Retorno ao estético.
Um dos meus momentos Roger Federer nos últimos tempos foi ao ter notícia da antologia de poesia contemporânea brasileira organizada e traduzida para o francês por Wladimir Saldanha e publicada pela editora Mondrongo semanas atrás. Momento Roger Federer é a descrição que David Foster Wallace faz de quando assistia o tenista em quadra: a certa altura a jogada foi tão espetacular que sua esposa correu à sala para ver o que tinha acontecido e encontrou o esposo de joelhos, "my eyeballs looked like novelty-shop eyeballs". Chamo a antologia assim levando em conta não apenas o tão admirável exercício de ler a poesia de seu próprio tempo, o que de um modo geral exige muito mais tutano e energia do que ler a do passado, já que você o faz sem rede de proteção, mas também a qualidade das traduções, que enfrentam algumas pedreiras e as transpõe com maestria em francês.
Dar a lume uma antologia de poesia à contra-corrente, pautada por aquilo que o Wladimir tem chamado de um retorno ao estético. Pois bem. Por gentileza, o que seria isso? Creio que consigo dar uma certa noção se compararmos o tal retorno à expressão que Gilberto Mendonça Telles usou para se referir à geração de 45: não como uma horda de retardatários que voltaram saltitantes ao verso e sim como uma geração que em seu retorno às formas tradicionais expressaram uma nostalgia do estético. Assim, embora quando falemos de estética nós falemos grosso modo de uma categoria filosófica moderna, surgida em meados do século dezoito como estudo da Beleza e, mais amplamente, do impacto que obras de arte causam em nossa sensibilidade, tanto o crítico goiano quanto o poeta baiano tomam estético como diálogo com a tradição mediado pela retomada de técnicas e procedimentos clássicos de composição. Já não se trata mais de só partir da cabeça do artista e desprezar o que existiu antes e que ao que tudo indica deve ter sido interessante; falamos de uma forma de escrita que faz uso de um arcabouço de saberes e obras, técnicas e procedimentos compartilhados.
Retorno, nesses termos, não tem o sentido de voltar a habitar as paragens exóticas da versificação; é, ou pelo menos deve ser, algo diverso do que boa parte da poesia hoje produzida dentro de círculos conservadores tende a ser: ingênua e inócua, repristinação deslumbrada que o uso de formas fixas e pastiches de Bruno Tolentino causam na cabecinha oca dos que repercutem o estardalhaço crítico de gurus de plantão. É possível que o leitor mais desavisado aponte semelhanças superficiais com a geração de 45 e pense que o retorno ao estético seria simplesmente voltar a escrever em formas fixas e a compulsar os velhos tomos da versificação tradicional. É possível, sim, que ele cometa esse erro (e considerando meu azedume crítico no início do parágrafo, eu diria que é razoável que ele o cometa), fiado, quem sabe, na crença de que a geração de 45 se limitou a ser mero retorno, análogo a usar chapéu de pluma e vestido peito de pombo numa estação de metrô. No entanto, se nem a geração de 45 foi assim, haja vista que se fez uso do verso tradicional, com suas sílabas poéticas todas comportadas nos assentos do soneto, o fez como gesto de retomada de toda uma cultura que estava à beira do colapso após duas grandes guerras; e se nem a geração de 45 o foi, a antologia, com seu leque de temáticas, técnicas, estilos e posturas tão diverso, também passa longe de ser.
Vejamos um caso mais prático. Leonardo Antunes, reconhecido tradutor de poesia grega antiga, publicou anos atrás uma coletânea de sonetos chamada João e Maria. Foi premiada e tudo mais. Analisei-a quando saiu em fase larval pela primeira vez no escamandro; aqui, para os propósitos desse textinho, limito-me a pedir ao leitor que saboreie a coloquialidade admirável de:
Ninguém soube o motivo ou a razão
No dia em que João chegou cansado,
Depois de um turno duplo e um baseado,
Trazendo um trinta-e-oito em sua mão.
Não era o que esperassem de João,
Um moço sempre tão bem-comportado,
Avesso aos maus costumes e ao pecado,
Assim como se espera de um cristão.
Entrando em casa, foi de sala em sala
A fim de despedir-se dos parentes –
Da mãe, da avó e da irmã recém-nascida.
Então, depois dos beijos, veio a bala:
Cravou-a à própria testa, penitente,
João com seu revólver suicida.
Há um trabalho mais extenso do Leonardo com a linguagem coloquial posta em formas fixas. Dois de seus trabalhos mais recentes envolvem facetas da mesma moeda: um, a composição de um longo poema narrativo compilando histórias extraídas do cotidiano urbano, é todo vazado numa linguagem de fluência admirável, e outro, tradução da Ilíada com uso de um decassílabo que extrapola o conjunto heroico-sáfico e vai dar na gaita moinheira, busca dar ao leitor um pouco do sabor oral do grande poema homérico. Vejamos como Wladimir Saldanha se saiu:
Personne n'en a su le motif ni la raison
Le jour où, très fatigué, est arrivé Jean
Apprès un double poste em 3X8 et un joint,
Rapportant un calibre .38 à la main.
Ce n'était pas bien ce qu'on attendait de Jean
Un jeune homme reflet du moule de la societé,
Contraire aux mauvaises habitudes et au péché,
Tout à fait ce que l'on attend d'un bon chrétien.
En arrivant chez lui, allant de chambres en salle,
Afin de dire adieu à tout ses proches parents -
De la mère, la grand-mère et de la soeur bébé.
Juste après les baisers, est arrivée la balle :
Enfoncée au milieu de sa tête, pénitent,
Jean et son revolver, tout deux faits pour tuer.
É simplesmente espetacular. A coloquialidade no soneto do Leonardo foi inteiramente passada por Wladimir, que tomou o cuidado de manter por exemplo a descrição da jornada no verso 3 e o calibre do revólver no verso 4. Outros detalhes significativos do poema, como o aposto no penúltimo verso, foram mantidos, e mesmo que num primeiro relance se julgue que o adjetivo caracterizando o revólver no último verso tenha sido perdido, adjetivo certo modo trágico uma vez que humaniza a arma, o uso de "tout deux", desdobramento da preposição "com" no original, mantém com habilidade parcela disso.
Ora: a sequência de sonetos não foi tirada da cartola. Não há o deslumbre perante o Gênio romântico e sim um diálogo com tradições específicas que, no caso de Leonardo, partem de Homero e passam pela narrativa popular gaúcha e nordestina para enfim se acomodarem no casebre da coroa de sonetos um pouco à maneira daquelas de Donne ou Affonso Félix de Sousa. Para os poetas reunidos na antologia, grande parte do processo de apreciação do poema está em investigar as conexões que estabelece, os autores com os quais dialoga, os poemas de que parte, as técnicas que se aproveita e as discrepâncias que traceja. Não se trata apenas de sentar numa sala escura (amordaçado, é claro) e ouvir o poeta num monólogo sentimental ou contra os desmandos da sociedade. A estética que esses poetas buscam, a Beleza que tentam produzir com a linguagem, passa pela experiência da tradição - e aqui, em suma, da maneira mais sucinta possível, numa casca-de-noz, está o retorno ao estético.
Dar a lume uma antologia de poesia à contra-corrente, pautada por aquilo que o Wladimir tem chamado de um retorno ao estético. Pois bem. Por gentileza, o que seria isso? Creio que consigo dar uma certa noção se compararmos o tal retorno à expressão que Gilberto Mendonça Telles usou para se referir à geração de 45: não como uma horda de retardatários que voltaram saltitantes ao verso e sim como uma geração que em seu retorno às formas tradicionais expressaram uma nostalgia do estético. Assim, embora quando falemos de estética nós falemos grosso modo de uma categoria filosófica moderna, surgida em meados do século dezoito como estudo da Beleza e, mais amplamente, do impacto que obras de arte causam em nossa sensibilidade, tanto o crítico goiano quanto o poeta baiano tomam estético como diálogo com a tradição mediado pela retomada de técnicas e procedimentos clássicos de composição. Já não se trata mais de só partir da cabeça do artista e desprezar o que existiu antes e que ao que tudo indica deve ter sido interessante; falamos de uma forma de escrita que faz uso de um arcabouço de saberes e obras, técnicas e procedimentos compartilhados.
Retorno, nesses termos, não tem o sentido de voltar a habitar as paragens exóticas da versificação; é, ou pelo menos deve ser, algo diverso do que boa parte da poesia hoje produzida dentro de círculos conservadores tende a ser: ingênua e inócua, repristinação deslumbrada que o uso de formas fixas e pastiches de Bruno Tolentino causam na cabecinha oca dos que repercutem o estardalhaço crítico de gurus de plantão. É possível que o leitor mais desavisado aponte semelhanças superficiais com a geração de 45 e pense que o retorno ao estético seria simplesmente voltar a escrever em formas fixas e a compulsar os velhos tomos da versificação tradicional. É possível, sim, que ele cometa esse erro (e considerando meu azedume crítico no início do parágrafo, eu diria que é razoável que ele o cometa), fiado, quem sabe, na crença de que a geração de 45 se limitou a ser mero retorno, análogo a usar chapéu de pluma e vestido peito de pombo numa estação de metrô. No entanto, se nem a geração de 45 foi assim, haja vista que se fez uso do verso tradicional, com suas sílabas poéticas todas comportadas nos assentos do soneto, o fez como gesto de retomada de toda uma cultura que estava à beira do colapso após duas grandes guerras; e se nem a geração de 45 o foi, a antologia, com seu leque de temáticas, técnicas, estilos e posturas tão diverso, também passa longe de ser.
Vejamos um caso mais prático. Leonardo Antunes, reconhecido tradutor de poesia grega antiga, publicou anos atrás uma coletânea de sonetos chamada João e Maria. Foi premiada e tudo mais. Analisei-a quando saiu em fase larval pela primeira vez no escamandro; aqui, para os propósitos desse textinho, limito-me a pedir ao leitor que saboreie a coloquialidade admirável de:
Ninguém soube o motivo ou a razão
No dia em que João chegou cansado,
Depois de um turno duplo e um baseado,
Trazendo um trinta-e-oito em sua mão.
Não era o que esperassem de João,
Um moço sempre tão bem-comportado,
Avesso aos maus costumes e ao pecado,
Assim como se espera de um cristão.
Entrando em casa, foi de sala em sala
A fim de despedir-se dos parentes –
Da mãe, da avó e da irmã recém-nascida.
Então, depois dos beijos, veio a bala:
Cravou-a à própria testa, penitente,
João com seu revólver suicida.
Há um trabalho mais extenso do Leonardo com a linguagem coloquial posta em formas fixas. Dois de seus trabalhos mais recentes envolvem facetas da mesma moeda: um, a composição de um longo poema narrativo compilando histórias extraídas do cotidiano urbano, é todo vazado numa linguagem de fluência admirável, e outro, tradução da Ilíada com uso de um decassílabo que extrapola o conjunto heroico-sáfico e vai dar na gaita moinheira, busca dar ao leitor um pouco do sabor oral do grande poema homérico. Vejamos como Wladimir Saldanha se saiu:
Personne n'en a su le motif ni la raison
Le jour où, très fatigué, est arrivé Jean
Apprès un double poste em 3X8 et un joint,
Rapportant un calibre .38 à la main.
Ce n'était pas bien ce qu'on attendait de Jean
Un jeune homme reflet du moule de la societé,
Contraire aux mauvaises habitudes et au péché,
Tout à fait ce que l'on attend d'un bon chrétien.
En arrivant chez lui, allant de chambres en salle,
Afin de dire adieu à tout ses proches parents -
De la mère, la grand-mère et de la soeur bébé.
Juste après les baisers, est arrivée la balle :
Enfoncée au milieu de sa tête, pénitent,
Jean et son revolver, tout deux faits pour tuer.
É simplesmente espetacular. A coloquialidade no soneto do Leonardo foi inteiramente passada por Wladimir, que tomou o cuidado de manter por exemplo a descrição da jornada no verso 3 e o calibre do revólver no verso 4. Outros detalhes significativos do poema, como o aposto no penúltimo verso, foram mantidos, e mesmo que num primeiro relance se julgue que o adjetivo caracterizando o revólver no último verso tenha sido perdido, adjetivo certo modo trágico uma vez que humaniza a arma, o uso de "tout deux", desdobramento da preposição "com" no original, mantém com habilidade parcela disso.
Ora: a sequência de sonetos não foi tirada da cartola. Não há o deslumbre perante o Gênio romântico e sim um diálogo com tradições específicas que, no caso de Leonardo, partem de Homero e passam pela narrativa popular gaúcha e nordestina para enfim se acomodarem no casebre da coroa de sonetos um pouco à maneira daquelas de Donne ou Affonso Félix de Sousa. Para os poetas reunidos na antologia, grande parte do processo de apreciação do poema está em investigar as conexões que estabelece, os autores com os quais dialoga, os poemas de que parte, as técnicas que se aproveita e as discrepâncias que traceja. Não se trata apenas de sentar numa sala escura (amordaçado, é claro) e ouvir o poeta num monólogo sentimental ou contra os desmandos da sociedade. A estética que esses poetas buscam, a Beleza que tentam produzir com a linguagem, passa pela experiência da tradição - e aqui, em suma, da maneira mais sucinta possível, numa casca-de-noz, está o retorno ao estético.