À larga rei belipotente povo.
Odorico Mendes talvez já seja um conhecido de vista do leitor. Suas traduções de Homero e Virgílio foram popularizadas entre nós quando, na primeira metade do século passado, saíram em elegantes coleções de largo alcance facilmente acháveis em qualquer biblioteca do país. A história de sua recepção entre nós diz muito sobre mudanças de gosto: por mais que fosse para alguns de seus contemporâneos, dentre eles ninguém menos que o bom e velho Gonçalves Dias, um notável homem de letras, para Sílvio Romero, nas páginas mais peculiares (peculiares?; vá lá: peculiares) de sua História, Odorico escreveu num português macarrônico, exagerado, excessivo. Intragável. Tal comentário repercutiria nos ouvidos de Antonio Candido, que a certa altura do Formação também faz um comentário de mesma verve, e só seria a custo interrompido graças ao esforço de intelectuais como Silveira Bueno, Haroldo de Campos e Antonio Medina Rodrigues, que viam em Odorico um tradutor criativo.
O que Sílvio Romero quis dizer por macarrônico é algo próximo do que o leitor comum sente ao se deparar com as traduções do Odorico: penosas, escritas num português quase que cifrado, um estágio muito além de quando a linguagem espalhafatosa da poesia ainda mantém algum tipo de inteligibilidade ou no mínimo elegância. Três, em suma, são as razões para tanto: a primeira delas é que Odorico simplesmente não barateia a coisa, e quando topa com um termo militar ou naval específico em grego ou latim, será com um termo português tão específico quanto que irá comparecer, numa minúcia vocabular que faz o leitor se remeter de imediato à experiência exaustiva de rodear-se de dicionários para ler Os Sertões; a segunda é a sintaxe elaboradíssima e por vezes labiríntica; e a terceira é a cunhagem de neologismos que vertam com perícia os momentos mais exuberantes da poesia homérica e virgiliana, tudo a serviço de um projeto ousado de traduzir mantendo a concisão e agudeza, a precisão e a potência da linguagem destes grandes autores.
Sou um admirador confesso das traduções do Odorico. Aquilo que a Sílvio Romero pareceu exagerado, a mim é justamente fonte de beleza. Com juízos de valor, por mais que a gente tente revestir a coisa toda com ares suntuosos de objetividade, no final é sempre assim: o que me parece um elegante torneio da sintaxe, a meu vizinho causará ânsias. Compreendo, claro, que as características listadas podem com muita facilidade entornar o caldo, e não nego que por vezes o que acontece com o Odorico é por aí mesmo; no cômputo geral, todavia, penso que são textos admiráveis, aptos, muitíssimo aptos a esgarçar as fronteiras da língua e, para me valer daquela formulação benjaminiana já muito cara aos estudos tradutórios, helenizar e (re)latinizar o português. Tornar o português alguma coisa além do que até então ele era: ampliá-lo, enriquecê-lo, reinventá-lo, tudo o que esperamos da melhor poesia.
Um exemplo da segunda dificuldade pode ser encontrada na tradução do Odorico para o início da Eneida:
Armas canto e o varão que, êxul de Tróia,
Primeiro os fados prófugo aportaram
Eu realmente não me recordo se era uma edição anterior ou posterior da tradução que estampava:
Armas canto, e o varão que, lá de Tróia
Prófugo, à Itália e de Lavino às praias
Trouxe-o primeiro o fado
Bem; cito a versão de cima para que o leitor perceba direitinho o como a sintaxe que o Odorico emprega é por vezes elaborada. Veja que o segundo verso começa com o advérbio "primeiro" seguido do sujeito da oração: "os fados". Ora: antes de chegarmos no verbo da frase, "aportaram", encontraremos "prófugo", adjetivo que ganha aqui força de substantivo graças à elipse que o Odorico emprega. Quem é prófugo, isto é, quem está a fugir? É o varão do verso anterior: a oração de que consiste o segundo verso é toda ela uma subordinada adjetiva. Por mais que num primeiro relance o leitor seja levado a crer que "prófugo" é advérbio a caracterizar a ação de aportar, trata-se, na verdade, de objeto direto. Enovelado, eu disse, mas é muito, muito mais: a sonoridade do verso é estupenda graças ao som da consoante F em "Fado próFugo" seguido do P de "Primeiro (...) Prófugo aPortaram", para além da força expressiva que o adjetivo "prófugo", tão importante para o contexto da obra, já que resume em essência parte do que os troianos serão durante a primeira metade do poema, recebe ao ser colocado na posição de cesura do decassílabo heroico.
É complicado ler uma coisa assim? É. Exige esforço. E até aqui tudo bem, afinal de contas é razoável que uma obra-prima exija de nós uma contrapartida qualquer. A linha que demarca e divide o português surpreendente usado por um maestro daqueloutro, penoso, usado por um deslumbrado com as últimas gramatiquices desovadas, é o quanto o autor consegue extrair de seja lá que raios de expediente ele vier a usar. Com Odorico, torcer a sintaxe e empregar um vocabulário incomum ("prófugo", por exemplo, a mesmíssima palavra que acharemos no original latino) são meios de nos presentear com o espetáculo sonoro irretocável da passagem.
Um outro exemplo, versos depois:
Porém de Teucro ouvira que a progênie,
Dos Penos subvertendo as fortalezas,
Viria a ser, desmoronada a Líbia,
À larga rei belipotente povo:
No original:
progeniem sed enim Troiano a sanguine duci
audierat Tyrias olim quae uerteret arces;
hinc populum late regem belloque superbum
uenturum excidio Libyae
Veja o caso do último verso na tradução de Odorico. É um prodígio de informação e concisão, um verso que te mostra ser possível empregar o português com tanta energia concentrada como no caso do fraseado virgiliano. "À larga" é advérbio e tanto "rei" quanto "belipotente" ("belipujante" na outra edição) servem de adjetivos a "povo": a descendência de Teucro seria um povo guerreiro que reinaria lugares distantes. O uso de "rei" como adjetivo talvez cause estranheza; mas isso logo muda quando vemos que a expressão "povo rei" é antiga em nossa língua e está diretamente ligada ao original: "hinc populum", no acusativo graças a "audierat" no verso anterior, é qualificado por "regem" e "superbum", o segundo claramente um adjetivo e o primeiro um substantivo com força de adjetivo, exatamente o mesmo procedimento usado pelo tradutor brasileiro. A eles se acham vinculados os ablativos "late" e "bello", que lhes especificam. E assim, o apagamento dos artigos e preposições, condição básica de funcionamento do latim clássico, magicamente é apagado por Odorico que, em seu verso, nos dá um pouco do sabor intacto de Virgílio em latim. Genialidade pura e simples.
O que Sílvio Romero quis dizer por macarrônico é algo próximo do que o leitor comum sente ao se deparar com as traduções do Odorico: penosas, escritas num português quase que cifrado, um estágio muito além de quando a linguagem espalhafatosa da poesia ainda mantém algum tipo de inteligibilidade ou no mínimo elegância. Três, em suma, são as razões para tanto: a primeira delas é que Odorico simplesmente não barateia a coisa, e quando topa com um termo militar ou naval específico em grego ou latim, será com um termo português tão específico quanto que irá comparecer, numa minúcia vocabular que faz o leitor se remeter de imediato à experiência exaustiva de rodear-se de dicionários para ler Os Sertões; a segunda é a sintaxe elaboradíssima e por vezes labiríntica; e a terceira é a cunhagem de neologismos que vertam com perícia os momentos mais exuberantes da poesia homérica e virgiliana, tudo a serviço de um projeto ousado de traduzir mantendo a concisão e agudeza, a precisão e a potência da linguagem destes grandes autores.
Sou um admirador confesso das traduções do Odorico. Aquilo que a Sílvio Romero pareceu exagerado, a mim é justamente fonte de beleza. Com juízos de valor, por mais que a gente tente revestir a coisa toda com ares suntuosos de objetividade, no final é sempre assim: o que me parece um elegante torneio da sintaxe, a meu vizinho causará ânsias. Compreendo, claro, que as características listadas podem com muita facilidade entornar o caldo, e não nego que por vezes o que acontece com o Odorico é por aí mesmo; no cômputo geral, todavia, penso que são textos admiráveis, aptos, muitíssimo aptos a esgarçar as fronteiras da língua e, para me valer daquela formulação benjaminiana já muito cara aos estudos tradutórios, helenizar e (re)latinizar o português. Tornar o português alguma coisa além do que até então ele era: ampliá-lo, enriquecê-lo, reinventá-lo, tudo o que esperamos da melhor poesia.
Um exemplo da segunda dificuldade pode ser encontrada na tradução do Odorico para o início da Eneida:
Armas canto e o varão que, êxul de Tróia,
Primeiro os fados prófugo aportaram
Eu realmente não me recordo se era uma edição anterior ou posterior da tradução que estampava:
Armas canto, e o varão que, lá de Tróia
Prófugo, à Itália e de Lavino às praias
Trouxe-o primeiro o fado
Bem; cito a versão de cima para que o leitor perceba direitinho o como a sintaxe que o Odorico emprega é por vezes elaborada. Veja que o segundo verso começa com o advérbio "primeiro" seguido do sujeito da oração: "os fados". Ora: antes de chegarmos no verbo da frase, "aportaram", encontraremos "prófugo", adjetivo que ganha aqui força de substantivo graças à elipse que o Odorico emprega. Quem é prófugo, isto é, quem está a fugir? É o varão do verso anterior: a oração de que consiste o segundo verso é toda ela uma subordinada adjetiva. Por mais que num primeiro relance o leitor seja levado a crer que "prófugo" é advérbio a caracterizar a ação de aportar, trata-se, na verdade, de objeto direto. Enovelado, eu disse, mas é muito, muito mais: a sonoridade do verso é estupenda graças ao som da consoante F em "Fado próFugo" seguido do P de "Primeiro (...) Prófugo aPortaram", para além da força expressiva que o adjetivo "prófugo", tão importante para o contexto da obra, já que resume em essência parte do que os troianos serão durante a primeira metade do poema, recebe ao ser colocado na posição de cesura do decassílabo heroico.
É complicado ler uma coisa assim? É. Exige esforço. E até aqui tudo bem, afinal de contas é razoável que uma obra-prima exija de nós uma contrapartida qualquer. A linha que demarca e divide o português surpreendente usado por um maestro daqueloutro, penoso, usado por um deslumbrado com as últimas gramatiquices desovadas, é o quanto o autor consegue extrair de seja lá que raios de expediente ele vier a usar. Com Odorico, torcer a sintaxe e empregar um vocabulário incomum ("prófugo", por exemplo, a mesmíssima palavra que acharemos no original latino) são meios de nos presentear com o espetáculo sonoro irretocável da passagem.
Um outro exemplo, versos depois:
Porém de Teucro ouvira que a progênie,
Dos Penos subvertendo as fortalezas,
Viria a ser, desmoronada a Líbia,
À larga rei belipotente povo:
No original:
progeniem sed enim Troiano a sanguine duci
audierat Tyrias olim quae uerteret arces;
hinc populum late regem belloque superbum
uenturum excidio Libyae
Veja o caso do último verso na tradução de Odorico. É um prodígio de informação e concisão, um verso que te mostra ser possível empregar o português com tanta energia concentrada como no caso do fraseado virgiliano. "À larga" é advérbio e tanto "rei" quanto "belipotente" ("belipujante" na outra edição) servem de adjetivos a "povo": a descendência de Teucro seria um povo guerreiro que reinaria lugares distantes. O uso de "rei" como adjetivo talvez cause estranheza; mas isso logo muda quando vemos que a expressão "povo rei" é antiga em nossa língua e está diretamente ligada ao original: "hinc populum", no acusativo graças a "audierat" no verso anterior, é qualificado por "regem" e "superbum", o segundo claramente um adjetivo e o primeiro um substantivo com força de adjetivo, exatamente o mesmo procedimento usado pelo tradutor brasileiro. A eles se acham vinculados os ablativos "late" e "bello", que lhes especificam. E assim, o apagamento dos artigos e preposições, condição básica de funcionamento do latim clássico, magicamente é apagado por Odorico que, em seu verso, nos dá um pouco do sabor intacto de Virgílio em latim. Genialidade pura e simples.