μυθoπλοκος.
Máximo de Tiro em sua décima oitava dissertação (Διαλέξεις) menciona que enquanto Sófocles chama Eros de sofista, Safo o chama de μυθόπλοκος. Para ele, a arte do amor em Sócrates seria em essência como a de Safo: ambos procuram um tipo particular de afeição por quem fosse belo. Se é daí que retiramos o chamado fragmento 168 de Safo, consistente nessa única palavrinha, μυθόπλοκος, outros fragmentos igualmente minúsculos saem ou encontram apoio na dissertação, por exemplo o 47, de quando Máximo de Tiro compara o frenesi báquico (ἐκφρόνων βακχειῶν) causado por Fedro em Sócrates com quando Safo iguala a força arrebatadora e violenta do amor em sua mente à do vento desabando sobre o carvalho.
O fragmento 168 foi traduzido por Joaquim Brasil Fontes para "tecelão-de-mitos", título, aliás, de sua excelente tese de doutorado. Ali ele reúne num só este e outros fragmentos da autora também saídos da oitava dissertação de Máximo de Tiro, em específico o 172 e o 130, ἀλγεσίδωρος ("que atormenta") e γλυκύπικρον ("dociamargo"). Já Guilherme Gontijo Flores, em sua recente tradução para os fragmentos completos de Safo, opta por "roca-de-mitos". Curioso, não? Eu pelo menos acho. Por que... "roca"? É simples: quando sua incumbência é a de traduzir uma obra completa, além de todos os cuidados necessários para uma boa viagem você precisa afivelar o cinto da coerência, entendendo que o bater de asas aqui pode causar um turbilhão páginas depois naquele poema escrito no leito de morte.
No primeiro fragmento, por exemplo, tido por muitos como o único que nos chegou completo e batizado de Hino a Afrodite, encontramos, no segundo verso, o vocativo δολόπλοκε, traduzido pelo Guilherme como "roca-de-ardis". Parte dele, como o leitor observa, é idêntico a μυθόπλοκος, ou seja, um e outro guardam consigo -πλοκος, estrato de sentido coladinho na tecelagem. Usando "roca" o Guilherme, visando corresponder de forma engenhosa à tessitura sonora do original, quis recriar a força que o omicron possui em grego. Prova disso é sua opção por traduzir, versos depois no mesmo poema, ὀνίαισι δάμνα para "dor e dolo", pronunciando a segunda palavra com a vogal fechada. Sei que parece (e de fato é) um detalhe bobo, mas quem como eu já conviveu pouco que seja com juristas sabe que é com questiúnculas assim que gramáticos metidos a besta fazem a fama e bancas de concurso eliminam um comboio de candidatos.
Ainda no primeiro fragmento, cabe lembrar que a palavra de abertura é ποικιλόθρον’. As correntes majoritárias a interpretam como sendo ou trono (ποικίλος) multicolorido (θρóνος) ou manto bordado (θρóνα) de flores (ποικίλος). O Guilherme, embora guarde o trono e o manto no armário das notas-de-rodapé (se bem que, justiça seja feita, alguma coisa é recuperada momentos depois com a tal "roca-de-ardis"), consegue unir com felicidade a paleta de cores de uma e outra conotação ao traduzir para "Multifloreamente". O estrago, bem se vê, que um simples apóstrofo, desses que crescem feito mato em qualquer parágrafo em grego, causa no entendimento da palavra.
Para Anne Carson, que traduziu o fragmento 168 para mythweaver, Eros tece mitos, histórias, ficções (a palavra μυθός, em grego, não se restringe à mitologia) pois "o desejo atua nos amantes como isca para uma vida inteira da imaginação ― a qual nem o amor e nem a filosofia podem nutrir por muito tempo." Se em Sócrates, seguindo o argumento de Máximo de Tiro, Eros é essencialmente persuasivo, em Safo ele dá azo à imaginação e a histórias de amor ― e se em Sócrates a comparação visava mostrar o modo como o amor enreda e emaranha os sentimentos, isso com habilidade e malícia a ponto de incutir a suspeita de que seja fogo de palha, nós do novo milênio possuímos uma clara tendência em tomar o partido de Safo e sua delicadeza ao manipular o tecido amoroso, para nós sempre tão mágico, sincero, formoso e reconfortante. E realmente. Uma história a dois é muito provavelmente a mais bela história que alguém pode criar ou tecer para si. Neste sentido julgo que enxergar uma suavidade única em μυθόπλοκος não constitui nenhum absurdo, nem seria, até mesmo, absurdo que esticássemos o tecido até encobrir a vida humana, afinal de contas tecelagem e existência já se defrontavam no mito das Três Parcas.
Mas podemos ir um pouco mais a fundo. No Simpósio, Diotima, personagem do diálogo, menciona (em 203d) que Eros é talentosíssimo e cheio de artimanhas: γόης καὶ φαρμακεὺς καὶ σοφιστής, todas palavras que falam do amor como bruxo, feiticeiro, sofista. ἀεί τινας πλέκων μηχανάς é a passagem que nos interessa: Eros está sempre tramando, entrançando, urdindo algum engano, algum ardil. É verdade que logo depois Diotima dirá que ele também é φιλοσοφῶν, amante do saber, mas o fato de que o retrato pintado seja de algo travesso e perigoso, engenhoso e intrincado, mostra que pelo menos para Diotima, chamada por Sócrates instantes depois (208c) de τέλεοι σοφισταί, sofista perfeita, o amor é essa coisa doida e confusa e incerta que quando menos se vê prende a gente no centro de seus labirintos, bem como sugerido por Máximo de Tiro.
Só que essa não é a única conexão possível entre os adjetivos dado por Sócrates e Safo a Eros. Carson também lembra que noutras passagens Sócrates defenderá o amor como uma matéria de suma importância, por exemplo no Teages 128b, onde, depois de reprisar seu famoso bordão ("só sei que nada sei"), diz que pelo menos de uma única coisa ele sabia bem: as coisas relacionadas ao amor, τῶν ἐρωτικῶν.
É aqui que entra o μυθόπλοκος. Sucintamente, a tese de Carson diante da poesia de Safo é que Eros é uma ausência equacionada (não só por Safo mas também por outros poetas e filósofos gregos) de maneira triangular. Um dos pontos altos é quando ela analisa o fragmento 31 (φάινεταί μοι etc) e fala de como, nele, os componentes da relação amorosa entram numa espécie de curto-circuito: ou seja, um curto-circuito entre o que é presente/atual/conhecido e o que é ausente/possível/desconhecido. No início do capítulo dedicado ao fragmento 168, Carson cita Aristóteles (De anima, 433a-b), para quem a imaginação (φαντασία) é componente fundamental do desejo e o desejo é o que dá o pontapé pra que o ser humano se mova. Por isso, conclui Carson a partir de Aristóteles, se o ato de chegar até o objeto é um ato que se inicia com a imaginação, então "nenhum amante, poeta ou qualquer que seja pode manter seu desejo longe da empresa fictícia e triangular descrita por Safo no fragmento 31." Por isso também ela relembra que, segundo a sabedoria grega antiga citada por Platão no Simpósio (196e), qualquer um se torna poeta quando Eros toma conta dele.
Pois bem. Mas convenhamos. Parece exagerado dispender tanto tempo em torno de uma única palavra. Para quem de uns tempos pra cá tem andado desanimado com muita coisa, poesia inclusive, girar em torno de um verso de Virgílio ou de uma única palavra de Safo não parece tão ruim. É. Só que a pergunta continua: estamos diante de apenas uma palavra, especificamente, graças ao contexto da citação de Máximo de Tiro, de um adjetivo. A obra de Safo nos chegou aos frangalhos, e quem puder dar pelo menos uma folheada nela vai começar sentindo um incômodo e depois, a crer por algumas avaliações feitas, uma pesada sensação de que foi enganado comprando um livro quase todo em branco. Dá apreciar algo assim?
É possível que boa parte da resposta esteja num tipo de prazer arqueológico que só quem se mete a estudar alguma coisa de poesia antiga realmente sente. Falar, aliás, dos antigos parece muito divertido quando a imagem que se tem deles é a de um jardim suspenso ou, pior ainda, de um conjunto de pilastras imponentes e enfadonhas. Tanto uma postura quanto outra, bem se nota, facilmente propensas a adulterar a parcela de verdade que eventualmente trazem consigo numa maneira tosca de normativismo caduco que reduz a leitura dos antigos a uma espécie de peregrinação piegas, onde quem não é capaz de reverenciar a suposta genialidade de uma única palavra esparramada na página não é por tabela capaz de mais nada no reino das Artes.
Não quero exagerar demais, sabe? Longe de mim ficar desfiando qualquer tipo de rosário. Não sei que tipo de explicação eu poderia fornecer pra quem sabe te convencer, aí do outro lado, que sim, μυθόπλοκος é uma palavra sensacional. A delicadeza, talvez? A engenhosidade da metáfora? É possível. Safo possui outros fragmentos que provam de maneira convincente (a mim pelo menos, e posso dizer com segurança que para uns doidos de pedra por aí também) que o conjunto da obra é um negócio fora de sério. Na antiguidade nós sabemos que Safo era sinônimo de excelência, mas não acho que precisamos de toda essa coisa de máquina do tempo pra concluir pela qualidade da obra. Existe em Safo coisa muito fina, existe coisa muito bela, fina e bela sugerindo um vislumbre de redenção à raça humana (algo como: se alguém algum dia foi capaz de escrever isso, então nós talvez não ―); existe disso e muito mais nas páginas da sua edição. Mas e nessa, digo, e nesse fragmentozinho?
Coleridge, numa de suas Conversas à mesa (aquilo que os gregos chamavam de simpósio), definiu a poesia como as melhores palavras em sua melhor ordem. O trecho só fica mais curioso quando notamos que antes ele define a prosa como as palavras na sua melhor ordem. Ora: sabemos que a escolha de um único vocábulo, a força que ele é capaz de irradiar, muitas vezes se torna extrema a ponto de pernoitar por meses na cabeça dos leitores. Quem já se meteu a traduzir uma quadrinha que seja sabe bem disso. Tradutores de poesia só não pulam da ponte ao constatar que uma palavra ficou de fora da tradução porque, no fundo, o cliente só pagou a metade e ainda faltam oitenta versos. Vejamos o caso de um verso de Cabral:
Captar sua voz inenfática, impessoal
Eu poderia dizer que tudo aí é muito importante, insubstituível, mas claro que sempre é meio exagerado afirmar que toda palavra num poema é sagrada. É uma petição de princípio universalmente aceita nos clãs de leitores de poesia: tudo em poesia diz alguma coisa. Sim. É recomendável partir desse princípio. Só Deus sabe quantas leituras já surgiram dessa coisa de ficar espanando a mobília e de repente encontrar uma moeda de prata debaixo do sofá. É bem aquilo o que o Max Bense disse décadas atrás: a mensagem poética é a mais frágil das mensagens, haja vista que se você desloca uma vírgula você põe tudo a perder. E no verso cabralino. Não seria mais ou menos por aí?
O possessivo diz respeito à pedra, com a qual o eu lírico pretende aprender alguma coisa. E de fato: um dos procedimentos mais comuns e característicos da poesia cabralina é aquilo que o Secchin batizou de poesia do menos, ou seja, uma poesia que retira os excessos quase a ponto da obsessão. É o que acontece com a forte carga negativa adjetivando a voz: "inenfática, impessoal", destaque absoluto ao primeiro termo. Ou seja: Cabral nos aparece com um discreto neologismo que com toda facilidade do mundo poderia ser embrulhado de outros modos, por exemplo enlaçando um "não" logo ali no comecinho: "não enfática". Mas seria a mesma coisa? Negativo. Ele perderia a conexão íntima com o mesmo prefixo incrustado em "impessoal" e perderia a diversão que é ver o leitor pasmo diante de um termo a princípio inusitado marcando na carne do poema toda a forte secura que a voz da pedra representa.
μυθόπλοκος pode funcionar mais ou menos nesse sentido. Sendo epíteto, não é tão simples afirmar e depois ir dormir uma boa noite de sono que a palavra foi cunhada por Safo. Pelo jeito essa tal de Safo existiu mesmo, mas eu sei lá se quem escreveu o que hoje reunimos sob seu nome foi realmente essa mulher. Vai saber. Epítetos eram moeda de troca na poesia antiga. Do mesmo modo que nos desafios malcriados das emboladas nordestinas é comum que cantadores tomem emprestados xingamentos e estrofes quase inteiras uns dos outros, expressões usadas para caracterizar substantivos, em especial aqueles de maior destaque (seja Eros, a Aurora, Zeus ou Afrodite), eram recurso comum, uma espécie de baú aberto a qualquer um que empunhasse uma lira e cantarolasse.
Muito mais complicado, portanto, querer transformar o fragmento 168 naquilo que ele não é, injetando uma dose de genialidade que inevitavelmente traz consigo fluidos estranhos ao que corria pelas veias de qualquer aedo. O máximo que posso usar para convencer alguém do interesse que μυθόπλοκος gera é indicando o que a Carson escreveu (pois isso sim: Anne Carson é foda) ou o que eventualmente se possa extrair pondo, como eu pus pra vocês, a palavrinha ao lado de seus primos na filosofia, na poesia, na oratória etc.
"Inenfática" funciona no poema de Cabral pois, voilà, temos o poema todo e conseguimos mensurar a força viva e atuante que a palavra possui naquele contexto. Fora disso, isto é, lidando com um fragmento, não faz sentido que se imponha um dever civilizacional ou um fardo bibliográfico extenso demais sobre os dez caracteres de μυθόπλοκος. Dentro dos estudos clássicos a metáfora padrão pra convencer o aluno da beleza dos fragmentos da poesia grega arcaica é a metáfora das estátuas (Vênus de Milo em especial), que, incompletas como estão, ainda assim sugerem uma beleza misteriosa e encantadora a quem as contemple.
Deve ser por aí. O Guilherme a meu ver caminha bem ao argumentar que para nós, românticos, modernos, esses fragmentos não causam tanto incômodo. É até possível que você leia, como eu leio, e goste, como eu gosto. Fragmentos, aforismos, poemas curtos, curtíssimos (os haikais, os poemas-piada, alguns de Ungaretti) fazem parte, até certo ponto, de nossa rotina como leitores de poesia. É, eu também acho que é por aí e, até pra ser franco, penso que um cartão de dia dos namorados contendo só o μυθόπλοκος fagocitado por um coração rechonchudo já daria conta do recado. Se o leitor pensar que exagero e endoideço, tudo bem, só não comente com ninguém. E vida que segue.
O fragmento 168 foi traduzido por Joaquim Brasil Fontes para "tecelão-de-mitos", título, aliás, de sua excelente tese de doutorado. Ali ele reúne num só este e outros fragmentos da autora também saídos da oitava dissertação de Máximo de Tiro, em específico o 172 e o 130, ἀλγεσίδωρος ("que atormenta") e γλυκύπικρον ("dociamargo"). Já Guilherme Gontijo Flores, em sua recente tradução para os fragmentos completos de Safo, opta por "roca-de-mitos". Curioso, não? Eu pelo menos acho. Por que... "roca"? É simples: quando sua incumbência é a de traduzir uma obra completa, além de todos os cuidados necessários para uma boa viagem você precisa afivelar o cinto da coerência, entendendo que o bater de asas aqui pode causar um turbilhão páginas depois naquele poema escrito no leito de morte.
No primeiro fragmento, por exemplo, tido por muitos como o único que nos chegou completo e batizado de Hino a Afrodite, encontramos, no segundo verso, o vocativo δολόπλοκε, traduzido pelo Guilherme como "roca-de-ardis". Parte dele, como o leitor observa, é idêntico a μυθόπλοκος, ou seja, um e outro guardam consigo -πλοκος, estrato de sentido coladinho na tecelagem. Usando "roca" o Guilherme, visando corresponder de forma engenhosa à tessitura sonora do original, quis recriar a força que o omicron possui em grego. Prova disso é sua opção por traduzir, versos depois no mesmo poema, ὀνίαισι δάμνα para "dor e dolo", pronunciando a segunda palavra com a vogal fechada. Sei que parece (e de fato é) um detalhe bobo, mas quem como eu já conviveu pouco que seja com juristas sabe que é com questiúnculas assim que gramáticos metidos a besta fazem a fama e bancas de concurso eliminam um comboio de candidatos.
Ainda no primeiro fragmento, cabe lembrar que a palavra de abertura é ποικιλόθρον’. As correntes majoritárias a interpretam como sendo ou trono (ποικίλος) multicolorido (θρóνος) ou manto bordado (θρóνα) de flores (ποικίλος). O Guilherme, embora guarde o trono e o manto no armário das notas-de-rodapé (se bem que, justiça seja feita, alguma coisa é recuperada momentos depois com a tal "roca-de-ardis"), consegue unir com felicidade a paleta de cores de uma e outra conotação ao traduzir para "Multifloreamente". O estrago, bem se vê, que um simples apóstrofo, desses que crescem feito mato em qualquer parágrafo em grego, causa no entendimento da palavra.
Para Anne Carson, que traduziu o fragmento 168 para mythweaver, Eros tece mitos, histórias, ficções (a palavra μυθός, em grego, não se restringe à mitologia) pois "o desejo atua nos amantes como isca para uma vida inteira da imaginação ― a qual nem o amor e nem a filosofia podem nutrir por muito tempo." Se em Sócrates, seguindo o argumento de Máximo de Tiro, Eros é essencialmente persuasivo, em Safo ele dá azo à imaginação e a histórias de amor ― e se em Sócrates a comparação visava mostrar o modo como o amor enreda e emaranha os sentimentos, isso com habilidade e malícia a ponto de incutir a suspeita de que seja fogo de palha, nós do novo milênio possuímos uma clara tendência em tomar o partido de Safo e sua delicadeza ao manipular o tecido amoroso, para nós sempre tão mágico, sincero, formoso e reconfortante. E realmente. Uma história a dois é muito provavelmente a mais bela história que alguém pode criar ou tecer para si. Neste sentido julgo que enxergar uma suavidade única em μυθόπλοκος não constitui nenhum absurdo, nem seria, até mesmo, absurdo que esticássemos o tecido até encobrir a vida humana, afinal de contas tecelagem e existência já se defrontavam no mito das Três Parcas.
Mas podemos ir um pouco mais a fundo. No Simpósio, Diotima, personagem do diálogo, menciona (em 203d) que Eros é talentosíssimo e cheio de artimanhas: γόης καὶ φαρμακεὺς καὶ σοφιστής, todas palavras que falam do amor como bruxo, feiticeiro, sofista. ἀεί τινας πλέκων μηχανάς é a passagem que nos interessa: Eros está sempre tramando, entrançando, urdindo algum engano, algum ardil. É verdade que logo depois Diotima dirá que ele também é φιλοσοφῶν, amante do saber, mas o fato de que o retrato pintado seja de algo travesso e perigoso, engenhoso e intrincado, mostra que pelo menos para Diotima, chamada por Sócrates instantes depois (208c) de τέλεοι σοφισταί, sofista perfeita, o amor é essa coisa doida e confusa e incerta que quando menos se vê prende a gente no centro de seus labirintos, bem como sugerido por Máximo de Tiro.
Só que essa não é a única conexão possível entre os adjetivos dado por Sócrates e Safo a Eros. Carson também lembra que noutras passagens Sócrates defenderá o amor como uma matéria de suma importância, por exemplo no Teages 128b, onde, depois de reprisar seu famoso bordão ("só sei que nada sei"), diz que pelo menos de uma única coisa ele sabia bem: as coisas relacionadas ao amor, τῶν ἐρωτικῶν.
É aqui que entra o μυθόπλοκος. Sucintamente, a tese de Carson diante da poesia de Safo é que Eros é uma ausência equacionada (não só por Safo mas também por outros poetas e filósofos gregos) de maneira triangular. Um dos pontos altos é quando ela analisa o fragmento 31 (φάινεταί μοι etc) e fala de como, nele, os componentes da relação amorosa entram numa espécie de curto-circuito: ou seja, um curto-circuito entre o que é presente/atual/conhecido e o que é ausente/possível/desconhecido. No início do capítulo dedicado ao fragmento 168, Carson cita Aristóteles (De anima, 433a-b), para quem a imaginação (φαντασία) é componente fundamental do desejo e o desejo é o que dá o pontapé pra que o ser humano se mova. Por isso, conclui Carson a partir de Aristóteles, se o ato de chegar até o objeto é um ato que se inicia com a imaginação, então "nenhum amante, poeta ou qualquer que seja pode manter seu desejo longe da empresa fictícia e triangular descrita por Safo no fragmento 31." Por isso também ela relembra que, segundo a sabedoria grega antiga citada por Platão no Simpósio (196e), qualquer um se torna poeta quando Eros toma conta dele.
Pois bem. Mas convenhamos. Parece exagerado dispender tanto tempo em torno de uma única palavra. Para quem de uns tempos pra cá tem andado desanimado com muita coisa, poesia inclusive, girar em torno de um verso de Virgílio ou de uma única palavra de Safo não parece tão ruim. É. Só que a pergunta continua: estamos diante de apenas uma palavra, especificamente, graças ao contexto da citação de Máximo de Tiro, de um adjetivo. A obra de Safo nos chegou aos frangalhos, e quem puder dar pelo menos uma folheada nela vai começar sentindo um incômodo e depois, a crer por algumas avaliações feitas, uma pesada sensação de que foi enganado comprando um livro quase todo em branco. Dá apreciar algo assim?
É possível que boa parte da resposta esteja num tipo de prazer arqueológico que só quem se mete a estudar alguma coisa de poesia antiga realmente sente. Falar, aliás, dos antigos parece muito divertido quando a imagem que se tem deles é a de um jardim suspenso ou, pior ainda, de um conjunto de pilastras imponentes e enfadonhas. Tanto uma postura quanto outra, bem se nota, facilmente propensas a adulterar a parcela de verdade que eventualmente trazem consigo numa maneira tosca de normativismo caduco que reduz a leitura dos antigos a uma espécie de peregrinação piegas, onde quem não é capaz de reverenciar a suposta genialidade de uma única palavra esparramada na página não é por tabela capaz de mais nada no reino das Artes.
Não quero exagerar demais, sabe? Longe de mim ficar desfiando qualquer tipo de rosário. Não sei que tipo de explicação eu poderia fornecer pra quem sabe te convencer, aí do outro lado, que sim, μυθόπλοκος é uma palavra sensacional. A delicadeza, talvez? A engenhosidade da metáfora? É possível. Safo possui outros fragmentos que provam de maneira convincente (a mim pelo menos, e posso dizer com segurança que para uns doidos de pedra por aí também) que o conjunto da obra é um negócio fora de sério. Na antiguidade nós sabemos que Safo era sinônimo de excelência, mas não acho que precisamos de toda essa coisa de máquina do tempo pra concluir pela qualidade da obra. Existe em Safo coisa muito fina, existe coisa muito bela, fina e bela sugerindo um vislumbre de redenção à raça humana (algo como: se alguém algum dia foi capaz de escrever isso, então nós talvez não ―); existe disso e muito mais nas páginas da sua edição. Mas e nessa, digo, e nesse fragmentozinho?
Coleridge, numa de suas Conversas à mesa (aquilo que os gregos chamavam de simpósio), definiu a poesia como as melhores palavras em sua melhor ordem. O trecho só fica mais curioso quando notamos que antes ele define a prosa como as palavras na sua melhor ordem. Ora: sabemos que a escolha de um único vocábulo, a força que ele é capaz de irradiar, muitas vezes se torna extrema a ponto de pernoitar por meses na cabeça dos leitores. Quem já se meteu a traduzir uma quadrinha que seja sabe bem disso. Tradutores de poesia só não pulam da ponte ao constatar que uma palavra ficou de fora da tradução porque, no fundo, o cliente só pagou a metade e ainda faltam oitenta versos. Vejamos o caso de um verso de Cabral:
Captar sua voz inenfática, impessoal
Eu poderia dizer que tudo aí é muito importante, insubstituível, mas claro que sempre é meio exagerado afirmar que toda palavra num poema é sagrada. É uma petição de princípio universalmente aceita nos clãs de leitores de poesia: tudo em poesia diz alguma coisa. Sim. É recomendável partir desse princípio. Só Deus sabe quantas leituras já surgiram dessa coisa de ficar espanando a mobília e de repente encontrar uma moeda de prata debaixo do sofá. É bem aquilo o que o Max Bense disse décadas atrás: a mensagem poética é a mais frágil das mensagens, haja vista que se você desloca uma vírgula você põe tudo a perder. E no verso cabralino. Não seria mais ou menos por aí?
O possessivo diz respeito à pedra, com a qual o eu lírico pretende aprender alguma coisa. E de fato: um dos procedimentos mais comuns e característicos da poesia cabralina é aquilo que o Secchin batizou de poesia do menos, ou seja, uma poesia que retira os excessos quase a ponto da obsessão. É o que acontece com a forte carga negativa adjetivando a voz: "inenfática, impessoal", destaque absoluto ao primeiro termo. Ou seja: Cabral nos aparece com um discreto neologismo que com toda facilidade do mundo poderia ser embrulhado de outros modos, por exemplo enlaçando um "não" logo ali no comecinho: "não enfática". Mas seria a mesma coisa? Negativo. Ele perderia a conexão íntima com o mesmo prefixo incrustado em "impessoal" e perderia a diversão que é ver o leitor pasmo diante de um termo a princípio inusitado marcando na carne do poema toda a forte secura que a voz da pedra representa.
μυθόπλοκος pode funcionar mais ou menos nesse sentido. Sendo epíteto, não é tão simples afirmar e depois ir dormir uma boa noite de sono que a palavra foi cunhada por Safo. Pelo jeito essa tal de Safo existiu mesmo, mas eu sei lá se quem escreveu o que hoje reunimos sob seu nome foi realmente essa mulher. Vai saber. Epítetos eram moeda de troca na poesia antiga. Do mesmo modo que nos desafios malcriados das emboladas nordestinas é comum que cantadores tomem emprestados xingamentos e estrofes quase inteiras uns dos outros, expressões usadas para caracterizar substantivos, em especial aqueles de maior destaque (seja Eros, a Aurora, Zeus ou Afrodite), eram recurso comum, uma espécie de baú aberto a qualquer um que empunhasse uma lira e cantarolasse.
Muito mais complicado, portanto, querer transformar o fragmento 168 naquilo que ele não é, injetando uma dose de genialidade que inevitavelmente traz consigo fluidos estranhos ao que corria pelas veias de qualquer aedo. O máximo que posso usar para convencer alguém do interesse que μυθόπλοκος gera é indicando o que a Carson escreveu (pois isso sim: Anne Carson é foda) ou o que eventualmente se possa extrair pondo, como eu pus pra vocês, a palavrinha ao lado de seus primos na filosofia, na poesia, na oratória etc.
"Inenfática" funciona no poema de Cabral pois, voilà, temos o poema todo e conseguimos mensurar a força viva e atuante que a palavra possui naquele contexto. Fora disso, isto é, lidando com um fragmento, não faz sentido que se imponha um dever civilizacional ou um fardo bibliográfico extenso demais sobre os dez caracteres de μυθόπλοκος. Dentro dos estudos clássicos a metáfora padrão pra convencer o aluno da beleza dos fragmentos da poesia grega arcaica é a metáfora das estátuas (Vênus de Milo em especial), que, incompletas como estão, ainda assim sugerem uma beleza misteriosa e encantadora a quem as contemple.
Deve ser por aí. O Guilherme a meu ver caminha bem ao argumentar que para nós, românticos, modernos, esses fragmentos não causam tanto incômodo. É até possível que você leia, como eu leio, e goste, como eu gosto. Fragmentos, aforismos, poemas curtos, curtíssimos (os haikais, os poemas-piada, alguns de Ungaretti) fazem parte, até certo ponto, de nossa rotina como leitores de poesia. É, eu também acho que é por aí e, até pra ser franco, penso que um cartão de dia dos namorados contendo só o μυθόπλοκος fagocitado por um coração rechonchudo já daria conta do recado. Se o leitor pensar que exagero e endoideço, tudo bem, só não comente com ninguém. E vida que segue.
§
frag. 168
μυθόπλοκος
*
trad. eu