Matutando Ezra Pound.

A série Banzando acabou já faz um tempo, mas às vezes no silêncio da noite bate uma vontade de fisgá-la das águas do esquecimento que só vendo. O que, claro, seria perfeitamente possível, afinal de contas eu não sei quem além de mim se deu conta que ela acabou. Mas, a partir do momento em que minha disposição literária tem sido a de esmiuçar besteirinhas cada vez mais ínfimas, nem tanto pra mostrar uma suposta capacidade analítica quando muito esclerosada e sim (por favor, não se decepcione) pra evitar a fadiga, então, ao invés de amontoar meus bosquejos críticos no espaço de uma única postagem, prefiro expandir até onde for possível as ideias que me ocorrem em postagens separadas. O problema todo mundo já sabe qual é: o que surge como ideia meio besta vai ganhando corpo e se tornando séria, séria a ponto de exigir da gente a leitura de uma leva de obras, capítulos e artigos, isso até o ponto em que você respira fundo, senta na cadeira, come uma bolacha, estrala os dedos, abre o editor de texto e ― e ― e descobre que o interesse passou e a postagem promissora voltou a seu estágio larval.

Acontece. É tentando mitigar um pouco do mal, um pouco dessa ânsia bibliográfica de só se pôr a redigir quando se domina a bibliografia completa ou pelo menos parte fundamental dela (seja lá que diabos se entenda por "parte fundamental"), ânsia esta, é bom lembrar, maravilhosamente descrita por Mário de Andrade numa bela passagem, reproduzida num dos números da Banzando; é tentando, eu dizia, mitigar um pouco disso, que decidi ir comentando passagens belíssimas das tantas que existem nOs Cantos do velho Pound. É possível que o projeto, mavericcamente batizado "Matutando Ezra Pound", não vigore muito ou que dê as caras de maneira esporádica, uma postagem agora e outra só quando o país entrar nos eixos. Mas enfim. Quem negará a existência de todo um malévolo prazer secreto nisso de ficar traçando planos que no fundo sabemos que nunca iremos cumprir?






Do Canto 83. Bonito demais. Quando a segunda guerra acabou, o poeta, que apoiou de maneira efusiva o fascismo, chegou a ficar três semanas preso numa espécie de jaula a céu aberto, dormindo no concreto e completamente incomunicável. O Canto 83 foi publicado em 47, quando ele já havia sido transferido para o hospital psiquiátrico de St. Elizabeth, local onde ficaria por mais de uma década. Δρυάς é dríade, ninfa que na mitologia greco-romana habitava as árvores, mas também é o apelido que Pound deu para Hilda Doolittle, H.D., ela também um nome de destaque na poesia moderna americana, quando os dois namoraram décadas atrás. Taishan diz respeito a uma montanha sagrada na China com vários templos pela estrada.

Os Cantos é reconhecidamente um dos livros mais difíceis da poesia ocidental, mas às vezes penso que é bem essa dificuldade toda que em parte explica o porquê de tantas passagens terem ficado na minha memória. Esta é uma delas. Mesmo quando entendemos muito pouco ou quase nada, é como se de algum modo tivéssemos a certeza de que aquilo foi dito de maneira inigualável. Primeiro os olhos da ninfa comparados às nuvens, depois a lembrança terrível das celas da morte e então, como se a tempestade tivesse passado, de novo a ninfa, a montanha sagrada, a chuva que caiu, a chuva que um dia cairá... Você fecha os olhos e imagina o poeta, no fundo do poço, tostado por um sol escaldante, contemplando a paisagem lá fora e encontrando um momento de paz pra sua mente conturbada. É bonito.