Harold Bloom.
E morreu o Harold Bloom. Sabiamente não me sujeitei ao flagelo de ler os obituários requentados, mas consigo imaginar o tom lamuriante de quem já não conta mais com a cômoda autoridade crítica servindo de alicerce para juízos pretensamente bem embasados. (Conseguem imaginar um mundo em que as tartarugas marinhas não sufoquem com sacolas plásticas e em que se fale de Machado de Assis sem parafusar um considerado-por-Harold-Bloom-como-um-dos logo no início do texto?) O que é uma tremendíssima pena, toda essa imagem, para a qual o próprio Bloom com bastante ingenuidade contribuiu e muito a construir, do crítico americano como um ranzinza e ranheta antiquado e, pior do que isso, reacionário, uma espécie de leão-de-chácara do cânone.
É triste e ao mesmo tempo esperável que as coisas tenham sido conduzidas dessa maneira. Quando falamos da obra do Bloom, nós falamos sucintamente de quem identificou na angústia da influência - o núcleo da expressão, angústia, seria amenizado em livros posteriores, gesto de um autor muito provavelmente já de saco cheio de ter de explicar a todos o quão angustiosa a angústia realmente é -; que identificou, eu dizia, na angústia da influência uma das molas essenciais do funcionamento da literatura aqui no Ocidente. É uma formulação realmente complexa, e o leitor que se puser a compulsar os arquivos do bloguinho encontrará a postagem que fiz de quando li o livro pela primeira vez. Como não tenho o costume de reler o que escrevi no passado, não consigo mensurar exatamente a quantidade de asneiras que devo ter escrito ali, mas, de todo modo, penso que será bem possível me encontrar bastante pasmo com o uso de elementos tão peculiares (exóticos?) para defesa da sua tese, algo muitíssimo distante da waste land bibliográfica que hoje encontramos no para-choque de todo trabalho acadêmico.
A rigor, as formulações do Bloom não se pretendem originais. Ele próprio reconhece seu débito para com um ensaio instigante de Borges a respeito de Kafka, no qual o autor argentino defende que Kafka inventou seus precursores. É simples: todo grande autor, para Bloom, quando alcança esse estágio em que precisamente se torna bom, grande, fundamental, inventa seus precursores, ou seja, nós podemos, a partir da obra desses caras, como que reler o passado de um jeito diferente. Só que todo esse processo de se chegar até o estágio de ser bom, de ser grande, de ser fundamental, é um processo tortuoso, uma verdadeira luta, um verdadeiro ágon (grego; daí, em português, agonia - e realmente é muito curioso elucubrar por que anxiety, ansiedade, angústia, e não agony, agonia, da influência) entre um poeta predecessor já estabelecido e um jovem poeta de muito talento que somente a partir de uma luta renhida com seu ancestral, com seu patriarca, pode encontrar um lugar ao sol.
Daqui conseguimos vislumbrar dois aspectos essenciais da angústia da influência: o primeiro deles é o de que, ao contrário do que certo folclore repetido até mesmo em âmbito acadêmico tende a pensar, a angústia da influência não se liga necessariamente à biografia do artista, ou seja, àquela pesquisa nem sempre muito frutífera e reveladora sobre que livros havia na biblioteca de um grande escritor dos oitocentos. A angústia da influência fala do poeta do poeta, de modo que é perfeitamente possível apontar uma linhagem que ligue dois pontos distintos do mapa literário ainda que, na prática, um e outro jamais tenham tomado conhecimento entre si e ainda que, também na prática, a relação entre ambos nem tenha sido tão tortuosa e angustiante assim. A grande questão, e com isso avanço para o segundo aspecto, é que a angústia da influência sempre vai existir quando falamos de grandes artistas. Tudo bem que o jovem poeta realmente gosta muito do seu predecessor e nutre todo um carinho com as edições encapadas a couro que tem dele na biblioteca. Sim, tudo bem: isso não faz a mínima diferença, pois se o jovem poeta realmente quiser ser grande, ele vai ter que se estapear com seu predecessor e mostrar ser, ele próprio, um grande artista. Caso contrário, isto é, caso ele não seja um artista literariamente tão relevante assim, o que vai acontecer é muito simples: não haverá briga nenhuma; ele não será nem de longe uma ameaça ou uma figura de estatura grande o suficiente para ombrear-se de igual para igual com o predecessor.
Com esta explicação sucinta, penso que consigo afastar alguns desentendidos em relação ao Bloom, que, com sua tese, encontra um ponto de continuidade com alguns estudos que estavam sendo desenvolvidos à época, ligados especialmente àquilo que se convencionou chamar de intertextualidade, e que, na dinâmica da poética antiga e clássica, era chamado de imitação e emulação (ou, ainda, alusão, se quisermos um termo cunhado pelos classicistas também à época de Bloom). O segundo procedimento é particularmente interessante, haja vista que antes da poética moderna tínhamos essa competição explícita entre autores, na qual, mediados pela imitação, condição sine qua non para a boa prática artística, e mediados também, claro, pelo conceito da discrição, os autores buscavam superar seus modelos, buscavam criar alguma coisa que fosse um algo além daquilo.
Vocês não têm noção do quão complicadinho é chegar numa formulação dessas. Imersos já há alguns séculos no cabedal teórico do pensamento romântico, do qual Bloom foi um de seus melhores leitores, haja vista que atuou de maneira decisiva num processo de reavaliação da poesia dos grandes românticos ingleses após o estado de coisas causado pela crítica do alto modernismo; imersos, eu dizia, nesse cabedal, que vê na autonomia e num certo isolamento da obra de arte em relação a seu passado, a ponto de reputarmos boa aquela obra que consegue como que idealmente se desprender e negar o que veio antes, uma tese como a de Bloom, que retoma a dinâmica consagrada pela poética antiga e clássica ao mesmo tempo em que explica de maneira muito esclarecedora o modo como grandes obras surgem, deve ser aplaudida. Não da maneira certo modo tosca com que tem sido recebida já há um tempinho entre nós, visando uma espécie de instrumentalização da obra bloomiana até o ponto de reduzi-la, como dito, a ser leão-de-chácara do cânone.
Foi mais do que isso, meus amigos, foi mais do que isso. Como naquele poema do Herberto Helder em que ele relembra uma suposta (podemos por gentileza enfatizar isso?) expressão grega para quando alguém morria: Harold Bloom; tinha paixão.
É triste e ao mesmo tempo esperável que as coisas tenham sido conduzidas dessa maneira. Quando falamos da obra do Bloom, nós falamos sucintamente de quem identificou na angústia da influência - o núcleo da expressão, angústia, seria amenizado em livros posteriores, gesto de um autor muito provavelmente já de saco cheio de ter de explicar a todos o quão angustiosa a angústia realmente é -; que identificou, eu dizia, na angústia da influência uma das molas essenciais do funcionamento da literatura aqui no Ocidente. É uma formulação realmente complexa, e o leitor que se puser a compulsar os arquivos do bloguinho encontrará a postagem que fiz de quando li o livro pela primeira vez. Como não tenho o costume de reler o que escrevi no passado, não consigo mensurar exatamente a quantidade de asneiras que devo ter escrito ali, mas, de todo modo, penso que será bem possível me encontrar bastante pasmo com o uso de elementos tão peculiares (exóticos?) para defesa da sua tese, algo muitíssimo distante da waste land bibliográfica que hoje encontramos no para-choque de todo trabalho acadêmico.
A rigor, as formulações do Bloom não se pretendem originais. Ele próprio reconhece seu débito para com um ensaio instigante de Borges a respeito de Kafka, no qual o autor argentino defende que Kafka inventou seus precursores. É simples: todo grande autor, para Bloom, quando alcança esse estágio em que precisamente se torna bom, grande, fundamental, inventa seus precursores, ou seja, nós podemos, a partir da obra desses caras, como que reler o passado de um jeito diferente. Só que todo esse processo de se chegar até o estágio de ser bom, de ser grande, de ser fundamental, é um processo tortuoso, uma verdadeira luta, um verdadeiro ágon (grego; daí, em português, agonia - e realmente é muito curioso elucubrar por que anxiety, ansiedade, angústia, e não agony, agonia, da influência) entre um poeta predecessor já estabelecido e um jovem poeta de muito talento que somente a partir de uma luta renhida com seu ancestral, com seu patriarca, pode encontrar um lugar ao sol.
Daqui conseguimos vislumbrar dois aspectos essenciais da angústia da influência: o primeiro deles é o de que, ao contrário do que certo folclore repetido até mesmo em âmbito acadêmico tende a pensar, a angústia da influência não se liga necessariamente à biografia do artista, ou seja, àquela pesquisa nem sempre muito frutífera e reveladora sobre que livros havia na biblioteca de um grande escritor dos oitocentos. A angústia da influência fala do poeta do poeta, de modo que é perfeitamente possível apontar uma linhagem que ligue dois pontos distintos do mapa literário ainda que, na prática, um e outro jamais tenham tomado conhecimento entre si e ainda que, também na prática, a relação entre ambos nem tenha sido tão tortuosa e angustiante assim. A grande questão, e com isso avanço para o segundo aspecto, é que a angústia da influência sempre vai existir quando falamos de grandes artistas. Tudo bem que o jovem poeta realmente gosta muito do seu predecessor e nutre todo um carinho com as edições encapadas a couro que tem dele na biblioteca. Sim, tudo bem: isso não faz a mínima diferença, pois se o jovem poeta realmente quiser ser grande, ele vai ter que se estapear com seu predecessor e mostrar ser, ele próprio, um grande artista. Caso contrário, isto é, caso ele não seja um artista literariamente tão relevante assim, o que vai acontecer é muito simples: não haverá briga nenhuma; ele não será nem de longe uma ameaça ou uma figura de estatura grande o suficiente para ombrear-se de igual para igual com o predecessor.
Com esta explicação sucinta, penso que consigo afastar alguns desentendidos em relação ao Bloom, que, com sua tese, encontra um ponto de continuidade com alguns estudos que estavam sendo desenvolvidos à época, ligados especialmente àquilo que se convencionou chamar de intertextualidade, e que, na dinâmica da poética antiga e clássica, era chamado de imitação e emulação (ou, ainda, alusão, se quisermos um termo cunhado pelos classicistas também à época de Bloom). O segundo procedimento é particularmente interessante, haja vista que antes da poética moderna tínhamos essa competição explícita entre autores, na qual, mediados pela imitação, condição sine qua non para a boa prática artística, e mediados também, claro, pelo conceito da discrição, os autores buscavam superar seus modelos, buscavam criar alguma coisa que fosse um algo além daquilo.
Vocês não têm noção do quão complicadinho é chegar numa formulação dessas. Imersos já há alguns séculos no cabedal teórico do pensamento romântico, do qual Bloom foi um de seus melhores leitores, haja vista que atuou de maneira decisiva num processo de reavaliação da poesia dos grandes românticos ingleses após o estado de coisas causado pela crítica do alto modernismo; imersos, eu dizia, nesse cabedal, que vê na autonomia e num certo isolamento da obra de arte em relação a seu passado, a ponto de reputarmos boa aquela obra que consegue como que idealmente se desprender e negar o que veio antes, uma tese como a de Bloom, que retoma a dinâmica consagrada pela poética antiga e clássica ao mesmo tempo em que explica de maneira muito esclarecedora o modo como grandes obras surgem, deve ser aplaudida. Não da maneira certo modo tosca com que tem sido recebida já há um tempinho entre nós, visando uma espécie de instrumentalização da obra bloomiana até o ponto de reduzi-la, como dito, a ser leão-de-chácara do cânone.
Foi mais do que isso, meus amigos, foi mais do que isso. Como naquele poema do Herberto Helder em que ele relembra uma suposta (podemos por gentileza enfatizar isso?) expressão grega para quando alguém morria: Harold Bloom; tinha paixão.