Discurso floral de Dafne.

Passei batido por esse poema mesmo tendo relido nem sei quantas vezes o livro em que foi publicado - Icterofagia. Não sei por quê. É um livro farto, repleto de técnicas e procedimentos e pérolas, mas explicar por que cargas d'água um poema incrustado logo ali no comecinho tenha me passado quase desapercebido, é um mistério. Só fui prestar atenção nele depois de ouvir alguns comentários do Gustavo Ribeiro a seu respeito. Leiamos:

DISCURSO FLORAL DE DAFNE
TRANSFORMADA EM LOUREIRO
Why so green and lonely?
Thom Yorke
FOLHAS cresciam EM MIM
SEMENTES cotilédones
          verdejantes
 CURVAS gavinhas
a EXPLOSÃO da Natureza
tocava a ponta dos meus
        DEDOS
musgoflamantes
as LASCAS do tronco
meu pescoço
TUFOS e MOITAS e LÍQUENES
vêm agora germinando
entre os COGUMELOS
INFLORESCÊNCIAS
OCOS de árvore
ESPIRAIS de filotaxia
CARVALHO PINHEIRO ARAUCÁRIAS
              loureiro
                sou
ou toda VIDA VERDE
sobre a TERRA?
os nós dos anos
CONTADOS
na minha cintura
BULBOSAS curvaturas prenderiam meus pés
na VERDURA
gramínea
sangue vermelho
depura-se
no BRANCO LEITOSO
da seiva
meus cabelos tocam o ar mais
alto puro
flutuam verdes contra
o glorioso éter
               AZUL
                OH
pálida realidade de quando
caminhava pelos
            PRADOS
ou servia minha forma
bela juvenil
aos OLHOS do frágil amor
de flechas sinuosas
CONSTANTE e FIRME
eis-me tornada
em mim
mesma.
DAPHNE SEMPERVIRENS

É um poema estupendo. A passagem de Ovídio a que faz menção, no livro I das Metamorfoses, é essa daqui:

uix prece finita torpor grauis occupat artus,
mollia cinguntur tenui praecordia libro,
in frondem crines, in ramos bracchia crescunt,
pes modo tam uelox pigris radicibus haeret,
ora cacumen habet: remanet nitor unus in illa.

Do muito que pode ser dito a seu respeito, o título guarda pelo menos dois aspectos um tanto peculiares. Discurso é coisa no geral usada quando queremos nos referir à ladainha que um engravatado diz no púlpito ou o que um aluno aliviado lê com voz trêmula na formatura; hoje, curiosamente, é um termo muito querido dentro dos estudos literários e remete a um estado inabarcável de coisas, indo do que foi escrito em verso até o que de fato está sendo debatido no âmbito político, passando pelos romances, notícias, decisões judiciais e fuxicos jornalísticos. Discurso como aquilo que em suma podemos fazer com a língua, discurso, aqui, como uma categoria retórica, ou seja, como aquilo capaz de provocar efeitos quaisquer na audiência, no público. Em Dirceu Villa, poeta tão atento, atento como poucos, à seiva que corre nos vocábulos, uma palavra como discurso claramente se liga à retórica tradicional e passa a designar também o estudo daquilo que Aristóteles definiu de maneira muito célebre como a ciência do contingente. O que a retórica tradicional pretendia era estabelecer algumas balizas para a comunicação bem sucedida e alicerçá-las na autoridade dos clássicos, o que implica dizer que era por meio da retórica tradicional que a produção e a recepção dos discursos produzidos nas mais diversas áreas era experimentado, e tanto o poeta que se propunha a escrever um poeminha povoado de pastores e suspiros amorosos, quanto o público disposto a apreciar sua elaboração artística, tinham na retórica, justamente, as balizas necessárias. A retórica, em suma, como um corpo organizado de saberes compartilhados pela inteligência de um tempo.

Mas aí entra o adjetivo floral, que, por óbvio, se liga ao fato de que o poema inteirinho está repleto de imagens botânicas: folhas, sementes, cotilédones, gavinhas, tufos, moitas, líquenes, cogumelos. No entanto, penso que podemos ir um pouquinho mais a fundo. A retórica tradicional ensinava, dentre diversas outras coisas, a como florear o discurso de maneira adequada, ou seja, a como aplicar os adornos e as técnicas capazes de fazer ver a perícia do autor. Por mais que hoje o floreio seja visto como um espalhafato via de regra desnecessário e responsável por lançar ao limbo as duas horas e trinta minutos em que o palestrante ficou gesticulando para uma plateia entorpecida, floreio, adorno, graciosidade e palavras de mesmo jaez designavam a perícia com que alguém empregava os recursos e técnicas tradicionais em suas obras. Coisa que o Dirceu faz muito bem.

Quanto ao título, é o que eu queria dizer. Prosseguindo um pouco, pergunto: que fazer desse uso algo arbitrário de palavras em caixa alta ao longo do texto? Como ler isso? As palavras capitalizadas parecem deixar a leitura difícil, penosa. Concordam? Em partes, convenhamos. Um primeiro efeito óbvio é o de que quando lemos uma palavra grafada em caixa alta, nós automaticamente lhe damos ênfase. Então se o Dirceu usa isso de maneira um tanto irregular ao longo do texto, é como se ele estivesse querendo imprimir um sistema irregular de ênfases ao processo de metamorfose de Dafne. E se falo em irregularidade, é porque eu pelo menos não consegui encontrar padrão nenhum por trás desses usos. Pode até ser que exista, mas, se existir, eu sinceramente ignoro.

Como segunda hipótese eu até poderia sugerir que as palavras capitalizadas indicam alguns termos de certa importância no texto, geralmente palavras de cunho botânico. Faria sentido, se tantas outras em minúsculas não apontassem num sentido diverso. No verso cinco, por exemplo, embora "explosão" esteja em caixa alta, "Natureza" se limita a grafar a inicial em maiúscula. Qual a lógica de um procedimento assim? Nenhuma, a priori. Eu diria que no processo de metamorfose de Dafne, estamos diante de um crescimento como que caótico, rizomático (emprego o termo remetendo àquele texto do Deleuze e do Guattari, do qual eu sei que o Dirceu tem ciência), em que as relações de sentido vão acontecendo de maneira muito mais tópica e circunstancial do que exatamente obedecendo a um princípio prévio, anterior ou enraizado de construção. No verso 3, o adjetivo "verdejantes" é de importância notória no texto, afinal de contas o poema termina com o particípio presente latino "semperuirens" referindo-se a Dafne, cuja tradução seria algo como "sempre-verdejante" ou "sempre-virente", se quisermos nos aproveitar da palavra já existente em português. Por que, então, aparece em minúscula? Porque, eu arriscaria dizer, estamos no início da metamorfose; a mesma explicação poderia ser dada para o porquê de "em mim", no primeiro verso, estar em maiúscula (indicando que algo - folhas, no caso, ou, mais amplamente, a Natureza - cresce dentro da personagem de maneira violenta e abrupta) e, no penúltimo verso, em minúscula (indicando que a metamorfose chegou ao fim e a personagem completou o processo de aquisição de uma nova essência). Logo no próximo verso, teremos "curvas" em caixa alta e "gavinhas" em minúscula. Por quê? Porque, eu arriscaria dizer, o poeta quer passar uma ideia de irregular, de superfície nem um pouco plana. E então, já no verso seguinte, antes comentado, o fato de que "explosão" esteja todo em maiúsculas claramente sugere alguma coisa que irrompe e explode, e se "Natureza" se limita a grafar a inicial maiúscula, é para dar a entender de modo claro que a natureza aqui é uma entidade maior, quase viva. Mística.

Consigo fornecer explicações, eu penso, para mais algumas dessas ocorrências, e penso que o leitor não achará dificuldades em ler passagens como "TUFOS e MOITAS e LÍQUENES" ou "CARVALHO PINHEIRO ARAUCÁRIAS" e enxergar, aí, o adjetivo "floral" do título funcionando a todo vapor. Por que, todavia, passagens como "gramínea / sangue vermelho" ou "da seiva / meus cabelos tocam o ar mais / alto puro" não apresenta palavra alguma capitalizada, é algo a que não consigo responder, do mesmo modo que não saberia responder porque os ramos da árvore frente minha casa cresceram como cresceram ou sua raiz foi dar no cano de esgoto quadras adiante. Processo caótico, portanto, descritível só até certo ponto, ante o qual podemos, graças também a outras ferramentas de construção de sentido como o recorte irregular e instável dos versos, alguns mais longos, outros mais curtos, alguns de sentido completo, outros com cavalgamentos veementes; ante o qual podemos antever a metamorfose da personagem.

Uma última hipótese, com a qual encerro o texto, é a de nos reportarmos ao processo de capitalização das palavras na tipografia antiga. Como se sabe, nos manuscritos greco-romanos e em parte dos manuscritos medievais, escreviam-se as palavras todas em maiúsculas e sem espaço algum entre elas, procedimento bastante peculiar que todavia não causava confusão aos leitores graças à natureza sintética de idiomas como o latim. Com a invenção da imprensa e a popularização dos procedimentos de impressão, passou-se a usar tipos para caracteres minúsculos, mas o caminho até que alcançássemos regras claras de estilo para capitalização das palavras, ou seja, decidir quando e como iniciar com maiúsculas, foi longo. Se hoje empregamos maiúsculas no começo de frases, em nomes próprios, às vezes no início dos versos e para destacar qualquer tipo de ideia que se queira geral, abrangente e universal, na prática até meados do século XVIII a coisa corria muito mais livre, como, de resto, o era em relação a tantas coisas na língua. Tópicos tão caros à gramática tradicional, capazes de pôr um emprego ou uma vaga num certame público em risco, tais como ortografia e acentuação, eram muito mais frouxos (o adjetivo provavelmente não é o ideal) do que hoje, e quem se puser a ler as primeiras edições das obras camonianas ou dos sermões de Vieira se espantará com vírgulas colocadas às vezes até entre sujeito e verbo ou com a grafia de uma palavra capaz de mudar num relance de páginas.

É possível que Dirceu tenha pensado nisto ou que ao menos tivesse vivo na memória o exemplo de tais autores, que pontuavam e grafavam seus textos de uma maneira muito livre, movidos a uma atribuição de sentidos e ênfases nem sempre muito clara ao leitor. Habitar esses mistérios, vislumbrar essa lógica nem um pouco linear, capaz de conectar ideias tão distantes de modos a princípio arbitrários, é uma característica peculiar dos bons artistas.