo o poema ao espanar qualquer palavra supérflua, deixando um só único artigo pra contar história ("do galho"), e recriou duas imagens praticamente arquetípicas de nosso imaginário: o ipê, que aqui está desflorido, e o sabiá, que, em vez de cantar, simplesmente pula do galho e dá ao poema a sonoridade das folhas secas, surpreendente.

Logo depois, temos:

Arranham-te o corpo
os dedos lascivos
da ausência (...)

Chama-se apenas "Safo" e é equiparável aos melhores momentos em que recebemos a poeta grega entre nós. O tema do desejo suscitado pela ausência da pessoa amada, um dos mais caros à poesia sáfica, encontra-se retratado com precisão. Cada palavra tem seu peso e sua importância. O uso de reflexivo "te", no primeiro verso, em vez do possessivo "teu", mostra um certo pendor estilístico por parte do Pedro. Até onde eu me recorde, não há propriamente um fragmento específico da Safo que o Pedro parafraseie aqui, mas eu citaria, apenas para fins de comparação, o fragmento 48 LP:

ἦλθες, †καὶ† ἐπόησας, ἔγω δέ σ' ἐμαιόμαν,
ὂν δ' ἔψυξας ἔμαν φρένα καιομέναν πόθωι.


Na tradução de Rafael Brunhara:

Vieste, fizeste bem, eu te queria...
esfriaste o ardor de desejo em meu peito.

ἐμαιόμαν, de μαίομαι, é correr atrás, perseguir, mas é também querer, desejar. Veja que o desejo é algo que abrasa a persona poética e somente a vinda da pessoa amada é capaz de esfriar aquele desejo que atinge a φρήν, termo complicadíssimo de traduzir uma vez que diz respeito não apenas à morada das emoções mas também do intelecto. O Pedro consegue recriar isso muito bem quando torna a ausência algo palpável e faz com que os dedos arranhem o corpo da pessoa no seu texto. Seria exagero de minha parte dar a entender que na prática quem arranha o próprio corpo é a pessoa mesmo, que, corporificando a ausência, se lacera? Não, especialmente se considerarmos que o poema, nessa espécie de autodestruição sugerida, estaria fazendo referência também ao fragmento 5 de Safo. O tipo de pensamento e hipótese que somente um grande poema é capaz de nos proporcionar.