Elizabeth Bishop na Flip.
Elizabeth Bishop é a mais nova homenageada da Flip. Reflitamos. Sucintamente, eu com meus botões penso o seguinte: sim, a Bishop apoiou a ditadura e manteve uma relação muito complicadinha com o Brasil, às vezes desovando uma opinião esnobe a ponto de agressiva com a gente e às vezes um carinho até bonito de se ver. O Paulo Henriques Britto, seu grande tradutor e divulgador entre nós, já analisou isso muitíssimo bem. Ela foi basicamente uma estrangeira que não empreendeu lá muitos esforços em entender o país, e, quando o fez, foi muito na base do seu jeitão pessoal. Se foi uma intérprete admirável por exemplo de alguns dos quadros mais genuínos do que é a vida no interior do país, a exemplo de poemas como Arriving at Santos ou Under a window, e até mesmo nas grandes metrópoles, como no caso da sua Ballad of the burglar of Babylon, por outro não empreendeu análises panorâmicas ou aprofundadas da nossa cultura, meio que se limitando ao que lhe chegava, bem à maneira do que ela, comparando sua escrita a uma ave sandpiper nas areias da praia, diz:
As he runs,
he stares at the dragging grains.
Agora é claro que não é e nem pode ser isso o que nos fará desprezar sua poesia como a daquela-autora-que-apoiou-a-ditadura. Que me desculpem, mas reduzir Elizabeth Bishop a isso é de cortar o coração. E digo não apenas porque ela é uma das minhas autoras favoritas e responsável por moldar o que eu basicamente aprecio e espero quando vou ler um poema. Falo de sua perícia técnica ser exemplar e modelar, uma verdadeira pedra-de-toque, um verdadeiro amolador de facas capaz de deixar mais aguda e arejada a consciência de quem lê. Nos versos acima, por exemplo, contemplamos uma imagem simples que parece se deixar apalpar, e aquilo que o sandpiper do título enxerga passa a ser figurativamente o que o leitor enxerga quando pronuncia a admirável sonoridade compacta de dragging grains.
Entendo que as pessoas se assustem com o mínimo sinal de qualquer coisa que de algum modo repristine a ideologia do governo. Não podemos nunca nos esquecer que somos governados por um imbecil que tece loas ao regime militar sempre que pode. Homenagear uma enormíssima poeta, dessas que tornam minúsculos quaisquer superlativos, é sempre muito bom, mas não deixa de ser no mínimo preocupante imaginar que nos corredores do Palácio da Alvorada a besta quadrada com faixa presidencial no peito possa descobrir ao acaso que a tal homenageada disse coisas que se encaixam como uma luva no que ele mesmo acabou de gesticular para seus seguidores ávidos.
Repito: entendo sim esse temor. Só não acho que devemos passar a escolher os autores encurralando-nos sempre que o fantasma de apropriações reacionárias arrastar seus grilhões. E o motivo é simples: esse fantasma toma de assalto o que estiver à sua frente. O segredo dele é esse. Ele não precisa de muito. Nunca me esqueço por exemplo de um dos filhos do inominável perguntando para um rapaz que conduzia um louvável projeto de leitura para presos se os livros repassados eram bons mesmo ou bobajadas doutrinadoras. Moral da história: a literatura vai ser instrumentalizada de um jeito ou de outro. Basta cair na mão desses gorilas fardados. Como eles não sabem o que fazer, é isso o que farão: instrumentalizar, manusear como se manuseia uma adaga ou um cartucho de balas. Se no fim das contas formos temer que as opiniões pessoais da Bishop sirvam de meio para que ela seja cooptada pelo discurso reacionário predominante no país, cedo ou tarde ficaremos paranoicos nos precavendo ao menor sinal de reacionarismo nas redondezas.
Ler a poesia da Bishop de uma maneira honesta, arguta, crítica e percuciente será a única e a melhor maneira de bater de frente com esse estado de coisas justamente por não ser o que os asseclas do governo seriam capazes de fazer. Esse pessoal não gosta tanto de arte assim. Mas não mesmo. Posam de apreciadores da alta cultura e consomem horas intermináveis de podcasts mortalmente entediantes, mas não se exercitam no embate solitário corpo-a-corpo com um texto. Acho até bem provável que o grosso dessa turma sequer vai se preocupar com a Flip. Tudo o que há para eles é a postura de gárgula ou leão-de-chácara, paladinos rangentes de qualquer coisa de etéreo e vago que se possa traduzir em jargões como Ocidente-em-Ruínas, Sociedade-Decadente, Valores-Perdidos e por aí vamos. São o estofo do que chamo de conservadorismo mefistofélico, isto é, aquele conservadorismo que à maneira do que Mefistófeles (!) diz a certa altura da primeira parte do Fausto, nada mais é que um espírito que sempre nega: nega tudo o que seja de esquerda ou pelo menos pareça ser de esquerda o suficiente, mas nunca, nunca, realiza juízos positivos de valores que deveriam ser defendidos e conservados por si só, independente do que esteja acontecendo lá fora.
Acrescento também, seguindo o que foi dito pelo Ruy Lozano em rede social, que é curioso e talvez sintomático que fiquemos tão apavorados assim com a escolha da Bishop e pouco mais de uma década atrás tenhamos nos calado quando a Flip homenageou um cara com o Nelson Rodrigues, que era basicamente uma cisterna de bobagens aplaudidas pelo setor mais enrustido da inteligência nacional. Se nos concentramos na obra do Nelson durante aquela edição da Flip, lendo seu teatro a partir daquilo que ele de fato é, ou seja, genial, o mel do melhor do que já se produziu por aqui, é claro que temos que fazer isso também com a Bishop. Repito: a única maneira, a melhor maneira.
Por fim, não exageremos no papel da Flip. A Flip não é o mesmo que um simpósio acadêmico sobre uma obra. Ela enseba a vida pessoal do artista e vasculha suas gavetas, ela enche as burras de casas editoriais e engravata pesquisadores. Mas ela não fica só nisso. Em várias outras edições da Flip os eventos a respeito do autor principal foram solapados por diversas outras mesas muito mais interessantes. A própria programação oficial da Flip nem sempre é o que de mais interessante está acontecendo nas ruas de Parati. Na Flip o que encontramos é uma celebração da literatura para além de sua dimensão estética e artística propriamente dita, para além daquele tipo de elaboração crítica que vez em quando vai dar na veneta de uma tese de doutorado, e sim, também, a celebração da vida literária no que de palpitante e palpável ela possa ter. Estamos falando de lançamentos, descontos, autógrafos, conversas de boteco e um clima que faz, segundo fantasio, daquela uma ocasião especial.
Quando penso na Flip, penso, realmente penso num festival que empreende esforços em redesenhar vozes consolidadas e alçar a patamares mais significativos a obra de quem merece uma atenção crítica maior, à maneira do que fez com Ruth Guimarães em 2017. Talvez não seja o momento mais oportuno e talvez abra um precedente indesejável de que estrangeiros que pernoitaram por aqui possam ser homenageados em edições futuras. É desejável que a Flip calibre suas antenas a fim de abranger estritamente o solo nacional, sem que isso implique tacanhez de sua visão crítica. Precisamos de esforços assim. Penso, porém e como dito, que neutralizar qualquer tipo de cooptação eventual da poesia da Bishop a opiniões políticas infelizes e ditas por uma estrangeira que tinha um conhecimento muito peculiar do país, percuciente nalguns casos e superficial noutros, só será possível por meio de uma análise detida e de um debate honesto. Ensinar lições assim no olho do furacão e mostrando que dá pra fazer muito mais do que sinais de arminha - será útil. Esperemos por isso.
As he runs,
he stares at the dragging grains.
Agora é claro que não é e nem pode ser isso o que nos fará desprezar sua poesia como a daquela-autora-que-apoiou-a-ditadura. Que me desculpem, mas reduzir Elizabeth Bishop a isso é de cortar o coração. E digo não apenas porque ela é uma das minhas autoras favoritas e responsável por moldar o que eu basicamente aprecio e espero quando vou ler um poema. Falo de sua perícia técnica ser exemplar e modelar, uma verdadeira pedra-de-toque, um verdadeiro amolador de facas capaz de deixar mais aguda e arejada a consciência de quem lê. Nos versos acima, por exemplo, contemplamos uma imagem simples que parece se deixar apalpar, e aquilo que o sandpiper do título enxerga passa a ser figurativamente o que o leitor enxerga quando pronuncia a admirável sonoridade compacta de dragging grains.
Entendo que as pessoas se assustem com o mínimo sinal de qualquer coisa que de algum modo repristine a ideologia do governo. Não podemos nunca nos esquecer que somos governados por um imbecil que tece loas ao regime militar sempre que pode. Homenagear uma enormíssima poeta, dessas que tornam minúsculos quaisquer superlativos, é sempre muito bom, mas não deixa de ser no mínimo preocupante imaginar que nos corredores do Palácio da Alvorada a besta quadrada com faixa presidencial no peito possa descobrir ao acaso que a tal homenageada disse coisas que se encaixam como uma luva no que ele mesmo acabou de gesticular para seus seguidores ávidos.
Repito: entendo sim esse temor. Só não acho que devemos passar a escolher os autores encurralando-nos sempre que o fantasma de apropriações reacionárias arrastar seus grilhões. E o motivo é simples: esse fantasma toma de assalto o que estiver à sua frente. O segredo dele é esse. Ele não precisa de muito. Nunca me esqueço por exemplo de um dos filhos do inominável perguntando para um rapaz que conduzia um louvável projeto de leitura para presos se os livros repassados eram bons mesmo ou bobajadas doutrinadoras. Moral da história: a literatura vai ser instrumentalizada de um jeito ou de outro. Basta cair na mão desses gorilas fardados. Como eles não sabem o que fazer, é isso o que farão: instrumentalizar, manusear como se manuseia uma adaga ou um cartucho de balas. Se no fim das contas formos temer que as opiniões pessoais da Bishop sirvam de meio para que ela seja cooptada pelo discurso reacionário predominante no país, cedo ou tarde ficaremos paranoicos nos precavendo ao menor sinal de reacionarismo nas redondezas.
Ler a poesia da Bishop de uma maneira honesta, arguta, crítica e percuciente será a única e a melhor maneira de bater de frente com esse estado de coisas justamente por não ser o que os asseclas do governo seriam capazes de fazer. Esse pessoal não gosta tanto de arte assim. Mas não mesmo. Posam de apreciadores da alta cultura e consomem horas intermináveis de podcasts mortalmente entediantes, mas não se exercitam no embate solitário corpo-a-corpo com um texto. Acho até bem provável que o grosso dessa turma sequer vai se preocupar com a Flip. Tudo o que há para eles é a postura de gárgula ou leão-de-chácara, paladinos rangentes de qualquer coisa de etéreo e vago que se possa traduzir em jargões como Ocidente-em-Ruínas, Sociedade-Decadente, Valores-Perdidos e por aí vamos. São o estofo do que chamo de conservadorismo mefistofélico, isto é, aquele conservadorismo que à maneira do que Mefistófeles (!) diz a certa altura da primeira parte do Fausto, nada mais é que um espírito que sempre nega: nega tudo o que seja de esquerda ou pelo menos pareça ser de esquerda o suficiente, mas nunca, nunca, realiza juízos positivos de valores que deveriam ser defendidos e conservados por si só, independente do que esteja acontecendo lá fora.
Acrescento também, seguindo o que foi dito pelo Ruy Lozano em rede social, que é curioso e talvez sintomático que fiquemos tão apavorados assim com a escolha da Bishop e pouco mais de uma década atrás tenhamos nos calado quando a Flip homenageou um cara com o Nelson Rodrigues, que era basicamente uma cisterna de bobagens aplaudidas pelo setor mais enrustido da inteligência nacional. Se nos concentramos na obra do Nelson durante aquela edição da Flip, lendo seu teatro a partir daquilo que ele de fato é, ou seja, genial, o mel do melhor do que já se produziu por aqui, é claro que temos que fazer isso também com a Bishop. Repito: a única maneira, a melhor maneira.
Por fim, não exageremos no papel da Flip. A Flip não é o mesmo que um simpósio acadêmico sobre uma obra. Ela enseba a vida pessoal do artista e vasculha suas gavetas, ela enche as burras de casas editoriais e engravata pesquisadores. Mas ela não fica só nisso. Em várias outras edições da Flip os eventos a respeito do autor principal foram solapados por diversas outras mesas muito mais interessantes. A própria programação oficial da Flip nem sempre é o que de mais interessante está acontecendo nas ruas de Parati. Na Flip o que encontramos é uma celebração da literatura para além de sua dimensão estética e artística propriamente dita, para além daquele tipo de elaboração crítica que vez em quando vai dar na veneta de uma tese de doutorado, e sim, também, a celebração da vida literária no que de palpitante e palpável ela possa ter. Estamos falando de lançamentos, descontos, autógrafos, conversas de boteco e um clima que faz, segundo fantasio, daquela uma ocasião especial.
Quando penso na Flip, penso, realmente penso num festival que empreende esforços em redesenhar vozes consolidadas e alçar a patamares mais significativos a obra de quem merece uma atenção crítica maior, à maneira do que fez com Ruth Guimarães em 2017. Talvez não seja o momento mais oportuno e talvez abra um precedente indesejável de que estrangeiros que pernoitaram por aqui possam ser homenageados em edições futuras. É desejável que a Flip calibre suas antenas a fim de abranger estritamente o solo nacional, sem que isso implique tacanhez de sua visão crítica. Precisamos de esforços assim. Penso, porém e como dito, que neutralizar qualquer tipo de cooptação eventual da poesia da Bishop a opiniões políticas infelizes e ditas por uma estrangeira que tinha um conhecimento muito peculiar do país, percuciente nalguns casos e superficial noutros, só será possível por meio de uma análise detida e de um debate honesto. Ensinar lições assim no olho do furacão e mostrando que dá pra fazer muito mais do que sinais de arminha - será útil. Esperemos por isso.