As espadas e o orvalho.
Sabendo que um certo mouro arrastava as asas para sua filha Desdêmona, Brabâncio envia capangas que o tragam ainda que à força a seu encontro. Dito e feito. O princípio de uma confusão se arma e Shakespeare limita a rubricar: “Todos sacam as espadas”.
Como muitas outras na peça, a passagem é notável. Das várias reações que despontam, a de Otelo merecerá minha atenção: Keep up your bright swords for the dew will rust them. E a mágica acontece – inteira, inteirinha. É um dos versos mais belos da língua inglesa e não tenho a menor dúvida que de qualquer outra que se queira considerar. A sonoridade, por exemplo, é estupenda e habilidosíssima: falamos de pequenas cintilações sonoras que surgem aos pares povoando o verso, ele todo monossilábico, de momentos mágicos. É o que ocorre com os pares keep-up, bright-swords e dew-will.
A par disto, a estrutura rítmica. O verso mais usado por Shakespeare em suas peças, e um dos versos mais célebres de toda a língua inglesa, é o chamado pentâmetro jâmbico, consistente, teoricamente, de cinco sequências de jambos enfileiradas. Um jambo é a união de uma sílaba fraca e uma sílaba forte, algo que grosso modo podemos traduzir para uma sílaba átona e outra tônica como no caso de “você”: “vo-CÊ”.
Todavia, inúmeras possibilidades habitam a estrutura do pentâmetro jâmbico, sempre ao sabor da genialidade artística e do combate à monotonia, esta última, por certo, o pior pesadelo de qualquer dramaturgo. O poeta pode, por exemplo, substituir um jambo por um troqueu, que é simplesmente quando se troca a posição dos acentos, passando a ser, agora, uma sílaba forte e outra fraca. Ou então ele pode adicionar uma sílaba extra no início do verso ou após uma pausa, por exemplo aquela do final do verso, que é quando o leitor fecha os olhos e sente o verso de algum jeito rodopiando dentro dele.
Shakespeare faz isso nesta frase mágica de Otelo. Ele começa com um troqueu (KEEP up), volta pro jambo (your BRIGHT) e então passa volta para o troqueu (SWORDS for). O que faz depois? Volta pro jambo (the DEW), quase como se estivesse bailando de lá pra cá, e dá uma última passada jâmbica (will RUST). A última sílaba (them) é desconsiderada, o que implica dizer que ela está em catacrese (sinônimo de “está sobrando”) e deve, portanto, sofrer anacruse (o mesmo que escondê-la debaixo do tapete).
É um modo de ler. Posso, por exemplo, dizer que o verso na verdade começa com um dátilo: uma forte e duas fracas (KEEP up your). Depois teríamos um espondeu – duas fortes (BRIGHT SWORDS) – e dois jambos arrematando o verso. Absurdo ler assim? É possível. O horizonte métrico da peça é o pentâmetro jâmbico, o que implica dizer que o leitor como que se predispõe a ouvir jambos em sequência. Estudos avançados de versificação chamam isso de contrato métrico. A ideia é simples: à medida que leio a peça ou o poema, eu como que me acostumo a ouvir um tipo de verso ou uma certa estrutura rítmica e, assim, crio uma expectativa. O poeta pode mudar as coisas da maneira que achar mais conveniente, desde que ele o faça de forma inteligente e nos deixe de queixo caído.
O problema é que falamos de uma peça teatral, onde a palavra final do assunto está nas mãos do ator e não exatamente do dramaturgo. Uma coisa é o desenho métrico ideal do poema; outra coisa é quando nosso aparato fônico traduz aquilo em grunhidos compreensíveis. Penso que a maneira dramaticamente mais correta de interpretar a passagem é a partir da segunda leitura, pois assim o ator consegue dar uma ênfase muito maior ao choque de sílabas fortes em bright swords. É o momento bélico e denotativo da passagem. O que se segue depois é como que uma brisa apaziguadora a partir de duas sílabas breves seguidas (for the) e da própria força conotativa da passagem, onde a brandura do orvalho, que implica a paciência de ser gestado no sereno da noite, enferrujará as espadas, as quais (tamanha a força sugestiva do verso!), serão expostas ao relento de uma briga em vão que durará tempo suficiente para que o simples orvalho possa enferrujar o aço de suas lâminas.
Pois bem. E você é um tradutor. E está traduzindo Otelo. E se vê diante deste verso, mas, porque seu nome é Lawrence Flores Pereira, premiado tradutor de outra obra do Bardo tão difícil quanto (Hamlet), consegue a felicidade de traduzir como: “Guardem as espadas faiscantes, antes que o orvalho / As corroa”.
Não consegue manter tudo em um único verso, é verdade, mas consegue, a partir agora de assonâncias envolvendo a primeira vogal do alfabeto, os pares cintilantes de sonoridades, do aberto (guardem-espadas) ao anasalado (faiscantes-antes). E então, numa transição, emprega com maestria “orvalho”, que pontua a vogal tônica A tal como o verso exige ao mesmo tempo em que propõe algo distinto com o sutil fonema “or-” preparando nossos ouvidos para “corroa”.
Notável. Mas vejam o que ele consegue em “faiscantes, antes”. Não é o mesmo que em bright swords? Sim, é o mesmo efeito dramático, a mesma ênfase que suscita um abalo na estrutura da frase seguido de uma calmaria sutil. Até então, o que de melhor tínhamos para este verso era o que Onestaldo de Pennafort conseguiu com “Embainhai vossas armas reluzentes, / Para que não as embacie o orvalho”; Carlos Alberto Nunes, “Guardai essas espadas, que o sereno / Vai causar-lhes ferrugem”, e Barbara Heliodora, “Guardai as vossas lâminas brilhantes / Antes que o orvalho venha enferrujá-las”, passaram um tanto longe da concisão encantatória do verso shakespeariano.
Como muitas outras na peça, a passagem é notável. Das várias reações que despontam, a de Otelo merecerá minha atenção: Keep up your bright swords for the dew will rust them. E a mágica acontece – inteira, inteirinha. É um dos versos mais belos da língua inglesa e não tenho a menor dúvida que de qualquer outra que se queira considerar. A sonoridade, por exemplo, é estupenda e habilidosíssima: falamos de pequenas cintilações sonoras que surgem aos pares povoando o verso, ele todo monossilábico, de momentos mágicos. É o que ocorre com os pares keep-up, bright-swords e dew-will.
A par disto, a estrutura rítmica. O verso mais usado por Shakespeare em suas peças, e um dos versos mais célebres de toda a língua inglesa, é o chamado pentâmetro jâmbico, consistente, teoricamente, de cinco sequências de jambos enfileiradas. Um jambo é a união de uma sílaba fraca e uma sílaba forte, algo que grosso modo podemos traduzir para uma sílaba átona e outra tônica como no caso de “você”: “vo-CÊ”.
Todavia, inúmeras possibilidades habitam a estrutura do pentâmetro jâmbico, sempre ao sabor da genialidade artística e do combate à monotonia, esta última, por certo, o pior pesadelo de qualquer dramaturgo. O poeta pode, por exemplo, substituir um jambo por um troqueu, que é simplesmente quando se troca a posição dos acentos, passando a ser, agora, uma sílaba forte e outra fraca. Ou então ele pode adicionar uma sílaba extra no início do verso ou após uma pausa, por exemplo aquela do final do verso, que é quando o leitor fecha os olhos e sente o verso de algum jeito rodopiando dentro dele.
Shakespeare faz isso nesta frase mágica de Otelo. Ele começa com um troqueu (KEEP up), volta pro jambo (your BRIGHT) e então passa volta para o troqueu (SWORDS for). O que faz depois? Volta pro jambo (the DEW), quase como se estivesse bailando de lá pra cá, e dá uma última passada jâmbica (will RUST). A última sílaba (them) é desconsiderada, o que implica dizer que ela está em catacrese (sinônimo de “está sobrando”) e deve, portanto, sofrer anacruse (o mesmo que escondê-la debaixo do tapete).
É um modo de ler. Posso, por exemplo, dizer que o verso na verdade começa com um dátilo: uma forte e duas fracas (KEEP up your). Depois teríamos um espondeu – duas fortes (BRIGHT SWORDS) – e dois jambos arrematando o verso. Absurdo ler assim? É possível. O horizonte métrico da peça é o pentâmetro jâmbico, o que implica dizer que o leitor como que se predispõe a ouvir jambos em sequência. Estudos avançados de versificação chamam isso de contrato métrico. A ideia é simples: à medida que leio a peça ou o poema, eu como que me acostumo a ouvir um tipo de verso ou uma certa estrutura rítmica e, assim, crio uma expectativa. O poeta pode mudar as coisas da maneira que achar mais conveniente, desde que ele o faça de forma inteligente e nos deixe de queixo caído.
O problema é que falamos de uma peça teatral, onde a palavra final do assunto está nas mãos do ator e não exatamente do dramaturgo. Uma coisa é o desenho métrico ideal do poema; outra coisa é quando nosso aparato fônico traduz aquilo em grunhidos compreensíveis. Penso que a maneira dramaticamente mais correta de interpretar a passagem é a partir da segunda leitura, pois assim o ator consegue dar uma ênfase muito maior ao choque de sílabas fortes em bright swords. É o momento bélico e denotativo da passagem. O que se segue depois é como que uma brisa apaziguadora a partir de duas sílabas breves seguidas (for the) e da própria força conotativa da passagem, onde a brandura do orvalho, que implica a paciência de ser gestado no sereno da noite, enferrujará as espadas, as quais (tamanha a força sugestiva do verso!), serão expostas ao relento de uma briga em vão que durará tempo suficiente para que o simples orvalho possa enferrujar o aço de suas lâminas.
Pois bem. E você é um tradutor. E está traduzindo Otelo. E se vê diante deste verso, mas, porque seu nome é Lawrence Flores Pereira, premiado tradutor de outra obra do Bardo tão difícil quanto (Hamlet), consegue a felicidade de traduzir como: “Guardem as espadas faiscantes, antes que o orvalho / As corroa”.
Não consegue manter tudo em um único verso, é verdade, mas consegue, a partir agora de assonâncias envolvendo a primeira vogal do alfabeto, os pares cintilantes de sonoridades, do aberto (guardem-espadas) ao anasalado (faiscantes-antes). E então, numa transição, emprega com maestria “orvalho”, que pontua a vogal tônica A tal como o verso exige ao mesmo tempo em que propõe algo distinto com o sutil fonema “or-” preparando nossos ouvidos para “corroa”.
Notável. Mas vejam o que ele consegue em “faiscantes, antes”. Não é o mesmo que em bright swords? Sim, é o mesmo efeito dramático, a mesma ênfase que suscita um abalo na estrutura da frase seguido de uma calmaria sutil. Até então, o que de melhor tínhamos para este verso era o que Onestaldo de Pennafort conseguiu com “Embainhai vossas armas reluzentes, / Para que não as embacie o orvalho”; Carlos Alberto Nunes, “Guardai essas espadas, que o sereno / Vai causar-lhes ferrugem”, e Barbara Heliodora, “Guardai as vossas lâminas brilhantes / Antes que o orvalho venha enferrujá-las”, passaram um tanto longe da concisão encantatória do verso shakespeariano.