Anti-Medusa.

O  drama, o grande drama que perpassa a obra toda do Bruno Tolentino é a constatação do modo triste como temos levado o conhecer o mundo e o conhecer a alma nos últimos séculos, ou, grosso modo, desde o humanismo. Para dar nome aos bois, e usando de imediato a expressão título de um de seus livros mais importantes, trata-se do chamado mundo como ideia, que é quando nós deixamos de enxergar o mundo como ele de fato é, com todas as suas contradições e contrastes e asperezas e conflitos morais, para enxergá-lo de uma maneira pretensamente analítica, seja adentrando em selvas escuras de conceitos que comumente nos fazem ver as coisas ao redor sob sua ótica, seja tentando enxergá-lo como uma coisa isenta de qualquer moral ou de quaisquer princípios transcendentais que, para todos os efeitos, sustentam o casebre todo: a ilusão de que posso experimentar o mundo apenas com a ponta dos dedos, à maneira de uma matéria amorfa e estranha, táctil, que posso colocar na lâmina de ensaio, a ilusão essencialmente cientificista de que o cabedal, vejam só, teórico que a ciência nos dá é suficiente para que eu possa vivenciar o mundo como aquilo que ele de fato é (no que, a partir deste ponto, o leitor pode rebobinar o que disse pouco antes no mesmo parágrafo: com todas as suas etc etc).

Um soneto, não dos meus preferidos, consegue mostrar isso de maneira bem didática:

Suponha-se a Medusa redimida,
uma anti-Medusa que acordasse
em seu poço de estátuas face a face
com a escuridão de pedra e, arrependida,
saudosa agora do fugaz, da vida,
de tudo o que exilou, enfim tentasse
um novo olhar, o olhar da despedida,
por exemplo, o olhar do desenlace,
da resignação… Pobre coitada!
Como trazer de volta agora aquela
doce fragilidade dantes, se ela
já mal recorda a ânsia, o quase-nada,
o brilho que era o ser? A madrugada
não volta a um calabouço sem janela.

No soneto acima, que por ser soneto talvez leve alguns incautos a pensarem que o Tolentino foi um rebento desgarrado da geração de 45 ou mesmo um parnasianista enrustido, o que, como creio que já tive oportunidade de comentar noutra ocasião aqui mesmo no bloguinho, é falso, afinal de contas parnasianismo para o Tolentino é o mesmo que ofensa, não sendo à toa que no auge daquela polêmica infeliz ele chama assim os concretistas ao compará-los com os sapos que Bandeira teria, segundo a lenda, ridicularizado em seu célebre poema, e falso também pois a poética do Tolentino está, do ponto de vista formal, muito mais próxima da dos românticos que da rigidez parnasiana, bastando citar seu uso do alexandrino espanhol ou de efeitos prosódicos como hiatos; no soneto acima, portanto, encontramos uma dramatização do mundo como ideia. A medusa, criatura mitológica capaz de tornar em pedra quem a olhasse nos olhos, está na solidão de sua sarjeta sonhando com um mundo que ela viu, ou tentou ver, em tempos passados. O que Tolentino quer representar é muito simples: quem trata o mundo como uma ideia faz basicamente o mesmo que a medusa ao olhar para a coisa qualquer. Petrifica. E o resultado é muito simples: você deixa de experimentar o mundo como uma coisa viva e passa a experimentar essa coisa absurda, porém não implausível, que é um mundo no qual tudo a seu redor perdeu a vida.

Mas o que acontece se você percebe, tragicamente, seu engano?

Tolentino responde com o soneto. Veja que ele começa numa suposição e veja que ele usa a palavra "redimida". Penso que não será preciso comentar com mais tardar a existência de um fundo religioso patente na escolha do vocábulo, afinal de contas não basta apenas que a medusa caia em si e sim que ela se submeta a um processo expiatório que não atingirá apenas a consciência superficialmente falando e sim seus recônditos mais profundos. Atingirá o espírito.

Se a medusa no primeiro verso era apenas medusa, a medusa do segundo será uma anti-medusa, uma medusa redimida. O que ocorre em seguida? Mais do que apenas percorrer o enredo do texto, penso que temos que ficar atentos à escolha das palavras. Note: a anti-medusa acordaria de seu poço de estátuas e, "face a face". Ora: há uma pontada irônica muito afiada na locução adverbial, afinal de contas a medusa não pode olhar nada face a face, pois, caso o faça, aquilo se tornará pedra. Podemos pensar que ela somente o pode pois é, agora, uma anti-medusa; mas creio que a leitura mais acertada é voltarmos ao fato de que a medusa despertou de seu poço de estátuas e agora se vê face a face "com a escuridão de pedra". E aqui sua tragédia: não se verá face a face com o mundo e sim com o resultado de ter passado tanto tempo vendo o mundo como uma ideia.

"saudosa agora do fugaz", abrindo a estrofe seguinte, acrescenta uma ideia importante dentro da visão de mundo tolentiniana. Para o poeta, ao contrário daquele tópico muitíssimo consagrado na literatura ocidental, a imortalidade da obra é uma ilusão. A obra de arte não deve pretender ser eterna e sim abraçar a sua mortalidade, a sua fugacidade, abraçar em suma a morte, aceitar que um dia tudo chegará ao fim e que chegar ao fim é a única maneira de sonhar com uma vida eterna em Cristo. Em seu olhar petrificante, a medusa conseguia eternizar as coisas tornando-as em pedra; porém, isso fez com que se afundasse num poço e mergulhasse de modo irremediável num reino de escuridão. Por isso se mostra hoje saudosa do fugaz, do que passa e não pode ser eternizado. Por isso Tolentino toma como equivalentes, ainda no mesmo verso, "fugaz" e "vida".

O que a medusa em seu drama algo patético (digo tendo em vista a tosca interjeição que encerra o segundo quarteto, "Pobre coitada!") tenta logo após é um olhar de despedida, um olhar de desenlace, uma maneira de abraçar a morte no seu desespero de reaver o que ironicamente perdeu: isto é, seu senso de mortalidade. Pois a mortalidade é um fato, o fim é um fato. Não se pode negá-lo. Negá-lo é uma ilusão. A tragédia do soneto é essa. A "doce fragilidade dantes" já não pode mais ser chegar a quem está afundada num poço pétreo de sombras. Quando, perto do fim do poema, Tolentino caracteriza a ânsia como "quase-nada", como "o brilho que era o ser", é importante que prestemos atenção à imagem que está sendo passada. O brilho não era o do ser. O ser era apenas um brilho, que, por ser brilho, por ser luz, passará, cessará, chegará ao fim. Enquanto não se tiver compreensão e aceitação da mortalidade, a madrugada jamais poderá chegar até a pobre coitada da medusa trancafiada em sua masmorra de conceitos.

A linguagem empregada, tateando em definições, em comparações, em cotejos, em formas de passar para o leitor o conceito (exatamente como acabo de fazer), revela um poeta cujo processo de composição floresce a nossa frente. Em certo sentido seria interessante indagar por que o poeta se permite usar uma expressão como "por exemplo" no verso oito ou mesmo porque encadeia termos e expressões em posição de equivalência durante tantas passagens ao longo do poema. Não seria em certo sentido sensato que se esperasse que ele escolhesse apenas uma dessas expressões ou mesmo que as condensasse numa única imagem? Não sei quanto a você, mas eu pelo menos costumo prezar muito num texto poético pela concisão e pelo uso de palavras justas que sejam capazes de dispensar um amontoado de outras. Veja como o Tolentino parece fugir disso, veja como ele está no soneto quase todo tateando em busca de expressões:

                                       enfim tentasse
um novo olhar, o olhar da despedida,
por exemplo, o olhar do desenlace,
da resignação…

Note: o olhar é chamado de "novo", de "da despedida", "do desenlace", "da resignação".

O efeito de um procedimento assim é imergir o leitor num pensamento e num conceito, num drama que vai se tornando palpável a nós, que vai adquirindo novos nuances em tempo real e sem a necessidade de que o pensamento se complete para que novas ideias sejam desenvolvidas. É como se Tolentino pretendesse que experimentássemos o olhar caracterizado em suas diversas faces, empregando palavras não como sinônimos perfeitos que serviriam então de incômodo estofo inútil para algo que poderia ser resumido escolhendo-se uma das expressões apenas. Na verdade, em seu processo de elaboração ele mostra que são sinônimas só a princípio, uma vez que no mergulho da exposição dramática do conceito elas sempre se revelam mais complexas.

Quando nos diz que o olhar é novo, por exemplo, está implicitamente dizendo que é novo para uma medusa que acabou de se redimir; já ao dizer, porém, que ele é um olhar "da despedida", está especificando, claro, que tipo de novidade há nesse olhar, mas está dando ao leitor uma dimensão trágica que não havia ficado suficientemente clara. Por isso colore o poema com outros matizes, ao dizer que o olhar é também de desenlace, isto é, de libertação, bem como de resignação. E com este último adjunto adnominal podemos notar como o quadro ficou mais rico, fazendo com que um olhar chamado apenas de novo passasse do trágico da despedida e do alívio do desenlace para uma conclusão melancólica de que se resignou ao poço de sombras pétreas em que se achava uma vez que não há nem pode haver salvação para quem se trancafia numa masmorra de conceitos e ideias sem abraçar as coisas como de fato são.