Iniciar frase com conjunção.
De um modo geral meu santo não bate muito com o dos gramáticos. Farpas sarcásticas (não raro injustas, reconheço) acham-se espalhadas por quase todo o bloguinho. E não é pra menos. Dias atrás num programa de rádio goiano ouvi um gramático conhecido na cidade responder à pergunta de uma ouvinte sobre se era lícito iniciar frase com conjunção coordenativa. A resposta foi enfática: não. Iniciar um parágrafo com "portanto", com "mas"? Nem pensar. Conjunções coordenativas ligam orações e orações são separadas por vírgula.
Bem. Deixemos de lado a afirmação estranha de que orações são separadas por vírgula, ao que bastaríamos perambular um pouco por nossa literatura para descobrirmos versos como "A luz da tua poesia é triste mas pura", de Bandeira, e concedamos que num primeiro instante o impedimento parece lógico, afinal de contas se a conjunção é, como dito por Napoleão Mendes de Almeida, conectivo oracional, então faz sentido que deva surgir quando uma oração já tenha sido desenvolvida. O problema é que a partir do momento em que a língua existe fora da cabeça dos intelectuais, exemplos contrários são colhidos a cada metro quadrado e, o que é pior, muito pior, no meio deles encontramos autoridades literárias consolidadíssimas. Uma só basta: Camões.
Porém, como a luz crástina chegada
Ao mundo for, em minhas almadias
Eu irei visitar a forte armada,
Que ver tanto desejo há tantos dias.
É do Canto II de Os Lusíadas. Muita coisa aqui é admirável, por exemplo a ênfase no adjetivo "crástina" no verso um, o ritmo binário do dois ou a repetição enfática de "tanto" no último. E no entanto, veja o leitor que isso tudo é capitaneado pela conjunção "Porém", imponente dentro da estrofe. Noutras passagens da obra, como já notado por alguns, o poeta chegará a usar o que parece uma dupla adversativa:
Mas porém se vos tinha prometido
O vosso alto destino esta vitória,
Ser-vos tudo bem pouco está sabido.
Francisco da Silveira Bueno alerta, todavia, que "porém" não é conjunção adversativa e sim partitivo latino formado de per + inde, no que teríamos a derivação: per+ende → peren → porém, significando, na passagem, "por isso". Sendo assim, não encontramos aqui duas conjunções adversativas e sim uma conjunção adversativa seguida de uma conjunção conclusiva sob a forma do latinismo partitivo per + inde.
Pois bem. Se ninguém menos que Camões abre frases com conjunção, então por que não poderíamos? A sugestão dada pelo gramático goiano foi de que se desloque a conjunção para dentro da frase: ao invés de "Porém, a frase", que tal "A frase, porém"? Hm. Sinceramente? Eu não sei que diabo de ganho ou de mudança tão profunda existiria em deslocar a conjunção e não, de acordo com as conveniências da frase, permitir que resida no início. Se era teoricamente estranho que uma conjunção abrisse as solenidades, dado seu caráter de conectivo oracional, por que fica menos estranho quando ela literalmente dá um único passinho para o lado? É como se estivéssemos decepando uma possibilidade de construção textual apenas em prol de uma lógica que não chega nem mesmo a fazer tanto sentido. Ora: a conjunção, mais do que ligar duas frases, liga ideias, pensamentos. Se inicio uma frase com conjunção, minhas intenções são óbvias: quero estabelecer uma conexão com a ideia desenvolvida até então. Que segredo pode haver nisto?
Dito por Dionísio da Trácia em sua Gramática, "Conjunção é uma palavra que conecta o pensamento com ordem e indica uma abertura na expressão" (na tradução de Lucas Dezotti). No grego encontramos σύνδεσμός ― σύν (com) + δεσμός (ligação, vínculo) ―, cuja tradução latina, base para o que temos em português, é coniunctio. Na própria gramática portuguesa encontramos sindético e assindético dentro da classificação das orações coordenadas e na anatomia encontramos sindesmose, nome dado a um tipo de articulação fibrosa. O sentido aqui, porque arcaico (ou seja, mais próximo da origem), é revigorante, afinal de contas deixa claro que a conjunção trabalha é com o pensamento (διάνοιαν), tornando visível (δηλοῦσα) a abertura (τὸ κεχηνὸς) da expressão (τῆς ἑρμηνείας, também traduzível como interpretação: daí, por exemplo, "hermenêutica"). Se uma frase te fala que abóboras são laranjas, a inclusão de um simples "porém" abre espaço para que abóboras verdes, até então escondidas em hortas hipotéticas, surjam no cenário.
Certa feita, numa matéria da faculdade, um professor apareceu com umas normas espalhafatosas para redação de trabalhos acadêmicos. Uma delas proibia o aluno de iniciar frases com conjunção. Salvo engano, a explicação era de que no latim já era proibido. Cheirava a explicação tirada da cartola: onde no latim, criatura? Existem, eu sei bem, palavras tanto em latim quanto em grego que chamamos de pospositivas, ou seja, só podem ser inclusas na segunda posição da frase e não na primeira; o problema é que se num primeiro momento saber que a conjunção enim, equivalente a "pois", é sempre colocada na segunda posição da frase acabaria servindo de fundamentação possível para a normazinha esdrúxula, sem muito esforço encontraremos uma outra preposição como nam, que, também significando "pois", deve a seu turno ser posta somente na primeira posição.
Sem fundamento, portanto. Das gramáticas que consultei, nenhuma proíbe o uso de conjunções no início de toda e qualquer frase. Varrão, no fragmento 28a da sua, se limita a comparar os nomes dados pelos gregos às suas conjunções com o que podia ser achado em latim, ressaltando suas propriedades por exemplo aditivas ou disjuntivas. Situação diversa ocorre com Diomedes, para quem a conjunção unifica o discurso e ajunta o valor e a ordem das partes da oração (copulans sermonem et coniungens uim et ordinem partium orationis). A noção se mantém em Donato (adnectens ordinansque sententiam) e ganha traços ligeiramente distintos em Prisciano (coniunctiua aliarum partium orationis).
Digo ligeiramente em Prisciano pois ele menciona a conjunção apenas no que diz respeito às partes da oração. Tanto Diomedes quanto Donato se referem a sermo, palavra que pode ser traduzida como, oh!, palavra, ou então dicção, fala, discurso. A diferença é que enquanto em Donato o termo parece claramente ser tomado como sinônimo de oração, em Diomedes, pelo contrário, o conjunto de verbos e objetos diretos espaçados ao longo da frase sugere conceitos correlatos mas não idênticos. É verdade que Diomedes chama a oração de "sermo contextus ad clausulam tendens", mas aqui, pelo fato de que separe as atribuições da conjunção como relativas ao sermo, à força e às partes da oração, parece indicar que a concebe num âmbito maior que o da frase isolada.
Se caminharmos em direção aos gregos, encontraremos Aristóteles na Poética, 1456b e 1457a, dando o que numa leitura superficial poderia ser um embasamento para a normazinha. Ali ele define a conjunção como som sem sentido posto ou no fim ou no meio da frase, não sendo adequado, todavia, colocá-lo no início. Seus exemplos são as conjunções μέν, ἤτοι e δέ. As coisas mudam um pouquinho quando ele fala dos articuladores, ἄρθρος, que, sendo também som desprovido de sentido, marcam o princípio, o fim ou a divisão de uma frase. Os exemplos citados são ἀμφί e περί. Tal como nota Ana Maria Valente, enquanto os σύνδεσμόι citados por Aristóteles são conjunções coordenativas, os ἄρθροι são preposições que significam basicamente a mesma coisa ("em volta de, acerca de").
Não é muito recomendável avançar além do que está expresso na Poética. Podemos dizer com segurança que sua preocupação está em saber o que carrega e o que não carrega sentido, bem como de que modo a unidade de sentido pode ser alcançada. Por isso que, da divisão estabelecida, enquanto a conjunção e o articulador são sons desprovidos de sentido, o nome, o verbo e a frase são precisamente o oposto. E a coisa fica interessante é a partir daqui: para Aristóteles algumas partes dentro da frase significam algo por si mesmas, ou seja, elas sempre terão um sentido próprio. Uma frase, portanto, não pode ser feita apenas de sons desprovidos de sentido. Ela precisa ser uma unidade ou porque significa uma coisa só ou porque é a junção de várias coisas.
Convém recordar que embora a maior parte das traduções traga "frase", o leitor deve ter paz de espírito ao descobrir que a palavra usada pelo filósofo é λόγος, muito mais elástica do que se pensa. Os exemplos que dá para a unidade interna do λόγος são a definição de homem como aquilo que corresponde a um único sentido e a Ilíada como conjunção de múltiplas partes. Note: conjunção; em grego, συνδέσμῳ. Ao impedir que se inicie o λόγος com conjunção, Aristóteles não está pensando numa regra de estilo e decoro, como é com alguns hoje, e sim na articulação do pensamento e na unidade do sentido.
Afinal de contas não é muito difícil encontrar exemplos de uso de conjunções iniciando frase na literatura antiga. Sêneca, na sua primeira epístola a Lucílio, aparece com esta maravilha de frase: "Dum diffetur, uita transcurrit", "Enquanto protela-se, a vida transcorre". Tal como notado por Christine Richardson-Hay, a palavra "uita", vida, é cercada de dois verbos que lhe definem e desvelam características opostas. Tente fazer o exercício tosco de colocar a conjunção "Dum" em qualquer outro canto da frase que não o início e parabéns, você estraga a harmonia quase que perfeita desta preciosidade de Sêneca.
Bem. Deixemos de lado a afirmação estranha de que orações são separadas por vírgula, ao que bastaríamos perambular um pouco por nossa literatura para descobrirmos versos como "A luz da tua poesia é triste mas pura", de Bandeira, e concedamos que num primeiro instante o impedimento parece lógico, afinal de contas se a conjunção é, como dito por Napoleão Mendes de Almeida, conectivo oracional, então faz sentido que deva surgir quando uma oração já tenha sido desenvolvida. O problema é que a partir do momento em que a língua existe fora da cabeça dos intelectuais, exemplos contrários são colhidos a cada metro quadrado e, o que é pior, muito pior, no meio deles encontramos autoridades literárias consolidadíssimas. Uma só basta: Camões.
Porém, como a luz crástina chegada
Ao mundo for, em minhas almadias
Eu irei visitar a forte armada,
Que ver tanto desejo há tantos dias.
É do Canto II de Os Lusíadas. Muita coisa aqui é admirável, por exemplo a ênfase no adjetivo "crástina" no verso um, o ritmo binário do dois ou a repetição enfática de "tanto" no último. E no entanto, veja o leitor que isso tudo é capitaneado pela conjunção "Porém", imponente dentro da estrofe. Noutras passagens da obra, como já notado por alguns, o poeta chegará a usar o que parece uma dupla adversativa:
Mas porém se vos tinha prometido
O vosso alto destino esta vitória,
Ser-vos tudo bem pouco está sabido.
Francisco da Silveira Bueno alerta, todavia, que "porém" não é conjunção adversativa e sim partitivo latino formado de per + inde, no que teríamos a derivação: per+ende → peren → porém, significando, na passagem, "por isso". Sendo assim, não encontramos aqui duas conjunções adversativas e sim uma conjunção adversativa seguida de uma conjunção conclusiva sob a forma do latinismo partitivo per + inde.
Pois bem. Se ninguém menos que Camões abre frases com conjunção, então por que não poderíamos? A sugestão dada pelo gramático goiano foi de que se desloque a conjunção para dentro da frase: ao invés de "Porém, a frase", que tal "A frase, porém"? Hm. Sinceramente? Eu não sei que diabo de ganho ou de mudança tão profunda existiria em deslocar a conjunção e não, de acordo com as conveniências da frase, permitir que resida no início. Se era teoricamente estranho que uma conjunção abrisse as solenidades, dado seu caráter de conectivo oracional, por que fica menos estranho quando ela literalmente dá um único passinho para o lado? É como se estivéssemos decepando uma possibilidade de construção textual apenas em prol de uma lógica que não chega nem mesmo a fazer tanto sentido. Ora: a conjunção, mais do que ligar duas frases, liga ideias, pensamentos. Se inicio uma frase com conjunção, minhas intenções são óbvias: quero estabelecer uma conexão com a ideia desenvolvida até então. Que segredo pode haver nisto?
Dito por Dionísio da Trácia em sua Gramática, "Conjunção é uma palavra que conecta o pensamento com ordem e indica uma abertura na expressão" (na tradução de Lucas Dezotti). No grego encontramos σύνδεσμός ― σύν (com) + δεσμός (ligação, vínculo) ―, cuja tradução latina, base para o que temos em português, é coniunctio. Na própria gramática portuguesa encontramos sindético e assindético dentro da classificação das orações coordenadas e na anatomia encontramos sindesmose, nome dado a um tipo de articulação fibrosa. O sentido aqui, porque arcaico (ou seja, mais próximo da origem), é revigorante, afinal de contas deixa claro que a conjunção trabalha é com o pensamento (διάνοιαν), tornando visível (δηλοῦσα) a abertura (τὸ κεχηνὸς) da expressão (τῆς ἑρμηνείας, também traduzível como interpretação: daí, por exemplo, "hermenêutica"). Se uma frase te fala que abóboras são laranjas, a inclusão de um simples "porém" abre espaço para que abóboras verdes, até então escondidas em hortas hipotéticas, surjam no cenário.
Certa feita, numa matéria da faculdade, um professor apareceu com umas normas espalhafatosas para redação de trabalhos acadêmicos. Uma delas proibia o aluno de iniciar frases com conjunção. Salvo engano, a explicação era de que no latim já era proibido. Cheirava a explicação tirada da cartola: onde no latim, criatura? Existem, eu sei bem, palavras tanto em latim quanto em grego que chamamos de pospositivas, ou seja, só podem ser inclusas na segunda posição da frase e não na primeira; o problema é que se num primeiro momento saber que a conjunção enim, equivalente a "pois", é sempre colocada na segunda posição da frase acabaria servindo de fundamentação possível para a normazinha esdrúxula, sem muito esforço encontraremos uma outra preposição como nam, que, também significando "pois", deve a seu turno ser posta somente na primeira posição.
Sem fundamento, portanto. Das gramáticas que consultei, nenhuma proíbe o uso de conjunções no início de toda e qualquer frase. Varrão, no fragmento 28a da sua, se limita a comparar os nomes dados pelos gregos às suas conjunções com o que podia ser achado em latim, ressaltando suas propriedades por exemplo aditivas ou disjuntivas. Situação diversa ocorre com Diomedes, para quem a conjunção unifica o discurso e ajunta o valor e a ordem das partes da oração (copulans sermonem et coniungens uim et ordinem partium orationis). A noção se mantém em Donato (adnectens ordinansque sententiam) e ganha traços ligeiramente distintos em Prisciano (coniunctiua aliarum partium orationis).
Digo ligeiramente em Prisciano pois ele menciona a conjunção apenas no que diz respeito às partes da oração. Tanto Diomedes quanto Donato se referem a sermo, palavra que pode ser traduzida como, oh!, palavra, ou então dicção, fala, discurso. A diferença é que enquanto em Donato o termo parece claramente ser tomado como sinônimo de oração, em Diomedes, pelo contrário, o conjunto de verbos e objetos diretos espaçados ao longo da frase sugere conceitos correlatos mas não idênticos. É verdade que Diomedes chama a oração de "sermo contextus ad clausulam tendens", mas aqui, pelo fato de que separe as atribuições da conjunção como relativas ao sermo, à força e às partes da oração, parece indicar que a concebe num âmbito maior que o da frase isolada.
Se caminharmos em direção aos gregos, encontraremos Aristóteles na Poética, 1456b e 1457a, dando o que numa leitura superficial poderia ser um embasamento para a normazinha. Ali ele define a conjunção como som sem sentido posto ou no fim ou no meio da frase, não sendo adequado, todavia, colocá-lo no início. Seus exemplos são as conjunções μέν, ἤτοι e δέ. As coisas mudam um pouquinho quando ele fala dos articuladores, ἄρθρος, que, sendo também som desprovido de sentido, marcam o princípio, o fim ou a divisão de uma frase. Os exemplos citados são ἀμφί e περί. Tal como nota Ana Maria Valente, enquanto os σύνδεσμόι citados por Aristóteles são conjunções coordenativas, os ἄρθροι são preposições que significam basicamente a mesma coisa ("em volta de, acerca de").
Não é muito recomendável avançar além do que está expresso na Poética. Podemos dizer com segurança que sua preocupação está em saber o que carrega e o que não carrega sentido, bem como de que modo a unidade de sentido pode ser alcançada. Por isso que, da divisão estabelecida, enquanto a conjunção e o articulador são sons desprovidos de sentido, o nome, o verbo e a frase são precisamente o oposto. E a coisa fica interessante é a partir daqui: para Aristóteles algumas partes dentro da frase significam algo por si mesmas, ou seja, elas sempre terão um sentido próprio. Uma frase, portanto, não pode ser feita apenas de sons desprovidos de sentido. Ela precisa ser uma unidade ou porque significa uma coisa só ou porque é a junção de várias coisas.
Convém recordar que embora a maior parte das traduções traga "frase", o leitor deve ter paz de espírito ao descobrir que a palavra usada pelo filósofo é λόγος, muito mais elástica do que se pensa. Os exemplos que dá para a unidade interna do λόγος são a definição de homem como aquilo que corresponde a um único sentido e a Ilíada como conjunção de múltiplas partes. Note: conjunção; em grego, συνδέσμῳ. Ao impedir que se inicie o λόγος com conjunção, Aristóteles não está pensando numa regra de estilo e decoro, como é com alguns hoje, e sim na articulação do pensamento e na unidade do sentido.
Afinal de contas não é muito difícil encontrar exemplos de uso de conjunções iniciando frase na literatura antiga. Sêneca, na sua primeira epístola a Lucílio, aparece com esta maravilha de frase: "Dum diffetur, uita transcurrit", "Enquanto protela-se, a vida transcorre". Tal como notado por Christine Richardson-Hay, a palavra "uita", vida, é cercada de dois verbos que lhe definem e desvelam características opostas. Tente fazer o exercício tosco de colocar a conjunção "Dum" em qualquer outro canto da frase que não o início e parabéns, você estraga a harmonia quase que perfeita desta preciosidade de Sêneca.