Eneida em cordel.
Dia desses o professor da federal fluminense Fábio Cairolli publicou parte da Eneida para cordel. Tive acesso só ao que ele mesmo deu a lume em sua rede social. Por ter achado coisa interessantíssima, gostaria de elucubrar em voz alta sobre uma estrofe em especial: a estrofe 131, tradução do trecho do canto I em que Enéias termina de enxergar um painel cartaginense que retrata a guerra de Tróia:
Afastemos nosso medo"
Dessa maneira falou
E com imagens vazias
A alma sua alimentou
E dando longos gemidos
Pelo rosto entristecido
Um rio bem largo rolou.
Traduz isso daqui:
Solve metus; feret haec aliquam tibi fama salutem.'
Sic ait, atque animum pictura pascit inani,
multa gemens, largoque umectat flumine voltum.
Pois bem. Num primeiro momento parece muito... como dizer? Extravagante que se queira traduzir a Eneida em cordel. Mas só num primeiro momento, que fique bem claro. Sabemos que a Eneida foi escrita numa configuração poética muito específica da poesia antiga, qual seja, o hexâmetro datílico de longa tradição épica. Embora existam propostas de manutenção do mecanismo do hexâmetro em português, cujo pontapé pioneiro foi dado por Carlos Alberto Nunes no final da década de 40, se não me falha a memória, com Homero e décadas depois com Virgílio, ainda assim isso quando muito minimiza o artificialismo que toda tradução guarda consigo. Por artificialismo eu quero dizer que a tradução é sucintamente aquilo que o Umberto Eco diz que ela é, ou seja, é quase a mesma coisa. Quase; não a mesma coisa - e quando alguém decide traduzir, digamos, a Eneida, ainda que busque reproduzir o tal do hexâmetro virgiliano, estará criando outra coisa pelo simples fato de que estará criando em português. Hoje. Aqui. Agora.
O que eu gostaria que o leitor percebesse, para quem sabe assim fugir da resposta fácil de que traduzir a Eneida em cordel é pura e simples extravagância, é que durante muito tempo nós não optamos por essa via mais cabeludinha da tradução rítmica. Na verdade, a tradição em português de traduções da Eneida foi a de usar o decassílabo branco de recorte neoclássico como ferramenta. Experimentos com o uso de verso de doze sílabas ou mesmo o de quatorze são em certos sentidos um pouco mais recentes. A tendência majoritária sempre foi a de usar uma ferramenta poética de amplo uso na poesia de língua portuguesa para traduzir uma outra ferramenta também de outro uso na poesia latina: afinal de contas o decassílabo é usado pra tudo, de poemas épicos a líricos e satíricos, exatamente como o hexâmetro, que até na bitola da poesia didática foi parar.
Aonde quero chegar é: mesmo decassílabo continua sendo artificialismo do mesmíssimo jeito, afinal de contas Virgílio também não compôs em algo que sequer se parecesse com o nosso decassílabo, isto é, com todo o aparato versificatório que legitima e chancela o decassílabo como a gente conhece. Entende? Toda tradução sempre envolve esse nível de artificialismo, esse desejo de escrever algo que consiga se passar pelo original na nossa cultura, o que invariavelmente envolve recriar aquilo com as ferramentas que nos sejam úteis. E aqui é que se situa a meu ver o ponto nevrálgico da coisa toda. O uso de tal ou qual opção pelo tradutor nunca é totalmente isenta; ele sempre está se comunicando com uma série de implicações que o uso desta ou daquela ferramenta acarreta no todo da tradução. Usar o cordel para traduzir Virgílio, nessa perspectiva, não necessariamente é uma extravagância inaceitável a ser lida como mero divertimento; pode ser um trabalho muito sério capaz de revelar muitas coisas sobre o original.
Uma das primeiras traduções da Eneida, aliás, feita por um português lá no século XIX, usou a oitava rima. Pare o leitor pra pensar no quão engenhosa não foi essa ideia. A oitava rima é a forma por excelência da poesia épica em português graças ao nível que Camões logrou alcançar. Se você for abrir qualquer manualzinho mequetrefe de literatura colonial brasileira, vai notar uma enxurrada de poemas escritos com pretensões épicas que se valem da oitava rima de matriz e recorte camoniano. Só que o grande modelo do Camões é Virgílio. O primeiro verso de Os Lusíadas, creio que o leitor já está careca de saber, é uma imitação muito inspirada de metade do primeiro verso da Eneida: "As armas e os barões assinalados" para "Arma virumque cano". Então quando esse tradutor português de Virgílio, cujo nome realmente me escapou (José? José de alguma coisa?), resolve usar a oitava rima, ele está dando um nó muito bem dado nos meandros da cultura, que consegue iluminar não apenas a obra de Virgílio como, ainda, a de Camões, afinal de contas ele faz com que Virgílio cante em português num dueto a todo momento com Camões - e de fato, em muitas passagens da tradução a gente vai notar que o tradutor português tirou de Camões as suas soluções, procurando pontos de contato bem frutíferos.
Com isso podemos voltar ao trabalho do Fábio. O cordel se presta a muitos assuntos; é uma forma múltipla, inserida dentro da tradição da poesia popular e, mais especificamente, da cantoria nordestina. Alguns recortes métricos do cordel se encaixam melhor nalguns tipos de assuntos e temas; a setilha, por exemplo, forma adotada pelo Fábio, é muito usada em poemas narrativos, e penso eu que o cordel narrativo é o modelo mais famoso de todos. Há todo um sem fim de técnicas que fazem do cordel uma forma poética muitíssimo elaborada e requintada, bem o contrário do que alguns intelectuais de gabinete tendem a pensar; dentre elas poderíamos mencionar o uso de expressões populares, algumas realmente muito específicas e capazes de dar toda uma concretude admirável à narrativa, e o ritmo dos versos.
Num cordel de José Pachêco em que ele narra a chegada de Lampião no inferno (um clássico, ao que me consta), o cordelista fala dos cães que foram queimados:
Morreram 100 negros velhos
Que não trabalhavam mais
Um cão chamado Trás-cá
Vira-volta e Capataz
Tromba Suja e Bigodeira
Um cão chamado Goteira
Cunhado de Satanás.
A graça todinha da estrofe está nos versos rodopiando na nossa cabeça, essa coisa meio frenética e doida que eles geram ao mesmo tempo em que criam efeitos de som muito sutis e bem feitos. Veja:
Um cão chamado Trás-cá
Vira-volta e Capataz
Uma forte assonância em A no primeiro verso, a aliteração em V contida no nome Vira-volta (quem não gostaria de ter um cão com nome assim?) ou a competente rima entre Trás-cá e Capataz, que consegue rimar o "-cá" com o "Ca-" de Capataz e "Trás-" com o "-taz" de Capataz, como que invertendo as extremidades dos vocábulos.
O Fábio usa de muitos desses instrumentos na sua tradução. Ele busca calibrar uma linguagem elevada e solene, que encontramos ao longo da Eneida quase toda, com uma coisa um pouco mais... coloquial. Hesito em dizer coloquial pois não quero dar a entender que por coloquial precisemos encontrar palavras de baixo calão ou coisa do tipo. Existem muitas gradações do que entendemos como coloquial, e, pra tentar ir direto ao ponto, você não precisa falar como um surfista bronzeado na novela das nove para ser exatamente coloquial. É possível ser coloquial mesmo em trechos como:
Uma fila de amazonas
Com pelta em forma de lua
Pentesileia conduz,
Brava, entre soldados sua,
Luta com cinto dourado
Onde um seio foi cortado,
Moça mais que os homens cura.
Tradução de:
Ducit Amazonidum lunatis agmina peltis
Penthesilea furens, mediisque in milibus ardet,
aurea subnectens exsertae cingula mammae,
bellatrix, audetque viris concurrere virgo.
Coloquial no sentido de que é possível ler de uma só vez, num ímpeto, num fluxo, sem fazer uso daquele tipo de recurso que embaralha a sintaxe muitas vezes sem necessidade (pois, parêntesis necessário, é perfeitamente possível - ênfase no advérbio - embaralhar a sintaxe e ainda assim ser claro, direto, elegante, bastando que o leitor se reporte às odes de Ricardo Reis). Ao mesmo tempo, sem abrir mão de um substantivo tão importante para a concreção da linguagem virgiliana como pelta. Pois pelta precisa ser pelta. Não dá pra cortar sob o argumento de que o leitor não sabe o que é. Isso é bobagem. O leitor curioso vai procurar saber o que é uma pelta. E essa é a grande questão. No auge da confusão no cordel de José Pacheco, lemos:
E lá vai a tropa armada
Em direção do terreiro
Pistola, faca e facão
Cravinote e granadeiro
E um negro também vinha
Com a trempe da cozinha
E o pau de bater tempero.
Se o leitor não souber o que é um cravinote, um granadeiro ou um trempe, ele que vá procurar o que é. O uso de cada um desses termos é fundamental para dar concretude à descrição, dar a cada coisa que se passa na cabeça do escritor o seu devido nome, e ao mesmo tempo contribuir para o sucesso sonoro de uma passagem tão admirável quanto essa.
Com a tradução, pelo menos até onde pude averiguar, as coisas se mantêm. Vejam:
A alma sua alimentou
E dando longos gemidos
Pelo rosto entristecido
Um rio bem largo rolou.
Recordado, tradução de:
Sic ait, atque animum pictura pascit inani,
multa gemens, largoque umectat flumine voltum.
Ênfase total para o verso 465, um verdadeiro painel, uma obra-prima à parte como tantos ao longo da Eneida. A sonoridade aqui é impressionante, faz com que a cena cante um som ambiente em volume máximo: o som murmurado da vogal U atravessa o tom palpável e espesso da consoante M e se ensopa inteiro do aspecto maleável da consoante L. O que encontramos na tradução é tão bom quanto: além das rimas, que, por terem sido atarraxadas a um fraseado fluente (e fluente certamente é um adjetivo melhor para a ideia que quero passar do que o desnecessariamente ambíguo coloquial), se tornam muito mais agradáveis e sonoras, isto é, ressoam melhor, muito melhor; além das rimas, temos ainda o som anasalado no antepenúltimo verso, temos assonâncias entrecortadas tais como gemidos-entristecido-rio (sinta o I retinindo nos ouvidos), temos o R no último verso e o par em L de largo-rolou, que, pontuando a estrofe, evoca à memória do leitor o adjetivo longo muito bem colocado versos atrás e o L elegante de alma-alimentou.
É realmente bem complicado traduzir uma coisa dessas. Merece a nossa atenção.
Afastemos nosso medo"
Dessa maneira falou
E com imagens vazias
A alma sua alimentou
E dando longos gemidos
Pelo rosto entristecido
Um rio bem largo rolou.
Traduz isso daqui:
Solve metus; feret haec aliquam tibi fama salutem.'
Sic ait, atque animum pictura pascit inani,
multa gemens, largoque umectat flumine voltum.
Pois bem. Num primeiro momento parece muito... como dizer? Extravagante que se queira traduzir a Eneida em cordel. Mas só num primeiro momento, que fique bem claro. Sabemos que a Eneida foi escrita numa configuração poética muito específica da poesia antiga, qual seja, o hexâmetro datílico de longa tradição épica. Embora existam propostas de manutenção do mecanismo do hexâmetro em português, cujo pontapé pioneiro foi dado por Carlos Alberto Nunes no final da década de 40, se não me falha a memória, com Homero e décadas depois com Virgílio, ainda assim isso quando muito minimiza o artificialismo que toda tradução guarda consigo. Por artificialismo eu quero dizer que a tradução é sucintamente aquilo que o Umberto Eco diz que ela é, ou seja, é quase a mesma coisa. Quase; não a mesma coisa - e quando alguém decide traduzir, digamos, a Eneida, ainda que busque reproduzir o tal do hexâmetro virgiliano, estará criando outra coisa pelo simples fato de que estará criando em português. Hoje. Aqui. Agora.
O que eu gostaria que o leitor percebesse, para quem sabe assim fugir da resposta fácil de que traduzir a Eneida em cordel é pura e simples extravagância, é que durante muito tempo nós não optamos por essa via mais cabeludinha da tradução rítmica. Na verdade, a tradição em português de traduções da Eneida foi a de usar o decassílabo branco de recorte neoclássico como ferramenta. Experimentos com o uso de verso de doze sílabas ou mesmo o de quatorze são em certos sentidos um pouco mais recentes. A tendência majoritária sempre foi a de usar uma ferramenta poética de amplo uso na poesia de língua portuguesa para traduzir uma outra ferramenta também de outro uso na poesia latina: afinal de contas o decassílabo é usado pra tudo, de poemas épicos a líricos e satíricos, exatamente como o hexâmetro, que até na bitola da poesia didática foi parar.
Aonde quero chegar é: mesmo decassílabo continua sendo artificialismo do mesmíssimo jeito, afinal de contas Virgílio também não compôs em algo que sequer se parecesse com o nosso decassílabo, isto é, com todo o aparato versificatório que legitima e chancela o decassílabo como a gente conhece. Entende? Toda tradução sempre envolve esse nível de artificialismo, esse desejo de escrever algo que consiga se passar pelo original na nossa cultura, o que invariavelmente envolve recriar aquilo com as ferramentas que nos sejam úteis. E aqui é que se situa a meu ver o ponto nevrálgico da coisa toda. O uso de tal ou qual opção pelo tradutor nunca é totalmente isenta; ele sempre está se comunicando com uma série de implicações que o uso desta ou daquela ferramenta acarreta no todo da tradução. Usar o cordel para traduzir Virgílio, nessa perspectiva, não necessariamente é uma extravagância inaceitável a ser lida como mero divertimento; pode ser um trabalho muito sério capaz de revelar muitas coisas sobre o original.
Uma das primeiras traduções da Eneida, aliás, feita por um português lá no século XIX, usou a oitava rima. Pare o leitor pra pensar no quão engenhosa não foi essa ideia. A oitava rima é a forma por excelência da poesia épica em português graças ao nível que Camões logrou alcançar. Se você for abrir qualquer manualzinho mequetrefe de literatura colonial brasileira, vai notar uma enxurrada de poemas escritos com pretensões épicas que se valem da oitava rima de matriz e recorte camoniano. Só que o grande modelo do Camões é Virgílio. O primeiro verso de Os Lusíadas, creio que o leitor já está careca de saber, é uma imitação muito inspirada de metade do primeiro verso da Eneida: "As armas e os barões assinalados" para "Arma virumque cano". Então quando esse tradutor português de Virgílio, cujo nome realmente me escapou (José? José de alguma coisa?), resolve usar a oitava rima, ele está dando um nó muito bem dado nos meandros da cultura, que consegue iluminar não apenas a obra de Virgílio como, ainda, a de Camões, afinal de contas ele faz com que Virgílio cante em português num dueto a todo momento com Camões - e de fato, em muitas passagens da tradução a gente vai notar que o tradutor português tirou de Camões as suas soluções, procurando pontos de contato bem frutíferos.
Com isso podemos voltar ao trabalho do Fábio. O cordel se presta a muitos assuntos; é uma forma múltipla, inserida dentro da tradição da poesia popular e, mais especificamente, da cantoria nordestina. Alguns recortes métricos do cordel se encaixam melhor nalguns tipos de assuntos e temas; a setilha, por exemplo, forma adotada pelo Fábio, é muito usada em poemas narrativos, e penso eu que o cordel narrativo é o modelo mais famoso de todos. Há todo um sem fim de técnicas que fazem do cordel uma forma poética muitíssimo elaborada e requintada, bem o contrário do que alguns intelectuais de gabinete tendem a pensar; dentre elas poderíamos mencionar o uso de expressões populares, algumas realmente muito específicas e capazes de dar toda uma concretude admirável à narrativa, e o ritmo dos versos.
Num cordel de José Pachêco em que ele narra a chegada de Lampião no inferno (um clássico, ao que me consta), o cordelista fala dos cães que foram queimados:
Morreram 100 negros velhos
Que não trabalhavam mais
Um cão chamado Trás-cá
Vira-volta e Capataz
Tromba Suja e Bigodeira
Um cão chamado Goteira
Cunhado de Satanás.
A graça todinha da estrofe está nos versos rodopiando na nossa cabeça, essa coisa meio frenética e doida que eles geram ao mesmo tempo em que criam efeitos de som muito sutis e bem feitos. Veja:
Um cão chamado Trás-cá
Vira-volta e Capataz
Uma forte assonância em A no primeiro verso, a aliteração em V contida no nome Vira-volta (quem não gostaria de ter um cão com nome assim?) ou a competente rima entre Trás-cá e Capataz, que consegue rimar o "-cá" com o "Ca-" de Capataz e "Trás-" com o "-taz" de Capataz, como que invertendo as extremidades dos vocábulos.
O Fábio usa de muitos desses instrumentos na sua tradução. Ele busca calibrar uma linguagem elevada e solene, que encontramos ao longo da Eneida quase toda, com uma coisa um pouco mais... coloquial. Hesito em dizer coloquial pois não quero dar a entender que por coloquial precisemos encontrar palavras de baixo calão ou coisa do tipo. Existem muitas gradações do que entendemos como coloquial, e, pra tentar ir direto ao ponto, você não precisa falar como um surfista bronzeado na novela das nove para ser exatamente coloquial. É possível ser coloquial mesmo em trechos como:
Uma fila de amazonas
Com pelta em forma de lua
Pentesileia conduz,
Brava, entre soldados sua,
Luta com cinto dourado
Onde um seio foi cortado,
Moça mais que os homens cura.
Tradução de:
Ducit Amazonidum lunatis agmina peltis
Penthesilea furens, mediisque in milibus ardet,
aurea subnectens exsertae cingula mammae,
bellatrix, audetque viris concurrere virgo.
Coloquial no sentido de que é possível ler de uma só vez, num ímpeto, num fluxo, sem fazer uso daquele tipo de recurso que embaralha a sintaxe muitas vezes sem necessidade (pois, parêntesis necessário, é perfeitamente possível - ênfase no advérbio - embaralhar a sintaxe e ainda assim ser claro, direto, elegante, bastando que o leitor se reporte às odes de Ricardo Reis). Ao mesmo tempo, sem abrir mão de um substantivo tão importante para a concreção da linguagem virgiliana como pelta. Pois pelta precisa ser pelta. Não dá pra cortar sob o argumento de que o leitor não sabe o que é. Isso é bobagem. O leitor curioso vai procurar saber o que é uma pelta. E essa é a grande questão. No auge da confusão no cordel de José Pacheco, lemos:
E lá vai a tropa armada
Em direção do terreiro
Pistola, faca e facão
Cravinote e granadeiro
E um negro também vinha
Com a trempe da cozinha
E o pau de bater tempero.
Se o leitor não souber o que é um cravinote, um granadeiro ou um trempe, ele que vá procurar o que é. O uso de cada um desses termos é fundamental para dar concretude à descrição, dar a cada coisa que se passa na cabeça do escritor o seu devido nome, e ao mesmo tempo contribuir para o sucesso sonoro de uma passagem tão admirável quanto essa.
Com a tradução, pelo menos até onde pude averiguar, as coisas se mantêm. Vejam:
A alma sua alimentou
E dando longos gemidos
Pelo rosto entristecido
Um rio bem largo rolou.
Recordado, tradução de:
Sic ait, atque animum pictura pascit inani,
multa gemens, largoque umectat flumine voltum.
Ênfase total para o verso 465, um verdadeiro painel, uma obra-prima à parte como tantos ao longo da Eneida. A sonoridade aqui é impressionante, faz com que a cena cante um som ambiente em volume máximo: o som murmurado da vogal U atravessa o tom palpável e espesso da consoante M e se ensopa inteiro do aspecto maleável da consoante L. O que encontramos na tradução é tão bom quanto: além das rimas, que, por terem sido atarraxadas a um fraseado fluente (e fluente certamente é um adjetivo melhor para a ideia que quero passar do que o desnecessariamente ambíguo coloquial), se tornam muito mais agradáveis e sonoras, isto é, ressoam melhor, muito melhor; além das rimas, temos ainda o som anasalado no antepenúltimo verso, temos assonâncias entrecortadas tais como gemidos-entristecido-rio (sinta o I retinindo nos ouvidos), temos o R no último verso e o par em L de largo-rolou, que, pontuando a estrofe, evoca à memória do leitor o adjetivo longo muito bem colocado versos atrás e o L elegante de alma-alimentou.
É realmente bem complicado traduzir uma coisa dessas. Merece a nossa atenção.