Frases.
Já defendi pelas bandas de cá o meu credo de que apenas uma só única frasezinha, se bem acinzelada,
floresce e revela toda uma perícia muitíssimo maior que a de preencher laudas e
mais laudas com um enredo repleto de facadas, identidades secretas, helicópteros caindo e vacinas descobertas nas quinze últimas páginas. E é meio óbvio que seja assim. Eu a rigor não leio prosa; eu leio, digamos, textos nessa disposição corrida muito apreciada hoje em dia esperando encontrar momentos de uma agudeza, concentração e perícia comparáveis ao da melhor poesia que conheço. Por isso eu penso que faz mais sentido dizer que leio frases, parágrafos ou pedaços de texto ajuntados pela argamassa de um enredo qualquer, do que dizer que leio narrativas ou livros de ficção. Sentido eu não sei se faz, mas é mais ou menos por aí.
Um curtíssimo apanhado de frases ou pedras-de-toque, creio que na esteira do que o Stanley Fish fez num livro voltado também à arte de apreciar os meandros com que bons escritores esculpem suas frases, poderia começar com essa daqui da Katherine Mansfield:
É do comecinho de um conto que a autora escreveu aos 20 anos. Impressionante. O clima está chuvoso, e a forma com que Mansfield descreve a paisagem lá fora da perspectiva de uma passageira de um ônibus presume-se abafado é excelente; a cereja do bolo, porém, é a comparação com "fairy palaces", que não simplesmente é uma imagem plausível diante do jogo de luz da cena ("their dullness to opal and silver") como, ainda, revela muito, muitíssimo, quase tudo sobre a psicologia da personagem.
Já um exemplar de frase concisa, enxuta, lapidar, ótima como os melhores dos ótimos versos que conheço, é essa daqui, do David Foster Wallace no capítulo inicial do seu Infinite Jest:
O protagonista está enfadado com a situação em que se encontra e seu quadro mental começa a mudar para algo mais sombrio. A imagem corriqueira de ver a sombra das palmeiras lá fora ser lançada sobre a mesa de pinho se transforma numa metáfora poderosa, a do surgimento da lua negra, mas isto numa frase que emprega todas as palavras com a funcionalidade exata, adequada. Veja a sonoridade da consoante S no início da frase, a discreta rima interna em "pine table's shine" e a eficácia que o efeito de justaposição recebe quando o autor omite o termo comparativo em "the one head's shadow [is like] a black moon". Um efeito de luz suponho análogo pode ser extraído desta passagem de Joyce no Retrato:
Com o passar do tempo esse romance tem se tornado meu favorito do Joyce, por razões obscuras e no mínimo curiosas. A sonoridade do final da frase, com o magnífico composto "lakelike", situado no alto dos melhores neologismos do autor, é estupenda uma vez que dá ao leitor o que de palpável a descrição possa oferecer, já que pega a transição de luz da cena e a simula in vitro dentro do vocábulo, com a variação singela da vogal A em I: lAke-lIke. As melhores descrições são assim: não apenas o escritor demonstrando ter um olho atento e vivo às mais peculiares minúcias e aos mais significativos panoramas, como, ainda, demonstrando um domínio verbal admirável ao escolher as palavras mais afiadas e ao urdir um ritmo, uma sonoridade encantatória capaz de fazer o leitor imergir profundamente em águas inesquecíveis.
Raduan Nassar, em seu Lavoura arcaica, tem um trabalho ótimo a nível rítmico quando escreve:
Perceba que as vírgulas no início pontuam células rítmicas menores, espaçadas, um prelúdio para o grande movimento a partir do verbo "ensaiando", que acelera a nossa leitura até sermos embalado por um longo trecho de ritmo jâmbico, isto é, uma sílaba fraca seguida de outra forte: "ao TOque SURdo e FORte (...)". Não é só descrever a dança. É sentir a força "dos pés batidos virilmente contra o chão".
Precisão vocabular, a seu turno, é o que encontraremos nesta frase sem reparos de Dalton Trevisan:
É possível, mais uma vez, deduzir todo o quadro psicológico do conto só a partir de uma frase assim. Não há absolutamente nenhuma palavra supérflua. Nenhuma. Meu Deus, é impressionante. O uso de um verbo como "investiam", ao fim da frase, é memorável; denota uma consciência e um domínio irretocável do escritor para com a matéria narrada. A personagem do conto está lidando com a memória do pai que acabara de falecer e cujo corpo jaz em vigília num aposento ao lado. O odor das flores murchas misturado ao das velas - quatro velas, número exato para que suponhamos que tipo de crendices atuaram na montagem do velório -, por si só, já ambientam o leitor; é quando, porém, Trevisan narra o piscar do pavio, que ele dá um passo além do que já era ótimo por si só, mostrando ao leitor de forma sutil, como sutil deve ser a boa narrativa, que um efeito de luz corriqueiro é o suficiente para que a protagonista se sinta acuada e aterrorizada: "investiam porta adentro".
Outro autor de que gosto muito no quesito frases bem feitas é o bom e velho Thomas Hardy. Tess é um romance ótimo nesse sentido. Há passagens dele simplesmente memoráveis, a exemplo daquela em que a Tess acabou dormindo durante uma viagem a cavalo e, quando acordou, viu o animal agonizando após por acidente ter sido espetado pelo galho pontudo de uma árvore. Ou então:
A ironia em sua melhor forma, o escritor alargando o espaço desenhado pela frase (the marginal minute of the dark) para depois fechá-lo com a palavra exata para derrubar todas as outras antes estrategicamente posicionadas na frase: "mistaken".
Um curtíssimo apanhado de frases ou pedras-de-toque, creio que na esteira do que o Stanley Fish fez num livro voltado também à arte de apreciar os meandros com que bons escritores esculpem suas frases, poderia começar com essa daqui da Katherine Mansfield:
Rosabel looked out of the windows; the street was blurred and misty, but light striking on the panes turned their dullness to opal and silver, and the jewellers' shops seen through this, were fairy palaces
É do comecinho de um conto que a autora escreveu aos 20 anos. Impressionante. O clima está chuvoso, e a forma com que Mansfield descreve a paisagem lá fora da perspectiva de uma passageira de um ônibus presume-se abafado é excelente; a cereja do bolo, porém, é a comparação com "fairy palaces", que não simplesmente é uma imagem plausível diante do jogo de luz da cena ("their dullness to opal and silver") como, ainda, revela muito, muitíssimo, quase tudo sobre a psicologia da personagem.
Já um exemplar de frase concisa, enxuta, lapidar, ótima como os melhores dos ótimos versos que conheço, é essa daqui, do David Foster Wallace no capítulo inicial do seu Infinite Jest:
Sharp curved palm-shadows move slightly over the pine table's shine, the one head's shadow a black moon.
O protagonista está enfadado com a situação em que se encontra e seu quadro mental começa a mudar para algo mais sombrio. A imagem corriqueira de ver a sombra das palmeiras lá fora ser lançada sobre a mesa de pinho se transforma numa metáfora poderosa, a do surgimento da lua negra, mas isto numa frase que emprega todas as palavras com a funcionalidade exata, adequada. Veja a sonoridade da consoante S no início da frase, a discreta rima interna em "pine table's shine" e a eficácia que o efeito de justaposição recebe quando o autor omite o termo comparativo em "the one head's shadow [is like] a black moon". Um efeito de luz suponho análogo pode ser extraído desta passagem de Joyce no Retrato:
The sunlight breaking suddenly on his sight turned the sky and clouds into a fantastic world of sombre masses with lakelike spaces of dark rosy light.
Com o passar do tempo esse romance tem se tornado meu favorito do Joyce, por razões obscuras e no mínimo curiosas. A sonoridade do final da frase, com o magnífico composto "lakelike", situado no alto dos melhores neologismos do autor, é estupenda uma vez que dá ao leitor o que de palpável a descrição possa oferecer, já que pega a transição de luz da cena e a simula in vitro dentro do vocábulo, com a variação singela da vogal A em I: lAke-lIke. As melhores descrições são assim: não apenas o escritor demonstrando ter um olho atento e vivo às mais peculiares minúcias e aos mais significativos panoramas, como, ainda, demonstrando um domínio verbal admirável ao escolher as palavras mais afiadas e ao urdir um ritmo, uma sonoridade encantatória capaz de fazer o leitor imergir profundamente em águas inesquecíveis.
Raduan Nassar, em seu Lavoura arcaica, tem um trabalho ótimo a nível rítmico quando escreve:
e ao som da flauta a roda começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos virilmente contra o chão.
Perceba que as vírgulas no início pontuam células rítmicas menores, espaçadas, um prelúdio para o grande movimento a partir do verbo "ensaiando", que acelera a nossa leitura até sermos embalado por um longo trecho de ritmo jâmbico, isto é, uma sílaba fraca seguida de outra forte: "ao TOque SURdo e FORte (...)". Não é só descrever a dança. É sentir a força "dos pés batidos virilmente contra o chão".
Precisão vocabular, a seu turno, é o que encontraremos nesta frase sem reparos de Dalton Trevisan:
Sentia a fragrância das flores murchas e das quatro velas - ao piscar do pavio as sombras investiam porta adentro.
É possível, mais uma vez, deduzir todo o quadro psicológico do conto só a partir de uma frase assim. Não há absolutamente nenhuma palavra supérflua. Nenhuma. Meu Deus, é impressionante. O uso de um verbo como "investiam", ao fim da frase, é memorável; denota uma consciência e um domínio irretocável do escritor para com a matéria narrada. A personagem do conto está lidando com a memória do pai que acabara de falecer e cujo corpo jaz em vigília num aposento ao lado. O odor das flores murchas misturado ao das velas - quatro velas, número exato para que suponhamos que tipo de crendices atuaram na montagem do velório -, por si só, já ambientam o leitor; é quando, porém, Trevisan narra o piscar do pavio, que ele dá um passo além do que já era ótimo por si só, mostrando ao leitor de forma sutil, como sutil deve ser a boa narrativa, que um efeito de luz corriqueiro é o suficiente para que a protagonista se sinta acuada e aterrorizada: "investiam porta adentro".
Outro autor de que gosto muito no quesito frases bem feitas é o bom e velho Thomas Hardy. Tess é um romance ótimo nesse sentido. Há passagens dele simplesmente memoráveis, a exemplo daquela em que a Tess acabou dormindo durante uma viagem a cavalo e, quando acordou, viu o animal agonizando após por acidente ter sido espetado pelo galho pontudo de uma árvore. Ou então:
On the morning appointed for her departure Tess was awake before dawn—at the marginal minute of the dark when the grove is still mute, save for one prophetic bird who sings with a clear-voiced conviction that he at least knows the correct time of day, the rest preserving silence as if equally convinced that he is mistaken.
A ironia em sua melhor forma, o escritor alargando o espaço desenhado pela frase (the marginal minute of the dark) para depois fechá-lo com a palavra exata para derrubar todas as outras antes estrategicamente posicionadas na frase: "mistaken".