"ferida", de Augusto de Campos.

Gosto de voltar a esse poema do Augusto. É sem dúvidas um dos meus preferidos. A última vez que o reli foi quando o Antonio Cicero propôs uma leitura engenhosa abordando-o sob uma clave erótica: a ferida seria a abertura da vagina da mulher e o ir e vir, representado principalmente pelo conjuntinho substantivo seguido de verbo, a coisa seguida da ação, bem como por padrões de recorrência fônica da vogal O fechada e aberta; o ir e vir, eu dizia, representaria a fricção do coito sexual.


É uma interpretação convincente. Nunca imaginaria algo do tipo. Mas quando olho pro poema do Augusto, eu tendo a ser um pouco mais castiço. Vejo nele uma tematização admirável de quando a dor lacera nossa pele e de quando tempo depois nos lembramos dela. E ela volta a doer. Vou tentar ser o mais claro possível. Já nos primeiros versos encontramos a palavra "ferida" repartida em duas, todos os holofotes voltados para o vocábulo "ida", bem como a mesmíssima palavra inteirinha no verso 4, sã e salva como se nada tivesse acontecido. Antonio Cicero observa que se na primeira aparição a palavra, ocupando dois versos, incute uma relação conotativa para com o sentido apresentado, ou seja, dor fictícia, saída de um fingidor, já na segunda a encontramos em seu sentido denotativo de dor que o poeta deveras sente.

Pois bem. Na primeira aparição, como dito, existe um destaque para o "ida" basicamente por três motivos: o primeiro deles é que a separação não segue as convenções gramaticais. Ela não dá destaque às sílabas e sim aos vocábulos acanhados no reino surdo das palavras. O segundo é que ao repartimos "ferida", metade pelo menos do que restar da operação continua fazendo sentido em português, bem o contrário do que ocorre com "fer". E terceiro pois o ato de fazer acompanhar alguma coisa de um verbo, desdobrando portanto da coisa uma ação que lhe seja implícita, é um procedimento de enorme recorrência ao longo do texto. Pra ser mais claro: dentro da coisa existe um verbo que lhe serve de íntima essência ou de engrenagem fundamental. No caso de "ferida" o verbo é "ida", sugerindo num primeiro instante que a razão íntima da ferida é o passar, o ir-se embora, o amainar-se. No entanto, quando observamos melhor a primeira metade, notamos que "fer" não resta como extrato inteiramente desprovido de sentido. Em francês quer dizer ferro e pode, principalmente no caso do francês antigo, servir de adjetivo para feroz, cruel, selvagem. São sentidos possíveis principalmente se nos lembrarmos que enquanto em latim ferro é ferrum, para que cheguemos a feroz ou fero, como no português arcaico, basta que retiremos um R: ferrum, ferum. Em catalão, fer, saído do occitano far e do latim facere, é fazer. Só que a parte mais interessante da pesquisa foi quando descobri que fer, no anglo-saxão (feor) e no inglês médio (ferfar), quer dizer longínquo.

Se Augusto tomou contato com este último sentido para fer, então provavelmente foi a partir do inglês médio. Anglo-saxão eu acho que ele não conhece. O máximo que deve ter lido a respeito foi a partir da tradução livre do Pound pro Seafarer (há uma passagem no original que diz: "þæt ic feor heonan", "que eu, longe daqui"). Agora já o inglês médio é possível sim, ou seja, por inglês médio eu me refiro especialmente a Chaucer, que, já no Prólogo Geral, diz, sobre o shipman (ou sailor, nas versões modernas), que "wonynge fer by weste", "vivia longe a oeste". Enfim. Veja o leitor que não quero exagerar demais na atribuição de sentido a "fer". Confesso que me parece mais conveniente do que propriamente verdadeiro descobrir que "fer" pode significar, no primeiro verso do poema, longínquo, como se, portanto, no vocábulo "ferida" pudéssemos atribuir os sentidos de algo remoto e a um só tempo pretérito. Talvez seja mais seguro simplesmente falarmos da ferocidade e da selvageria causada por algo que já passou. É mais seguro, de fato, muito embora os poemas do Augusto, cientes e em muitos sentidos alicerçados na abertura linguística e hermenêutica provocada por alguns dos ápices da literatura moderna (peço ao leitor a gentileza de se lembrar de Joyce e Pound), suporta e quem sabe até mesmo convida o leitor a que traga, pra leitura do poema, um pouco da culinária local de várias culturas, poéticas e línguas. No fundo nós todos, leitores, em certa medida somos livres para tanto, mas não penso que por o sermos nós necessariamente devamos fazê-lo a qualquer preço.

Se pudermos portanto deixar de lado esse ponto e pelo menos avançar na leitura, notamos logo após que a ferida, a princípio fraturada e escancarando a própria essência, é ferida sem ferida, o que de pronto nos remete à dor que desatina sem doer em Camões e, de vento em popa, à análise de Antonio Cicero, a qual, de resto, apreciaria descobrir que no irlandês antigo fer, saído do latim uir, quer dizer "homem". Pois bem. Se ela é sem ferida, então toda a sua selvageria estaria de algum modo escondida ou então doeria de uma maneira não usual. Ou, ainda, se quisermos novamente seguir a sugestão de Antonio Cicero quando diz que a segunda aparição da ferida diz respeito a seu sentido denotativo, então falamos simplesmente de uma ferida que dói de maneira distinta do que comumente achamos que ela dói, distinta, bem se entenda, de quando uma lâmina de ferro rasga nossa carne, no que o sentido francês de "fer" viria à tona e traria de lambuja o formato do poema, perfeitamente associável a uma espada que se crave no peito de alguém.

O ponto que compensa ser feito aqui, a meu ver, é que além desta mudança de sentido dada à palavra "ferida", cabe notarmos que quando avançamos para o quinto verso nós encontramos uma outra mudança que pode ser lida agora num âmbito sintático. Sei que a partir do momento em que o poema não tem pontuação e mais até do que não ter pontuação: a partir do momento em que o poema subverte a leitura linear tradicional da esquerda pra direita em prol de um tipo de leitura vertical, de resto sempre possível quando o assunto é poesia e seus maciços sonoros (basta o leitor recordar que num poema rimado a expectativa sonora causada pelos padrões de recorrência nos finais dos versos o obriga a ler e a sentir o texto verticalmente); sei disso tudo, mas ainda assim penso que um fantasma da sintaxe chacoalha suas correntes ao longo do texto do Augusto e consegue no mínimo sugerir algumas coisinhas. Uma delas, precisamente, é a possível mudança sintática na passagem do verso quatro para o cinco. Digo: é como se após os quatro primeiros versos tivéssemos uma vírgula implícita que transformasse o que foi lido até então num complemento caracterizador daquilo que o "tudo" é. Entendido assim, o que me parece absolutamente possível, então a verdadeira dor é a dor de tudo, a dor cósmica, universal. No entanto, a vírgula é quando muito um sinal possível, afinal de contas poderíamos esfregar os olhos e enxergar agora dois pontos ou um ponto e vírgula logo após o verso quatro, criando não mais uma relação de subordinação entre os termos e sim uma de coordenação: a ferida sem ferida é um estágio, diz respeito a uma determinada situação, ao passo que o reinício de tudo já é outra coisa, outro domínio. Se um liame existir entre ambas, então este liame não é mais explicado pela junção sintática e sim pela semântica do texto. É uma opção; não sei se preferível à outra, mas uma opção.

O que vemos nos versos seguintes é que a vogal O passará a desempenhar um papel de destaque na articulação do texto. Isto principia com o "co-" de "começa", indicando, curiosamente, que a vogal, de suma importância dentro do texto, já começa no próprio começo. Poderíamos falar também do "-do" de "tudo"; no entanto, a impressão que tenho é que a fatura sonora desta sílaba não possui o mesmo destaque que a vogal seguinte. Caso o leitor queira realmente contabilizá-la, discordando de minha impressão, eu, além de não me importar nem um pouco, vou até sugerir que atribuamos agora a gênese da vogal mágica do poema à fricção entre o final de tudo e o começo do começo. Mas podemos avançar. Tudo começa não exatamente pela primeira vez e sim "de novo". Sabemos que a palavra "novo" é de suma importância na poesia do Augusto, tanto como norte teórico quanto pelo resultado a que noutras passagens o poeta logrou alcançar, por exemplo no caso de "ovo novelo". Nele, notamos que a comunhão entre o velho e o novo engendra um novelo que os torna indissociáveis e, mais até do que indissociáveis, torna possível que um fomente o outro, permitindo que do coração de um deles o outro seja gerado. O contato aqui é essencialmente fecundo, no que a própria forma do poema, remetendo ao ovo de Símias de Rodes na Grécia antiga, bem o atesta.

No caso de "ferida" penso que as coisas se repetem. Se a ferida é passada e se não é ferida no sentido tradicional do termo, desses que demandam no mínimo uma atadura, penso que podemos vislumbrar no tudo começar de novo uma sugestão muito forte da força motriz representada pelo passado em relação ao presente. A preposição "de" antes de "novo" já deixa isso claro, afinal de contas não é o mesmo que dizer que tudo é novo e sim que tudo acontece de novo. O grande ponto é que nesse acontecer de novo nós não encontramos a mesma coisa, não encontramos uma reprodução fiel do que estávamos cansados de ver, afinal de contas se o novo, na poesia e nas reflexões críticas do Augusto, é o que corta relações com a parte menos engajada do passado, é também o que estabelece as relações mais fecundas com o presente e permite vislumbres criativos do futuro. Ou seja: não ocorre apenas de novo como repetição, subordinando toda a força criadora do novo ao que a preposição ordena que seja feito. Se ocorre de novo, ocorre de maneira distinta, tomando os dados do passado não como pauta e sim como estímulo.

É quando o poema movimenta suas engrenagens e inicia sua fase dois. Aqui temos um processo alquímico onde, como sugerido anteriormente, um objeto, um substantivo, dá origem a um verbo. Se a princípio, como notado por Antonio Cicero, o procedimento é tautológico, por exemplo quando o poeta nos diz que a flor flora, por outro com o passar dos versos as coisas mudam um pouco de figura. Veja quando ele diz que o céu cai. Ora: o céu não é o elemento alto e superior por excelência? Se ele cai, se ele se reduz ao terreno, ao rés do chão, então ele se subverte. No entanto... O que acontece nas malhas do poema pra que uma mudança tão profunda ocorra? Se a flor flora, ela se realiza, ela transforma o que era potência em realidade. O florir da flor é o que traz a flor ao mundo. Caso diverso é quando o céu cai: se ele cai, então ele deixa de existir, deixa de ser céu, nega-se. Que tipo de reviravolta motiva algo do tipo?

Outra pergunta pode ser mais produtiva: e se por acaso... foi sempre assim? Digo mais produtiva primeiro porque estarrece e segundo porque defensável, em termos. Vejamos o caso de "a cor / cora". Antonio Cicero notou bem que a mudança do O fechado para o O aberto é produtora de sentido. No caso de sua leitura, de uma fricção erótica. Certo. É bem notado e funciona bem em sua leitura. De minha parte, noto que existe uma inversão: a vogal A que abre o verso é transferida para o final da palavra seguinte, meio como se invertêssemos por completo e de forma radical sua constituição a ponto do objeto tornar-se um verbo, um ato. Quando Augusto diz que as coisas começam de novo, ele não quer dizer que elas começam do zero e sim que as coisas do mundo, já existentes e realizadas, realizam-se novamente. O processo para tanto, num primeiro instante, é a incorporação do artigo definido para o final da palavra, fazendo com que aquilo que definia a coisa de modo específico, ou seja, é a flor e nada mais, a transforme num verbo, numa ação universal: se a flor é aquela em específico que agora contemplo, com o deslocamento do artigo ela pode se tornar qualquer outra flor. Penso que este predomínio do Aberto sobre o Específico pode ser lido também se notarmos que no primeiro verso a vogal O fechada define a ossatura sonora do verso: até mesmo o artigo definido, que inclui de início uma pequena abertura na expressão, é impotente diante da força da vogal fechada superveniente. A situação se subverte no verso seguinte, onde as vogais todas passam a ser abertas, indicando a força com que a abertura se instaura na ordem das coisas.

Isto no caso da cor e da flor, um conjunto de quatro versos que rima de maneira quase que absoluta entre si. Se a cor cora, ela, na leitura de Antonio Cicero, indica um pudor, uma vergonha. No caso da leitura que proponho, a abordagem pode ser mais simples. Se tudo começa de novo, então primeiro as coisas se tornam mais nítidas (ganham cor, vivacidade) e depois os objetos do mundo começam a surgir. São etapas iniciais, seguidas então de "o ir /  vai". A fricção erótica mencionada por Antonio Cicero reside aí. É também quando a subversão no íntimo do poema se opera. Se até então o objeto dava espaço ao verbo em sua plena possibilidade de realização, agora, pelo contrário, é o verbo na possibilidade de sua realização que de fato se concretiza. Seja lá o que fosse para ir, ele vai. É como se as coisas primeiras do mundo já tivessem sido estabelecidas e agora novos elementos pudessem entrar em cena, revelando algo além de sua manifestação física exterior. Estamos prestes a entrar no reino íntimo das coisas, onde as contradições se operam e onde uma ferida pode ser ferida sem ferida.

É o caso do riso que rói e do amor que mói. Os verbos são escolhidos com o objetivo precípuo de estabelecer uma relação paranomásica com o substantivo, procedimento de resto recorrente na poesia do Augusto. No entanto, veja que o verbo carcome alguma coisa, que ele não mais permite que o objeto se realize de maneira plena mas, pelo contrário, se une a esse mesmo objeto para que ataque seja lá o quê. Penso que essa incógnita, o alvo dos ataques do riso e do amor, pode ser atribuída tanto ao eu lírico quanto ao leitor, afinal de contas qualquer pessoa já deve ter se sentido pelo menos uma vez na vida ferido por dentro. Ora: se o riso rói, então tomamos o que era pra ser revigorante (a alegria) e o transformamos num mal. Só é crível que o façamos ou porque o riso é zombeteiro ou então porque alguma coisa dentro do indivíduo ou da vítima, por assim dizer, está fora dos eixos. Mas como, alguém nos perguntaria de imediato, poderia estar fora dos eixos se tudo acabou de começar de novo, se tudo está na mais perfeita calmaria?

Bem. Do movimento da cor que é para a cor que cora, temos, eu já disse e redisse, uma espécie de abstração. Saímos do mundo concreto e vemos a possibilidade de que tudo comece de novo. Algo de poderosamente diverso ocorre com o ir que vai. Agora colocamos os pés no chão, passamos a habitar um mundo palpável. E é justamente porque o habitamos que as feridas podem ser causadas, não apenas as feridas de fato, denotativas, mas também as implícitas, as metafóricas, conotativas. Neste processo, de uma palavra como "amor" conseguimos retirar "mói", que embora até seja poeticamente plausível de ser retirada daí, por outro somente o é a partir de uma subversão profunda do poder regenerativo do amor.

É como se saíssemos do gênesis do mundo para o mundo às avessas, pois é justamente nesta reversão profunda que a dor volta a ser o que é: ela dói. Se até então pensávamos que a ferida, uma vez ida, sara, cicatriza e passa, no que podemos voltar a nossa rotina normal, por outro lado a lembrança dessa mesma ferida nos dilacera, exatamente o que ocorre quando nos despedimos de um ente querido. O baque surdo de uma pá de terra lançada sobre a tampa do caixão repercute em nossos ouvidos por meses até aos poucos o esquecermos e reinventarmos o mundo. Um mundo, por certo, onde aquela pessoa não mais existe: e por isso um novo mundo. A dor, se me for dado acrescentar último sentido à passagem "ir / vai", se era pra ir, finalmente vai, mas outras desilusões acontecem: um riso de zombaria que nos corroa ou um amor que nos triture. É quando a dor volta a doer, seja por ser uma dor nova, seja porque a dor antiga ainda nos lacera, ainda nos fere. Acho que o poema do Augusto nos ajuda a lidar melhor com tudo isso.