Dom Pedro II.

A  única figura política de nosso país por quem tenho respeito e, mais ainda, uma certa admiração, é Dom Pedro II. Lembro a primeira vez que li, um tanto ao acaso, o livro simpaticíssimo de Lilia Schwarcz e Rui de Oliveira, O Príncipe Triste, título adequado para uma história que me pareceu um tanto melancólica. De seus atributos como pessoa, exemplares até onde tive conhecimento, aquele que ainda hoje mais me impressiona é a estupenda erudição do imperador, que conhecia diversos idiomas, do grego e latim ao sânscrito, hebraico e árabe.

Foi um tradutor notável. Além de ter sido o primeiro a traduzir direto do árabe as Mil e uma noites, traduziu a Odisseia do grego, segundo lemos em algumas entradas de seus diários nas quais o imperador nos relata que comparava sua versão com traduções alemãs, francesas e a de Odorico Mendes. Infelizmente, o que escancara um pouco a chaga aberta da displicência com o passado de nossa cultura letrada, conquistado a tanto custo!, a tradução do imperador nunca chegou a ser publicada, mas, a crer no que fez com o Prometeu Acorrentado de Ésquilo, é provável que tenha vertido o épico homérico em prosa, o que em absoluto não implica dizer que desconhecesse os meandros da tradução em verso.

Muito pelo contrário.

Sua tradução para o episódio de Francesca de Rímini no canto V do Inferno da Divina Comédia é uma das melhores já realizadas entre nós, a ser posta com todo louvor ao lado de outras tão inspiradas quanto as de Dante Milano, Augusto de Campos, Vasco da Graça Moura e Jorge Wanderley. Um único exemplo basta: o verso final do canto, E caddi come corpo morto cade, uma das joias definitivas do grande poema dantesco, de uma sonoridade estupenda e de um poder sugestivo sem igual. Augusto de Campos, na nota introdutória que fez à passagem ao incluí-la em seu O Anticrítico, da década de 80, nota que a maioria dos tradutores inexplicavelmente foge de traduzir a pirotecnia dessa pedra-de-toque. O imperador é certeiro assim como há que ser:

E caí como corpo morto cai.

Outro exemplo ótimo da consciência que Dom Pedro II tinha a respeito do assunto gira em torno de um episódio narrado pelo barão de Paranapiacaba, importante tradutor de Ésquilo, Plauto e La Fontaine, dentre outros. O barão nos conta que José Feliciano de Castilho, a seu turno um importante erudito e tradutor de obras latinas entre nós, destaque para Marcial, certa feita traduziu o episódio do bosque de Marselha no canto III da Farsália de Lucano. Diante de parte do verso 411, arboribus suus horror inest, chegou a: "Um mudo horror as árvores abrange", a mesma solução adotada por Bocage. O imperador fez-lhe uma correção na passagem, sugerindo que mudasse para

Soturno horror às árvores inere

Muitíssimo melhor, ampliando o efeito sonoro da consoante R ao longo do verso todo graças à retirada do artigo indefinido, à inclusão do adjetivo Soturno logo no início e ao uso do verbo inerir, rente o original latino: inest.

O barão também relata que na passagem Victrix causa Diis placcuit, sed uicta Catoni, Dom Pedro II, ao ler a tradução de Castilho, "A causa vencedora aprouve aos Deuses, / E a vencida a Catão", perguntou se não seria possível traduzir o hexâmetro num único verso. Ora: com isso o imperador, que era um admirador confesso das versões de Odorico Mendes e que tinha todo um pendor neoclássico, mostra que mantinha apreço pela concisão na tradução dos clássicos, qualidade admirável a meu ver.