Lícidas.

O  comentário mais instigante que li sobre a peça Lícidas, recém lançada por Leonardo Antunes, foi o de Rafael Brunhara no prefácio modelar que escreveu para o livro. Ali o Rafael conta pra gente que a peça é extraída de uma passagem de Heródoto que narra um episódio grotesco da Grécia, sobre um camarada chamado Lícidas que depois de ter proposto que se aceitasse um presente dos persas como forma de trégua, foi apedrejado até a morte, apedrejada também sua família inteira. A certa altura do prefácio, o Rafael comenta que o poeta usou da estrutura da tragédia de uma maneira muito inteligente, subvertendo algumas de suas molas mestras com engenho e arte. Dentre elas, o papel do coro:

Nas tragédias gregas o coro atuava como uma metonímia da cidade e, como tal, expunha valores caros a ela, como o louvor à temperança (sophrosýne) quando confrontado com os inadequados excessos (hýbris) dos heróis que as protagonizavam. Mas em Lícidas a voz da cidade é ela mesma perpetradora de hýbris e vítima do jugo e das palavras do mais forte. As típicas advertências prudentes dos coros trágicos tornam-se, aqui, “canto sombrio” que exalta e ratifica a violência.

Darei um exemplo de como isso funciona. Pouco tempo atrás o Leonardo publicou também uma tradução para o Édipo Tirano de Sófocles, mais conhecido entre nós por Édipo Rei. A certa altura da peça, depois, digamos assim, da ficha ter caído e do protagonista ter descoberto todo o fio da meada, a primeira estrofe do canto coral diz:

Ai! Ó gerações mortais,
quando contabilizo, vossas vidas são nada.
Pois quem, qual humano tem
maior prosperidade que
uma mera aparência vã
que assim sendo se perde?
Tenho a ti como exemplo a mim
por teu nume, esse nume teu, Édipo, sofredor: mortais jamais são felizes.

A partir do qual conseguimos enxergar bem como o papel metonímico e fundamentalmente ético do coro funciona: uma vez que Édipo havia acabado de descobrir toda a verdade sobre sua história, sua vida inteira caiu em ruína. É possível ser feliz um dia, se num piscar de olhos a vida pode dar uma reviravolta tão profunda que toda a alegria passada se esfacela por inteiro? Como aspirar ser qualquer coisa nesse melancólico planetinha azul se as conquistas de uma vida nada mais são que "Altas torres que fundei no vento"? O tema da fragilidade da vida humana, tão comum na poesia antiga, encontra aqui uma das suas expressões máximas.

Quero porém chamar a atenção para o ato do coro tomar o exemplo de Édipo para si. Por mais que ele seja muito claro ao tomar o destino de Édipo, o destino dele, reforçando isso de maneira quase obsessiva e judicante (o possessivo σόν, no grego, aparece três vezes no trecho e ainda se apoia num vocativo ao final), é somente para tê-lo como paradigma. Modelo. A tradução recria bem essa característica do original:

Tenho a ti como exemplo a mim
por teu nume, esse nume teu, Édipo, sofredor: mortais jamais são felizes.

τὸν σόν τοι παράδειγμ᾽ ἔχων,
τὸν σὸν δαίμονα, τὸν σόν, ὦ τλᾶμον Οἰδιπόδα, βροτῶν οὐδὲν μακαρίζω:


Aristóteles diz que o chacoalhão da tragédia, o choque do espetáculo, mexia de algum jeito com a alma do espectador. A palavrinha que ele usa é κάθαρσις, catarse, daquelas especialmente problemáticas que grosso modo diz respeito a um tirar pesos das costas, a um lavar a alma. O coro, e ainda mais nessa passagem específica da peça de Sófocles, ajuda o ouvinte a refletir sobre a condição de Édipo e, por reflexo, uma vez que a toma como exemplo, sobre sua própria condição e sobre a condição humana de modo universal.

O que o Leonardo faz é subverter essa lógica incluindo um coro que age de maneira muito clara na ordem dos eventos e que num primeiro relance não deixa patente essa tal ética universal em sua fala. Veja bem o que o coro diz logo após o assassinato de Lícidas, do qual participou ativamente:

Sangrentas são as mãos do justiceiro.
Porém, seu coração é como um rio
translúcido, pacífico, fluente!
Erínias não conheço,
nem Queres vingativas.
Meus feitos são justiça manifesta!

Limito-me à primeira estrofe. Vamos lê-la mais de perto. Pelo uso do adjetivo "sangrenta", o poeta está constatando um fato e deslizando de maneira muito ambígua um juízo. De fato, as mãos de quem mata ficam manchadas de sangue. É um fato. Mas sabemos também que com "sangrento" costumamos descrever tudo que é violento e se excede em suas emoções. Uma repreensão. Todavia, pergunta que se impõe e à qual o coro mesmo dará a resposta já nessa estrofe, tal sanguinolência; ela é mesmo esse absurdo todo?

O coro caracteriza o coração do justiceiro como um rio. O ímpeto da violência nos faz pensar realmente no volume de água em um rio; há também um eco de Macbeth na passagem, que, logo após cometer o assassinato de Duncan, olha para suas mãos e diz que nem mesmo o oceano seria capaz de limpá-las. Aqui, na peça brasileira, não é apenas o caráter impetuoso e vasto do rio que recebe destaque. Note o uso habilidoso dos adjetivos no terceiro verso: rios são de fato translúcidos em muitos casos e são fluentes. Mas... Pacífico? De novo, o poeta desliza algo que pode ser um fato ou que pode ser um juízo. A segunda opção, conforme penso, parece receber mais ênfase no contexto da estrofe, afinal de contas um rio pacífico é um que apenas segue seu curso natural. Eis o cerne da coisa. Ao caracterizar o coração do justiceiro como um rio, e ao posicionar de forma minuciosa os adjetivos no verso, pondo "pacífico" bem no meiozinho, resquício talvez da antiga temperança grega antiga, o coro quer tentar nos convencer que o coração do justiceiro é limpo e segue a ordem das coisas.

A menção às erínias e às queres, criaturas mitológicas que representam a vingança e a violência na mitologia grega, são uma maneira peculiar de ambientar a peça e suscitar um tipo de contraste muito rico. Para nós, habitantes de paragens pós-modernas, é relativamente difícil personificar sentimentos como a vingança e a violência em figuras monstruosas. Parece artificial demais evocar criaturas assim. Caso muito distinto é o do conceito de justiça no fim do verso: a ideia, embora abstrata, é muito mais palatável a nós, corporificada inclusive algumas vezes na figura de um nanico togado trajando roupas números acima, e quando o poeta põe na boca do coro que a justiça é manifesta, explícita, clara, ele está pedindo para que notemos como o crime cometido é uma, por assim dizer, uma personificação, uma materialização da justiça mais ou menos como as erínias e as queres serviam de corporificação de conceitos brutais.

Pois bem. É eficaz. Mas até que ponto podemos dizer que o coro é uma deturpação do que a temperança ética do coro na tragédia grega antiga representava? Digo: na cabeça de muitos cidadãos de bem empunhando pacificamente seus fuzis de assalto, a ação do justiceiro é exatamente o que o coro na peça Lícidas diz que ela é: justiça manifesta. O grande problema é que qualquer pessoa minimamente interessada no básico do básico sobre direitos e justiça no mundo contemporâneo sabe que o papel do justiceiro fere direitos humanos básicos mesmo quando o alvo é um réu confesso e não um bode expiatório, de modo que o coro na peça não pode servir de ética universal, mas, sim, de deturpação corriqueira e muito em voga, de corrupção plausível ou de ética mundana, tacanha, pequena, mesquinha. Essa talvez seja uma chave muito fecunda para ler o coro na peça: ele corrompe o que é uma ética humana verdadeira e coerente, mas, ao mesmo tempo que o faz, ele recebe adesão, ele se veicula na forma de um discurso que de fato pode ser encontrado com infeliz facilidade em grupos de mensagens - ele, em suma, incorpora o que a pólis contemporânea entende como certo, ele continua servindo de metonímia da cidade, muito embora sirva como metonímia nefasta. E é esse conflito entre o que é justiça manifesta em nossa sociedade discriminatória, ou seja, entre uma ética corrompida e perversa que seduz a muitos em sua sede por justiça ("justiça" sendo evocada, aqui, como sinônimo de vingança, de modo que não deixa de ser irônico que a tal "justiça manifesta" expressa pelo coro nada mais seja que uma espécie de erínia ou quere disfarçada); entre esse tipo de ética torpe e uma ética humana verdadeira, que respeite direitos humanos fundamentais.

Pois bem. O Leonardo não é o primeiro a trabalhar sobre o mito de Lícidas. A grande referência continua sendo o poema do grande autor inglês John Milton. Trata-se de uma espécie de lamento pastoril no qual a leveza e a graciosidade de muitas imagens contrasta com o destino violento de Lícidas, o qual, se bem me recordo, sequer é mencionado no poema. Se a injustiça dos homens causou tanta dor ao pobre pastor, isso é com os homens; Lícidas a rigor não estaria morto, uma vez que foi glorificado para um plano maior e muito além de toda imundície humana:

There entertain him all the Saints above,
In solemn troops, and sweet societies,
That sing, and singing in their glory move,
And wipe the tears for ever from his eyes.
Now, Lycidas, the shepherds weep no more:
Henceforth thou art the Genius of the shore,
In thy large recompense, and shalt be good
To all that wander in that perilous flood.

Na tradução de Paulo Vizioli:

Todos os santos das alturas o entretêm
Em cortejos solenes e harmoniosos coros,
Que cantam e, a cantar, se movem na sua glória,
Para sempre enxugando o pranto de seus olhos.
A Lícidas não mais lamentam os pastores;
Pois tu és doravante o Gênio destas praias,
Munificente recompensa, e velarás
Por todo o que erra sobre as ondas insidiosas.

A repetição de três locuções aditivas em sequência na primeira frase, uma delas inclusive enxertada entre sujeito ("solemn troops") e verbo ("That sing) e outra desdobrando "sing" em "singing" num mesmo verso, sugerem alguma coisa que vai se elevando degrau a degrau. Embora por "perilous flood" o poeta sugira, claro, o risco que existe em caminhar numa praia, a depender do quão perto do mar você esteja, parece-me também estar a sugerir uma espécie de metáfora para os perigos da vida terrena. Lícidas está muito acima disso: pouco antes na estrofe o poeta diz:

So Lycidas sunk low, but mounted high
Through the dear might of him that walk'd the waves;
Where, other groves and other streams along,
With nectar pure his oozy locks he laves,
And hears the unexpressive nuptial song,
In the blest kingdoms meek of joy and love. 

Assim, após descer, de novo subiu Lícidas,
Por graça do Que andou por sobre as vagas,
Para outros bosques, onde, junto a outros regatos,
Ablui com néctar puro os seus limosos cachos,
Enquanto ouve de núpcias o inefável canto
Lá nos benditos reinos de alegria e amor.

Não existe um apelo transcendental desses na peça do Leonardo. Ele só surge, eu diria, por contraste, ou seja, o leitor precisa contrastar a ética corrompida que o coro veicula com uma ética humana verdadeira. Nesses termos, eu diria que a ascese de Lícidas sugerida no lamento miltoniano não poderia acontecer num contexto tão emaranhado e torpe como é o da peça do poeta brasileiro, e, se viermos a pensar em algo do tipo, será um trabalho por parte do leitor resgatar a história de Lícidas e aplicá-la como exemplo infeliz sempre que justiceiros espalhem seu rastro de sangue. Se o Lícidas de Milton encontra uma espécie de santificação que o eterniza, sendo que é nesta eternidade que a alma do pastor encontrará repouso e a justiça devida, na peça do Leonardo eu sugeriria que não há santificação e nem eternização, mas, sim, que a verdadeira justiça que se possa fazer a Lícidas é não elevando-o a um plano além e acima do nosso, inacessível em essência, e sim imergindo-o na história dos homens e impedindo que nos esqueçamos da profunda injustiça que um dia cometemos. O Lícidas do Leonardo só faz sentido num plano histórico, de modo que o transcendentalismo patente nos versos de Milton parece ajudar pouco ou quase nada.

Se digo "parece", é por não achar que haja uma recusa enfática da parte do poeta para com o plano transcendental. Talvez seja mais interessante vermos apenas que esse plano recebe na sarjeta um contraponto muito poderoso, que destrói qualquer tipo de manifestação do divino entre nós. Exemplos particularmente poderosos nesse sentido podem ser encontrados na coroa de sonetos João e Maria. Na tipologia literária proposta por Northrop Frye, o modo predominante adotado pelo Leonardo tende a ser o do imitativo baixo, no qual, como os heróis são idênticos a nós, são nossos iguais, gente como a gente, conseguimos lançar a eles um olhar mais humano mesmo quando têm atrás de si conotações simbólicas que servem não exatamente para alçá-los e sim para aprofundar a tragédia de sua existência, ou, ainda, realçar o contraste com o mundo em que se encontram. O crítico canadense também, ao expor sua teoria dos mitos, nota que entre as imagens ditas apocalípticas (edênicas, paradisíacas) e aquelas ditas demoníacas, estas últimas predominam na área do imitativo baixo e sua assim chamada analogia da experiência.

Pois bem. Isso seria assunto para outro texto. Voltemos à coroa. No fim da sequência sobre Maria, uma pobre mulher que vendia carne e que à noite tinha que vender a sua carne para sobreviver, encontramos o seguinte poema:

Depois linchou Maria em plena rua
Com unânime apoio dos vizinhos,
Que logo se cercaram do padrinho,
Unindo seus esforços na gazua.

Manchada a veste como quem menstrua,
Amarram Maria ao pelourinho:
Que fosse uma mensagem ao povinho
Seu corpo retalhado em carne crua.

Alguns dias mais tarde, no velório,
Compareceram poucos. Pouco luto.
A mãe, doente com osteopatia,

E os filhos colocaram-lhe, simplórios,
Por epitáfio o dito dissoluto:
"Maria trabalhava todo dia."

É um poema admirável em muitos sentidos. A crueldade da cena é ressaltada por exemplo nos dois primeiros versos da segunda estrofe, com o uso de uma palavra tão emblemática para nossa triste história escravista: pelourinho. Poucas vezes uma rima conseguiu rasgar tão fundo a carne como essa. O fato de que a rima se una a "vizinhos", "padrinho" e "povinho" parece criar uma espécie de maciço semântico que revela muito sobre o contexto em que Maria foi retalhada. Retalhada: essa palavra tão forte que serviria para descrever a carne que Maria manuseava e que serviu para contar seu fim. Afinal de contas Maria faz parte da genealogia de Lícidas. Ela é também uma injustiçada pela sede de vingança do povo.

Note que o linchamento de Maria recebeu apoio unânime dos vizinhos. Mas note também que o mandante do crime é seu padrinho. Não há propriamente justiça nenhuma ou moralidade que num escrutínio mais sério e detido se sustente. O que há é pura e simplesmente um jogo de interesses que usa o povo como massa de manobra para veicular uma ideologia nefasta disfarçada de justiça. Até aqui mesmo análises sociológicas mais simples conseguem chegar. O que é poderoso todavia no poema é que ele, como dito, está na reta final de uma coroa de sonetos que dramatiza a vida de uma personagem cuja trajetória tem conotações bíblicas no mínimo irônicas. Isso implica que a transcendência metafísica da história de Lícidas no poema miltoniano recebe uma contrapartida corrosiva no soneto do Leonardo, que retira o caráter etéreo da Maria bíblica e a chafurda num mundo cruel em que os significados puros de sua história encontram seu oposto: se nos Evangelhos encontrávamos uma Virgem, por exemplo, aqui encontramos uma prostituta retalhada por ganhar a vida como pôde.

A descrição do seu enterro é profundamente melancólica. O carinho que poderia estar por trás do adjetivo "simplórios" qualificando os filhos é contrastado violentamente com a descrição da mãe, "doente com osteopatia", destaque absoluto ao fato de que o poeta não se contentou apenas com o genérico adjetivo "doente", precisando especificar qual era a doença da mãe como forma de escancarar ainda mais a dor que a aflige, uma pobre mulher marginalizada que enterra a filha e sofre de uma doença grave. A descrição do epitáfio é igualmente triste: primeiro pela semelhança fônica dentro da expressão "dito dissoluto", como se de fato os dizeres do epitáfio se dissolvessem no contexto de uma lápide pobre e no esquecimento em que a história de Maria em breve mergulharia. Mas há ainda um outro sentido: o verso final do soneto, o epitáfio propriamente dito, é também o primeiro verso da coroa de sonetos. A estrutura da coroa passa a ser, sendo assim, cíclica. Ora: sabemos que a história de Maria não será a única, assim como a de Lícidas não foi e nem a de João na mesma obra. Leonardo retrata vidas anônimas massacradas por injustiças e opressões de todos os tipos, e a visão que tem da história é uma especialmente amarga que não enxerga muita redenção para o ser humano. A não ser que lutemos para isso.