Dá pra gostar de poemas minúsculos?

TICO. Olha, mas vem cá. Quando falamos de um poema bom, falamos de um que dê pra ser declamado tempo suficiente da garota se virar pra você e suspirar de paixão. Mas o que acontece quando o poema é minúsculo, minúsculo? É possível considerá-lo bom sem, digamos, afetação? Existe um tamanho mínimo para o que se pode entender como um bom poema?


TECO. Um tamanho mínimo? Não sei... Hum. Tamanho mínimo? Olha. Não, acho que não. Pois assim... Veja. Por que haveria?


TICO. Não te acha exagerado que se possa apreciar um texto como "amor / humor" do Oswald?


TECO. Ah, sim. Compreendo. Bem. É que às vezes o que entendemos por poema pequeno não chega exatamente a esse tipo de caso. Extremo, caso queira.


TICO. E por que não chegaria? Digo: se com poema pequeno nós pensamos numa quadra ou quando muito num dístico, não te parece que, diante da pergunta que fiz, a resposta seja precisamente que a quadra ou o dístico seriam o limite, o menor tamanho possível para um bom poema?


TECO. A princípio sim, mas não vejo como o raciocínio possa prosperar no caminho que você sugere. Sim, também me parece que de um modo geral quando falamos num poema pequeno nós tendemos a pensar numa quadra, num haicai ou num dístico, mas daí não se segue que só aceitemos esses tipos como os únicos possíveis para o que se entende por bom poema pequeno. É muito mais porque são comuns, porque travamos contato com eles quase sempre, principalmente na poesia popular e satírica. Mas eu penso que é só. Nossos padrões estéticos priorizam a originalidade e a inventividade, de modo que não caberia negar de forma apriorística a possibilidade de escrever um poema curto que seja menor que um dístico. Se taxo de afetação gostar de um poema assim, eu basicamente atribuo a alguém uma pose atribuível a qualquer outro que cometa o crime terrível de não gostar do que eu gosto. É uma crítica vazia, portanto. Se alguém realmente gosta, se realmente aprecia, pois aprecie, pois goste.


TICO. De onde acha que vem essa preferência pelo dístico ou pela quadra?


TECO. Uma questão de ordem cultural, talvez. Afinal de contas eu preciso de dois versos pelo menos pra fazer uma rima. Posso, claro, num único verso chegar a uma rima interna, mas rimas internas não costumam ser nem tão comuns e nem tão chamativas quanto as externas. Então penso que a partir do momento em que a rima possui um império consolidado na nossa tradição poética, é natural que o dístico seja um tipo de poema curto mais preferível que, sei lá, o de um só verso. Eu consigo chegar com mais comodidade a um nível de mediano a medíocre com uma rima protocolarmente atarraxada num dístico do que se precisasse bailar no tablado de um único verso. Além do mais, o dístico possui uma longa tradição poética que remonta ao dístico elegíaco, muito usado por exemplo nos epigramas greco-romanos.


TICO. Compreendo. Mas gostaria de investigar um pouco mais a pergunta inicial que fiz. Um poema como "amor / humor" do Oswald pode ser lido como bom? Você me respondeu antes, mas quero prosseguir na provocação: não seria afetado demais apreciá-lo?


TECO. Ser ou não razoável dependerá muito mais do texto crítico do que propriamente do objeto. Ele pode parecer muito ridículo para mim ou para nós leitores de um modo geral, mas pode adquirir uma importância insuspeita se for lido de maneira criativa e convincente por alguém de talento. Não posso negar essa possibilidade a nenhum poema.


TICO. Prossiga.


TECO. Penso que a força desse poeminha do Oswald reside muito mais no seu valor relacional, ou seja, por ser como é num contexto específico da estética modernista e contra um pano de fundo específico do que se entendia como poesia amorosa. Ele obviamente não é o primeiro a avacalhar o amor, mas penso que o fez de maneira especialmente memorável por ter criado um maciço de sentido a partir da junção de duas únicas palavras. Quando pensamos no amor, nem sempre (e principalmente no âmbito poético) pensamos que ele é humor, que ele é patético, risível. A poesia satírica de séculos já tratou o amor nestes termos, mas é preciso lembrar que ela o fazia dentro de uma divisão tradicional dos gêneros, onde era não só comum como fazia parte das convenções da poesia satírica que se retratasse o amor e suas aventuras com a veia cômica inflada. O grande ponto com o poema do Oswald é que ele se dirige à poesia séria, ele visa enfrentá-la e em muitos sentidos questionar a divisão estanque dos gêneros, o que a prosa carnavalesca, por assim dizer, de seus livros em prosa demonstra muito bem.


TICO. Prossiga.


TECO. Mas penso que podemos notar mas algumas coisas também. Quando ele une essas duas palavras, ele o faz sugerindo que humor seja a definição íntima, a essência do que é o amor. Afinal de contas "amor" ocupa a posição de destaque, aparece no título chamando a atenção do leitor e fazendo com que pressuponha de antemão umas coisinhas, cogitando, quem sabe, as abordagens possíveis que o poeta fará. Oh, veja só, acabei de achar um poema de amor; onde está o buquê de flores onde as joaninhas planando no jardim? ― E no entanto, o que ele encontra é uma única palavra com uma letrinha a mais que o título (uma letra, vale lembrar, muda) a um só tempo servindo de definição e demolindo boa parte do que entendemos como poesia amorosa. O amor é uma coisa patética ou, quando muito, se quisermos pensar numa leitura alternativa, um pouco forçada quem sabe, o amor é uma questão de humores, dos líquidos que segundo a medicina antiga possuíamos no corpo e que se em excesso acarretavam patologias. O amor, portanto, como doença.


TICO. Prossiga.


TECO. Só que o Oswald o faz, ele sugere algo assim, num livro que explora a noção do aprendizado, quase como se o autor quisesse redimensionar o conceito que temos de amor a partir da perspectiva propriamente iconoclasta de um garoto que compõe seu primeiro caderno de poesias. Noutros poemas o Oswald vai equacionar o amor de maneira admirável e memorável contrastando-o com a geopolítica da Segunda Guerra; aqui, todavia, ele claramente provoca o leitor num jogo cujas cartas já foram dadas pelo livro como um todo. Além disso, eu noto que o Oswald faz essa brincadeira a partir de uma das ferramentas mais queridas e usadas pela poesia amorosa mundo afora: a rima. E mais: uma rima pobre, não só porque feita entre substantivos mas principalmente porque envolve uma palavra que comumente aparece em posição de rima: "amor". Qualquer um que já leu uma dezena de poemas amorosos na vida sabe que palavras como "dor" ou "flor" comumente brotam das quinas do poema logo após. Caso totalmente diverso é o de "humor", que, realmente, cumpre bem seu papel de redimensionar com radicalidade e faceirice o que entendemos por amor.


TICO. Lido deste modo o poema não deixa de ter lá sua engenhosidade.


TECO. Sim, sim. Não é meu preferido do Oswald e penso que endeusá-lo demais pode ser perigoso. Afetado, caso queira. Eu pelo menos não vou me remoer demais com a acusação. É um poema corajoso e realmente me parece bem bolado. Não consigo elogiá-lo mais do que isto, e penso que o próprio poema não deseja ser levado muito a sério. Proceder assim seria retirar parte de sua graciosidade iconoclasta. É diferente de outros poemas também menores que me parecem pedir um exercício de análise mais... Como dizer? Grave, solene, sei lá. Não o "agora vou deixar que dê cabriola e monte burrinho sobre o verso dos outros". Veja ― não estou sugerindo que o poema humorístico ou satírico não possa ser levado a sério e que não possa ser submetido a um escrutínio rigoroso. Podem, como qualquer poema e qualquer texto pode. Mas chega uma hora em que você precisa encarar o texto de uma maneira mais livre, deixando que ele repercuta. Acho que com todo poema é assim, por exemplo um poema amoroso que te faça fechar os compêndios e suspirar lembrando-se do rosto da pessoa amada. Só que o poema satírico, o humorístico... Ele pede pra que pisquemos pra ele e ele pisque de volta.


TICO. Como assim pede?


TECO. Se a base do seu poema é a iconoclastia, a derrubada de um ícone (no caso, o amoroso e, mais ainda, o tratamento um tanto piegas que ele recebe), então não acho correto que se queira transformar esse próprio poema numa segunda espécie de ícone, como se ele realmente pretendesse substituir o ícone da poesia amorosa por uma nova concepção poética em que adolescentes andarão por aí afora contando de maneira vagamente rebelde seus relatos apaixonados. É possível que o poema também possua uma certa graciosidade dentro do conjunto e nutra parcela de sua força da exata posição em que se encontra, sem, todavia, que chegue a alcançar os páramos da iconoclastia, muito embora permaneça demandando do leitor o não ser levado a sério demais. Ou seja: o poema funciona naquela posição em que está incluso no livro, e é mais ou menos por aí que ele deve ser considerado. Afetação, neste caso, seria não respeitar a especificidade e as fontes estéticas do poema. É isso. Não se trata de dizer que afetação é elogiar todo e qualquer poema minúsculo, pois, como dito, não enxergo nenhuma vedação apriorística que negue que um poema minúsculo possa ser um bom poema.


TICO. Dê um exemplo do que disse.


TECO. O inédito incluso na sequência Cigarros na cama, do Ricardo Domeneck. Ele diz: "soueu / ouseu". A dinâmica entre afirmar-se independente de um amor que cria uma relação de dependência e reafirmar, como que na própria medula, que o que você é, apenas é graças àquele amor; acho que ela ficou expressa de maneira admirável neste poeminha. No centro mesmo do "sou" existe a mola-mestra da alternância, ou seja, é quando mergulho no "eu" que consigo me deparar com a sugestão incômoda de que na verdade eu seja algo a mais ou pelo menos algo distinto do que sou. É precisamente ai que aporto no "ou" e, dele, chego ao "seu", que, mais uma vez, guarda dentro de si o "eu". A proximidade imensa dos vocábulos sugere que não temos uma opção e sim um processo cíclico: uma palavra leva à outra e esta leva à primeira. Somente posso ser eu mesmo quando estou amando, quando pertenço a outra pessoa. Se por um lado isto afeta minha individualidade, me faz deixar de ser eu mesmo para ser de alguém, ser objeto de posse, por outro lado é precisamente na troca amorosa que posso me realizar como pessoa de maneira mais plena.


TICO. Compreendo.


TECO. Vejo um pouco disso também no epigrama mulher de respeito, da Angélica Freitas: "diz-me com que tu deitas / angélica freitas". Não quero sugerir que o poema dela ou o do Ricardo sejam poemas que ganham sua força estética apenas por estarem na posição em que se encontram. Gosto desses poemas. Acho, e é bom ressaltar isso, que ganham mais quando lidos no conjunto em que se acham, o que afinal de contas não é privilégio apenas deles. Mas no caso desse epigrama da Angélica, incluso na sua última coletânea de poemas, acho que a energia contestadora e política do livro como um todo encontra uma espécie de epicentro nestes dois versos. Veja: a Angélica começa remetendo o leitor à suposta passagem bíblica que nos diz que podemos julgar alguém observando com quem ele anda. Digo suposta pois a rigor não existe uma passagem exatamente assim na Bíblia. Ela é, na verdade, resultado do que se deduz da leitura de passagens principalmente dos Livros Sapienciais.


TICO. Prossiga.


TECO. A linguagem do epigrama parece se tornar um pouco mais grave que nos demais poemas do livro. A coloquialidade deles e o uso recorrente de recursos poéticos tipicamente modernos (o verso livre branco, o humor e o nonsense são dos mais característicos) cedem lugar a dois versos quase isométricos (cinco e seis sílabas respectivamente) rimados entre si (rima, aliás, rica) e todo escrito na segunda pessoa do singular. Parece existir uma espécie de solenidade e gravidade no poema, por exemplo seu início no imperativo: "diz-me", além, claro, da referência bíblica. Só que agora, ao invés de falarmos de com quem a pessoa anda, falamos de com quem ela se deita. Não é o que o machismo com frequência diz às mulheres? Que se ela se deita com qualquer um, é mulher de ninguém, é vagabunda e isso e aquilo. Pois bem. Mas note que no segundo verso a Angélica inclui seu nome e seu sobrenome. Ela como que se dissocia. Assume, no poema, a voz de um eu lírico autoritário que quer dizer quem ela quem ela é porque se relaciona com fulano e com sicrano.


TICO. Prossiga.


TECO. E tão forte é a imposição que a própria Angélica, transformada em objeto da ordem no verso primeiro, é destituída de sua posição de autora para que se sente no banco dos réus. A farpa social é notável: não é incomum que na boca de populares a vítima de estupro tenha sua narrativa julgada e contestada. Ora: sabemos que de fato não se pode dar credibilidade absoluta à palavra da vítima num primeiro momento, afinal de contas as exigências de um devido processo legal pedem por uma investigação, pela ampla defesa e pelo contraditório. No entanto, veja que mesmo assim a narrativa apresentada pela vítima é tratada não raro com menosprezo, como se seu valor testemunhal inerente fosse apagado tão logo sabemos o número de pessoas com quem ela se deita. O mecanismo que o poema emula é em essência o mesmo de toda vez que uma mulher é silenciada, mas isto, veja bem, num dístico extremamente conciso e habilidoso em sua composição.


TICO. Visto desta maneira....


TECO. Penso que vários outros exemplos poderiam ser dados. Pegue Silêncio, publicado no livro de estreia da Natália Agra: "aquilo que os grilos descosturam". É meio que como o poeminha do Oswald, ou seja, coloca o leitor com algo que tem cheiro de definição. Quando, principalmente nas grandes metrópoles, por algum milagre o silêncio reina, nós conseguimos ouvir os grilos. Só que perceba a delicadeza na escolha do verbo: "descosturam". Ela poderia dizer, como creio que poetas mais desleixados diriam, "desnudam". É mais poético, afinal. Li uma vez não sei que poeta falar num gládio desnudo, por exemplo. O camarada escreve que isso ou aquilo se desnuda e o leitor só falta vislumbrar a silhueta da Rooney Mara por trás da cena. Agora "descosturam"... É muito mais efetivo. Mais palpável, sabe? Tira a coisa dessa passividade morna e deixa a situação mais ativa. Se alguma coisa é desnudada, você quer saber de imediato o que existe por trás, você quer contemplar o corpo nu. A roupa é vista como um empecilho odioso a ser retirado como se nada fosse e principalmente como se não oferecesse resistência. Com "descosturam", pelo contrário, além de não termos notícia de que a descostura chegou ao fim, encontramos, muito pelo contrário, um labor indefinido, constante. O silêncio não simplesmente revela o íntimo das coisas como, mais ainda, desconstrói um estado de coisas. Mas vamos além. A construção sonora. Uma rima interna na primeira metade do poema adicionando um ritmo mais lento: "aquilo ... grilos". Se não fizermos uma sinérese na passagem "que os", então, veja só, podemos ler o verso como um decassílabo heroico. Acho até, se quer saber, uma possibilidade inteiramente possível, afinal de contas a sugestão do verso é de algo pausado, induz o leitor a respirar um pouco. É bem o que acontece pela rima interna e depois pelo verbo, que ocupa a segunda metade do decassílabo heroico e encerra o verso com a tônica recaindo sobre a última das vogais, a mais próxima de fazer com que nossa boca se feche. O desenho sonoro desse poema da Natália é maravilhoso.


TICO. O Ungaretti tem um poema de um único verso onde a vogal U também se faz muito presente. Una colomba: "D'altre diluvi una colomba ascolto". Também coube no espaço do decassílabo heroico e começa com uma vogal que primeiro joga a enunciação para o alto (D'altre) e então realiza o voo ao rés-do-chão das duas próximas tônicas (diluvi una), encerrado com a mudança ocorrida com o poeta de fato ouvindo a pomba (colomba ascolto).


TECO. Isso mesmo. E cabe lembrar que a disposição das palavras nesse verso é maravilhosa. Ela vai como que revelando aos pouquinhos pro leitor a cena. Começa com o D'altre, talvez a palavra mais dramática de todo o texto, depois para o dilúvio, então o artigo indefinido, a pomba e o verbo. A inversão sintática permite que do horror de um dilúvio repetido acompanhemos a vinda da pomba. Ele também tem outro poema ainda menor, Mattina:"M'illumino / de immenso". Haroldo de Campos quis manter o acento na segunda sílaba ao traduzi-lo: "Deslumbro-me / de imenso". Já Geraldo Holanda Cavalcanti optou por realçar o paralelismo notável entre as palavras, visto por exemplo no fato de que illumino e imenso abrem e fecham com vogais idênticas: "Ilumino-me / de imenso". Que dizer de um poema assim? Que ele parece sugerir uma espécie de beleza misteriosa? É um comentário que talvez até sirva, desde que o leitor já de antemão esteja convencido da força do poema ou que acabe gostando e encontrando no comentário uma explicação possível.


TICO. Seria portanto um caso limite, um caso que desafia a crítica e mostra a impossibilidade da análise?


TECO. Não acho. Ou pelo menos não vejo como a dificuldade em falar do poema se relacione à impossibilidade absoluta em comentá-lo. Por que haveria, aliás, essa impossibilidade, essa vedação? É como se julgássemos que a crítica fosse uma maneira enfadonha e previsível de estragar o prazer do poema. Eu não minto que nas mãos de muitos tende a ser bem assim, mas não posso negar que alguns críticos admiráveis fizeram precisamente o contrário. Minha tendência ao ler um julgamento de Pound, Woolf, Kenner, Empson é o de correr pro texto e ver se é realmente aquilo que o camarada disse.


TICO. Compreendo. Mas como lidar com o Mattina de Ungaretti? Ficaremos apenas ao redor da tal beleza misteriosa?


TECO. Podemos, naturalmente, ficar. Nada nos impede, e penso que o prazer da literatura acaba residindo em grande medida neste desconforto. Não é o que o velho Kant nos diz com o tal livre jogo das faculdades do intelecto? Quando me vejo diante de um objeto belo, muito embora meus neurônios tentem chegar a alguma explicação pro que é aquilo que sinto de bom ou pros motivos daquilo ser belo, eles não conseguem ― mas tentam ― mas não conseguem ― mas tentam e é disso, desse ir e vir de mãos vazias e ainda assim senti-las cheias, que o prazer diante de um objeto belo surge.


TICO. Então o mistério da beleza seria em essência compartilhado por toda obra de arte?


TECO. Penso que sim. Faz parte do que nos faz apreciar tanto obras de arte. Isto excluiria a crítica? Em parte. Aquela crítica que realmente pretende, ao modo de um teorema, convencer alguém de que a obra tal é bela ― bem, essa crítica se vê em maus lençóis num panorama assim. Pode até ser que ela convença, e, a depender do quão influente for a cadeirinha em que o crítico se senta, é bem provável que convença sim algum transeunte. Ele só não pode é pautar sua atividade nisto de ser sustentáculo ou régua estética da sociedade. Deve se preocupar muito mais em expor da maneira mais honesta possível a sua opinião, sabendo que ela vai ser varejada de discordâncias de todos os lados e a todo momento. O crítico, portanto, como pontapé para o debate.


TICO. Logo, diante da misteriosa beleza do Mattina do Ungaretti, tudo o que o crítico pode fazer é dizer com, sei lá, profundidade, acuidade e paixão o que sentiu lendo o texto?


TECO. Sim. Toda crítica começa sendo impressionista. Você pode usar muitos métodos depois, mas ela começa como crítica impressionista. O Wilson Martins já dizia isso, e alertava ser besteira que se pretenda recalcar essa origem. Se eu tivesse, por exemplo, que falar, deixar claro o que me pareceu digno de nota neste poema do Ungaretti ―


TICO. É, faça isso.


TECO. Pois bem. Eu começaria perguntando: qual o tema dele? O que ele dramatiza? Minha resposta é: uma situação recorrente na poesia do Ungaretti. A saber, o encontro do ser humano, coisa finita e mortal, "um bicho da terra tão pequeno", com o infinito, o inabarcável, o inefável. Considerando que ele o compôs em 17, em plena Primeira Guerra, e que o incluiu no seu Allegria, temos alguns significados contextuais dignos de nota. Você consegue imaginar um soldado que das trincheiras contemple as primeiras horas da manhã e diga iluminar-se de imenso com aquela paisagem?


TICO. É uma cena tocante.


TECO. De fato. A beleza suprema do nascer do sol contrastada com a desolação total do mundo. O ser humano, no mais fundo abismo, na mais negra de todas as noites, a noite da guerra, do extermínio ― o ser humano vê o sol e de algum modo se ilumina, e de algum modo nutre forças. É como se afirmasse: por desolador que seja e por mais que todas as saídas estejam para sempre vedadas, existe algo maior, existe um sol que nos ilumina. É mais do que um instante de inspiração: é uma afirmação enfática da esperança e do Bem.


TICO. Prossiga.


TECO. Neste sentido eu penso que não só as palavras illumino e immenso recebem destaque no poema, com todo o paralelismo notável que possuem, indicando portanto que a luz é sempre imensa, que faz parte de sua própria natureza transpor tudo e chegar até nós com sua Graça; além destas palavras, cabe reparar também no pronome me e na preposição de. Elas estão apagadas no poema porque elididas durante a pronúncia, a primeira graficamente pelo apóstrofo e a segunda tão logo dita. No entanto, a primeira serve para realçar que existe um sujeito que é iluminado. Se fosse suprimida, daria a entender que é o poeta que ilumina alguma coisa usando-se da imensidão como instrumento. E não é assim. O sujeito é paciente, ele recebe a ação. O pronome me deixa isso bem claro. Com a preposição penso que é no mesmo caminho: revela não um advérbio que caracteriza a iluminação e sim a causa, aquilo que permite o banho de luz. Não é apenas a manhã com seus raios de sol extensos e longos abarcando todo o cenário, mas sim algo maior, o sentido mais profundo dessa mesma manhã. Aliás, se quer saber penso que a solução de Geraldo Holanda Cavalcanti seria mais feliz se tivesse deslocado o pronome não para a posição enclítica, como pede a gramática, e sim proclítica tal como no italiano: "Me ilumino / de imenso".


TICO. É uma interpretação convincente.


TECO. Vamos ficar com mais um exemplo. Conhece o poema 85 do Catulo?


TICO. O do Odi et amo?


TECO. Esse. "Odi et amo. quare id faciam fortasse requiris. / nescio, sed fieri sentio et excrucior." Fiquemos só com a tradução do João Ângelo Oliva Neto: "Odeio e amo. Talvez queiras saber 'como?' / Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me." Pois bem. Parece ser um poema simples, simples a ponto de simplório. Qualquer um faria, não é mesmo?


TICO. Não sei se chegariam a dizer algo do tipo, mas é...


TECO. Creio que a maior parte de quem queira explicar sua fama tende ou a fazer uma longa explanação sobre os gêneros na poesia antiga, falando de tudo menos do que se pretende, ou então falar que o poeta conseguiu traduzir um sentimento complexo em dois únicos versos. Afinal de contas amar e odiar já é quase catalogado como um dos males que afligem a raça humana. Muitos depois de Catulo falarão do mesmo assunto, por exemplo poetas barrocos ou, o que pode causar alguns tremeliques e infartos em classicistas, cantores populares tais como Leandro e Leonardo na primeira estrofe de Entre tapas e beijos: "Perguntaram pra mim / Se ainda gosto dela / Respondi tenho ódio / E morro de amor por ela". Obviamente não quero cair no proselitismo ralo de equiparar o refinamento estético do poema do Catulo com a letra da dupla sertaneja, em parte porque a comparação não faz sentido (a divisão entre os gêneros, afinal, era reconhecidamente essencial pelos próprios antigos) e em parte porque simplesmente não vem ao caso. É uma maneira de demonstrar que o poema permanece vivo. Até mesmo antes de Catulo conseguimos enxergar algo aqui e acolá.


TICO. Exemplifique.


TECO. No poema 172 da antologia de Estratão de Sardis (inclusa como Livro XII da Antologia Grega), atribuído a Eveno, encontramos o seguinte raciocínio: se odiar (μισεῖν; é uma das raízes para "misantropia") dá trabalho, é penoso (πόνος), e amar igualmente, então é muito melhor ficar com o golpe da dor mais adorável (χρηστῆς ἕλκος ὀδύνης). Como se nota, o poeta coloca o amor e o ódio em pé de igualdade. Já Alceu de Messene, no poema 10 do livro quinto da Antologia grega, afirma odiar Eros. O que diabos esse pirralho faz acertando a gente com suas malditas flechas quando ele poderia estar caçando feras selvagens mundo afora? Um último exemplo. No fragmento 130 Safo chama Eros de γλυκύπικρον: dociamargo. Sei que não temos subsídios para afirmar exatamente sobre o quê ela fala, e, se viermos a fazer algum tipo de presunção, é mais seguro pendermos para o lado da equação triangular a que Anne Carson se refere, mas ainda assim é pelo menos uma mescla de contraditórios dentro do que se entende por Eros.


TICO. Entendo. Prossiga.


TECO. Só que isso não basta. Quando falamos que um poema é bom, embora ele possa ter um valor relacional e posicional digno de nota, só esse valor, convenhamos, parece pouco para que venhamos a bater o martelo e elogiar o poema. No caso do poema 85, eu consigo pedir de imediato pra que se preste atenção logo na frase de abertura, concisa, lapidar: Odi et amo. É direto, sabe?, quase coloquial, quase como se ele não quisesse nos enrolar com historietas e causos. Mas veja você que odi em latim não quer dizer apenas ódio no sentido enfezado do termo. Pode ser mais brando, algo como um aborrecimento tal como aquele que Horácio diz sentir, na ode 38 do livro I, diante dos adornos da Pérsia: "Persicos odi, puer, aparatus". Mas podemos especular um pouco mais.


TICO. Como assim?


TECO. O autor mais recente que consultei a respeito da etimologia de odi foi Michiel de Vaan. Ele aponta o verbo grego ὀδύσ(σ)ασθαι, que significa estar nervoso, resmungar. No Lewis & Short, porém, aponta-se que o verbo teria vindo de ὠθέω, que significa ser atraído, podendo, caso aplicado em abstrato, significar força motriz. Ser afastado, como que por repulsa, surge assim que atracamos uma preposição no início: ἀπωθέω. Não quero, naturalmente, entrar na discussão, afinal de contas ela escapa inteiramente do que está a nosso alcance. Catulo estava ciente do real sentido etimológico da palavra? Com o mesmo rigor científico que encontramos nestes dicionaristas eu creio que não, muito embora me pareça provável ou no mínimo plausível que o poeta possuísse conhecimentos do grego a ponto de pelo menos permitir que o leitor estabeleça por conta própria algumas conexões vocabulares.


TICO. E que seria, no caso, relativa em especial a ὠθέω, afinal de contas se odi puder significar ou sugerir uma espécie de força de atração na frase de abertura, então temos uma maneira ainda mais engenhosa de explicar o porquê o poeta odeia e ama ao mesmo tempo: o ódio seria um tempero do amor.


TECO. Por aí. Mas, claro, entramos num reino de especulações nem um pouco recomendáveis. Se quiser pisar em solo mais firme, recorde que a relação entre amar e odiar aparece noutras partes da obra. No poema 72 Catulo usa uma paleta vocabular rica para colorir o amor e o ódio. Ali ele diz que sua relação com Lésbia foi não como a de um qualquer com suas paixonices (vulgus amicam) e sim a de um pai com seus filhos e familiares (pater ut gnatos ... et generos). Por isso a escolha do verbo neste início é fundamental: não amat, amar, e sim dilexit, estimar, ter como dileto. É só no final que, ao se perguntar como aquilo pôde se dar (qui potis est? inquis; note a segunda pessoa, análoga ao que ocorrerá no final do primeiro verso do 85), responde que males assim (iniuria talis) fazem com que os amantes amem mais e respeitem menos: cogit amare magis, sed bene velle minus. Porque agora sim, finalmente, o nosso conhecido amare dá as caras.


TICO. Interessante. Mas por hoje basta. Voltaremos a este tema.