Separar artista e obra.
Não tem muito pra onde correr. Falou arte, falou separar artista e obra. Quem não entende isso dificilmente conseguirá entender muita coisa. Quando Fernando Pessoa escreve seu celebérrimo Autopsicografia, embora ele esteja a rigor repristinando a fides da literatura antiga (vide o poema 16 de Catulo, que a certa altura estampa: "Nam castum esse decet pium poetam / ipsum, uersiculos nihil necessest") ou o conceito de poesia para o Marquês de Santillana, "un fingimiento de cosas útiles, cubiertas o veladas con muy hermosa cobertura"; Pessoa só faltou desenhar pra gente.
Com "fingidor" ele não está dizendo mentiroso. O leitor persistente que se dá ao trabalho de ler as outras duas estrofes e de virar algumas páginas descobrirá por exemplo o Isto: "Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não. / Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração." Fingidor: criador de fingimentos, pessoa, indivíduo ou entidade superior que finge a dor, mesmo a que deveras sente. Ou seja: fingidor é todo aquele que nos entrega um constructo verbal capaz de emocionar. E convenhamos: como, meus caros, como é capaz. Ora: ainda que o poeta realmente sinta a dor retratada nos versos, a dor é sempre outra, é dor trabalhada, é dor artificial cujo destino é o artifício literário que mexerá com nosso coração a ponto de tratá-lo feito brinquedo infantil ("comboio de corda").
Pra ser um pouco mais exato, ele que defende o casório entre artista e obra, a união indissolúvel até que a hermenêutica os separe; ele que o defende sabe ou pelo menos intui que um cuidado mínimo deve ser tomado pra que, mesmo com a melhor das intenções, não se jogue a água do banho com o bebê junto. Creio que o espécime mais marcante e exótico desse tipo de biografismo contundente foi o do crítico francês do século XIX Sainte-Beuve. Embora desse continuidade a uma abordagem que já era moeda gasta na antiguidade e que décadas antes havia encontrado um predecessor do porte de Samuel Johnson, Sainte-Beuve acabou pego pra santo. No início de um ensaio sobre Chateaubriand ele diz: « La littérature, la production littéraire, n'est point pour moi distincte ou du moins séparable du reste de l'homme et de l'organisation ; je puis gôuter du reste de une oeuvre, mais il m'est difficile de la juger indépendamment de la connaissance de l'hômme même ; et je dirais volontiers : tel arbre, tel fruit. »
A ideia foi rechaçada por Proust nos ensaios reunidos em Contre Sainte-Beuve, onde bate de frente com o método sainte-beuviano ou, mais amplamente, método naturalista, batizado jocosamente por Proust de "botânica literária". Para o romancista, o que de mais profundo existe num homem não aparece quando ele está em público e sim quando ele toma a pena e escreve suas obras. Numa passagem célebre do primeiro volume de sua saga, o narrador, Marcel, dirá que nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Ora: julgarmos que a biografia explica o artista é um ponto de partida falho, afinal de contas não existe uma linha reta que ligue artista e obra ou, se quisermos estender o argumento proustiano, que ligue por exemplo artista e sociedade, artista e contexto. Quando os parnasianos levantaram suas baionetas do l'art pour l'Art (maiúscula aplicada por conta da casa), eles se insurgiam grosso modo com um panorama assim, onde se tentava diluir a realização artística num caldeirão condimentado a pata de camundongo, asa de morcego, data de nascimento, primeira comunhão e estatísticas sociais.
Com o surgimento da teoria literária novos passos foram dados, principalmente rumo à questão espinhosa do como interpretar uma obra literária. A famosa pergunta: ao ler um poema, devo buscar a intenção do autor ou ela é, quando muito, uma leitura dentre outras? Foram várias as respostas, indo da dupla dinâmica Wimsatt e Beardsley na primeira metade do século às respostas pós-estruturalistas (Barthes, Foucault) e às respostas às respostas pós-estruturalistas (Umberto Eco). De um modo geral todas concordavam que a intenção do autor é uma leitura dentre as outras e que no fundo o que realmente importa para a crítica não é chegar a um sentido último do texto e sim, como dito por Barthes de forma memorável, a tarefa da crítica é construir validades, construir interpretações que se sustentem pela obra e não pela vida conturbada do lunático ali por trás. Mas é preciso ficar atento pra um detalhe de extrema importância: se formos ver direitinho, até as recentes contrarrespostas ao triunfo não-intencionalista (E. D. Hirsch, Kendall Walton, Noel Carroll) não chegam ― passam longe de descartar obras de arte só porque revelações bombásticas, incômodas ou delituosas foram feitas a respeito do artista.
Primeiro pois discutir as intenções do artista não é o mesmo que discutir o apreço que devemos manter diante dos filmes de um cineasta qualquer mesmo sabendo que ele molestava, sei lá, a sua filha. Quando se fala em buscar as intenções do artista, estamos falando de uma atividade muito mais desconfortável, difícil e em certo sentido limitada do que se pode pensar. Supondo que um poema empregue um dialeto nazista neolítico, a intenção do artista ao escrevê-lo pode não ter sido a de realmente ofender o próximo e sim, numa espécie de circunlóquio ridículo e inútil, mas que deve ser considerado caso queiramos levar a intencionalidade a sério, um louvor à raça ariana ou ao progresso da humanidade ou qualquer tipo de tese que estampe em letras garrafais o capítulo de algum teórico neonazista da vez. Por isso desconfortável e difícil: entrar na cabeça nem sempre muito instigante ou mesmo inteligente do poeta que, se chegou a um bom resultado, era muito mais porque possuía técnica do que, sei lá, formação mínima a respeito de falácias lógicas. Por isso também limitada: nada nos leva a descartar a obra, afinal de contas o trabalho de interpretação mal e mal começou.
Mesmo porque cabe lembrar que o fato de que um artista tenha sido machista, racista, abusador ou estuprador não nos leva a concluir que sua obra irá obrigatoriamente refletir tais características. Leituras marcadas, leituras que usam mais um ferrete do que ferramentas de análise textual, leituras assim não afundam só quando lemos um pacato escritor que nos seja particularmente simpático. A coisa começa a ficar complicada é quando você precisa tomar todos os cuidados de uma leitura honesta mesmo diante de um pulha. Aí sim você vê que a tese do fruto da árvore, podre que seja, ignora que qualquer um pode, coisa se querem saber um tanto comum, criar arte a partir de assuntos desconexos e excêntricos, muito à moda de um Olegário Mariano compondo sonetos a respeito de cigarras. Ou seja: o racismo ou o machismo do artista só se tornam elementos relevantes para a interpretação do texto se se entranham de forma relevante na obra.
Segundo pois, como mencionado, as maneiras de se retirar do limbo a intenção do autor não nos levam a desmerecer a obra, mas, pelo contrário, poder lê-la com mais embasamento. O ponto defendido pelos intencionalistas é simples e pertinente: para que eu possa julgar alguma coisa, eu preciso entender o que o artista quis fazer, caso contrário caio no ridículo de atribuir uma intenção a algo que jamais pretendeu fazê-lo. É só depois que, detectadas as respectivas "características genéticas" da obra (a expressão é de Walton), eu a filio a um gênero e finalmente chancelo meu juízo ou leitura de maneira minuciosa.
Mas claro. Claro que a separação entre obra e artista precisa ser feita de maneira séria. E a tal ponto que não estou nem um pouco convicto de que mesmo quem defenda a separação realmente entenda a necessidade que ela representa. Afinal de contas a tal da separação é muito mais inócua do que se pensa. Ela não isenta ninguém. Até onde eu saiba (e eu já li algumas vezes pra confirmar), não há nenhuma excludente de ilicitude no Código Penal que dê salvo-conduto a artistas ou que os isentem de pena. E podem ter certeza que a separação entre artista e obra não contribui para esse quadro. Se parece existir uma espécie de falcatrua por trás do gesto, é somente porque existem aqueles que na verdade não separam, ou seja, que por mais que alardeiem a necessidade de lermos a obra e só a obra, às expensas louvam de maneira escusa o artista e besuntam de eufemismo todo e qualquer discurso que deveria escancarar e no mínimo colocar da maneira mais clara possível o crime que o artista cometeu. É isso. Cometeu crime mas andou compondo romances? Que coisa. Mas fica tranquilo. Seus romances já não são mais seus mesmo. Contigo ― contigo temos uns livrinhos muito mais interessantes, desses que você vai querer se inteirar.
Justificativas que apelam para o argumento contextual, santo padroeiro das relativizações, ou que desviam de foco e redundam em velado menosprezo; justificativas, tão múltiplas quão múltiplo é o engenho humano (the paragon of animals), justificativas pelo jeito também não fazem o dever de casa e não separam artista e obra coisíssima nenhuma. Se a separação realmente tivesse sido feita, então o nosso amigo artista deveria ser submetido aos rigores da lei, os tais rigores significando não que vai se prostrar de joelhos sob a brasa crepitante de juízes draconianos mas sim que a letra da Constituição vai ser respeitada (a partir desse ponto recomendo que o leitor se exalte) e o réu vai gozar de um devido processo legal, de uma ampla defesa, será resguardado de penalizações secundárias e terá, até que a batida de um martelo prove o contrário, o benefício da dúvida e da inocência.
Que bicho de sete cabeças pode existir aí? Entendam: se não fizermos esse mínimo do mínimo ao ler uma obra, daremos a oportunidade, assim de bandeja, para que uma próxima (e cada vez mais próxima) manada de cordeirinhos desordeiros resolva aportar na performance da vez e desmerecer o produto somente porque o artista fez isso ou aquilo ― a exemplo (hipotético, claro, hipotético sempre) de manter relações sexuais com uma menor impúbere ―; daremos a oportunidade, exato, mas daremos oportunidade também para que o próprio circuito de apreciação crítica seja sabotado uma vez que, como não lemos mais a obra e sim o artista, então basta que se eleja um fenótipo, um perfil ou um cabide ideológico pertinente o bastante para que o camarada seja automaticamente canonizado. Não precisamos mais daquilo de que arte ― técnica ― τέχνη. Basta massagear os referenciais teóricos certos que sim, oh sim.
A separação não seria vista com maus olhos se fosse realmente levada a cabo. O problema é que num deslumbre cúmplice e ingênuo terminamos por ignorar que a arte também representa uma relação de poder que pode (ô se pode!) blindar alguns isentando-os, seja o caso, da aplicação da lei. É positivo que comecemos a escancarar essas relações de poder, desde que com isto respeitemos aquela ladainha toda de os rigores da lei. Se volto pra casa e dou pela ausência de alguns eletrodomésticos, a informação de que um tipo mal-encarado rondava minha casa não é o suficiente pra que se prolate uma sentença e se arquive o caso, nem, muito menos, me dá carta branca pra que promova uma caça às bruxas. Não é preciso chegar a ponto de redigir e assinar uma carta sem eira nem beira que termina por relativizar o abuso sexual (ignorando que é justamente a partir de conceitos hipocritamente amplos de galanteio que os abusos fazem a festa) pra que se perceba que qualquer maneira de penalização secundária pode chegar a proporções que fogem do controle.
Cada um no seu quadrado. Separar artista e obra não é um modo escuso de apadrinhar, perdoar ou mesmo incentivar a prática criminosa de artistas. Como sugeri anteriormente, penso o exato oposto: não separar é que pode nos levar a situações de ampla condescendência apalermante, afinal de contas terminaria por depender de que grupo estipula o eticamente aceitável para a excelência artística. Agindo assim, substituímos o debate crítico, onde se examina textos que para todos os efeitos foram escritos, estão lá, reduzidos a termo, quando muito amedrontados pelas traças, e emanam sua força muitas vezes à revelia de quem os tenha escrito; nós o substituímos, bem se entenda, e colocamos em seu lugar um simulacro artístico que com toda facilidade do mundo descamba pra fofoca ou dá munição pra que o outro lado se refestele de maneira tão tola quanto. Se com a separação entre artista e obra nós continuamos a apreciar e debater a excelência artística, deixando que o tal do artista pague pelos seus atos do jeito que a lei mandar, com a confusão entre ambos nós... Olha, nós deixamos tudo ao Deus-dará.
Com "fingidor" ele não está dizendo mentiroso. O leitor persistente que se dá ao trabalho de ler as outras duas estrofes e de virar algumas páginas descobrirá por exemplo o Isto: "Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não. / Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração." Fingidor: criador de fingimentos, pessoa, indivíduo ou entidade superior que finge a dor, mesmo a que deveras sente. Ou seja: fingidor é todo aquele que nos entrega um constructo verbal capaz de emocionar. E convenhamos: como, meus caros, como é capaz. Ora: ainda que o poeta realmente sinta a dor retratada nos versos, a dor é sempre outra, é dor trabalhada, é dor artificial cujo destino é o artifício literário que mexerá com nosso coração a ponto de tratá-lo feito brinquedo infantil ("comboio de corda").
Pra ser um pouco mais exato, ele que defende o casório entre artista e obra, a união indissolúvel até que a hermenêutica os separe; ele que o defende sabe ou pelo menos intui que um cuidado mínimo deve ser tomado pra que, mesmo com a melhor das intenções, não se jogue a água do banho com o bebê junto. Creio que o espécime mais marcante e exótico desse tipo de biografismo contundente foi o do crítico francês do século XIX Sainte-Beuve. Embora desse continuidade a uma abordagem que já era moeda gasta na antiguidade e que décadas antes havia encontrado um predecessor do porte de Samuel Johnson, Sainte-Beuve acabou pego pra santo. No início de um ensaio sobre Chateaubriand ele diz: « La littérature, la production littéraire, n'est point pour moi distincte ou du moins séparable du reste de l'homme et de l'organisation ; je puis gôuter du reste de une oeuvre, mais il m'est difficile de la juger indépendamment de la connaissance de l'hômme même ; et je dirais volontiers : tel arbre, tel fruit. »
A ideia foi rechaçada por Proust nos ensaios reunidos em Contre Sainte-Beuve, onde bate de frente com o método sainte-beuviano ou, mais amplamente, método naturalista, batizado jocosamente por Proust de "botânica literária". Para o romancista, o que de mais profundo existe num homem não aparece quando ele está em público e sim quando ele toma a pena e escreve suas obras. Numa passagem célebre do primeiro volume de sua saga, o narrador, Marcel, dirá que nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Ora: julgarmos que a biografia explica o artista é um ponto de partida falho, afinal de contas não existe uma linha reta que ligue artista e obra ou, se quisermos estender o argumento proustiano, que ligue por exemplo artista e sociedade, artista e contexto. Quando os parnasianos levantaram suas baionetas do l'art pour l'Art (maiúscula aplicada por conta da casa), eles se insurgiam grosso modo com um panorama assim, onde se tentava diluir a realização artística num caldeirão condimentado a pata de camundongo, asa de morcego, data de nascimento, primeira comunhão e estatísticas sociais.
Com o surgimento da teoria literária novos passos foram dados, principalmente rumo à questão espinhosa do como interpretar uma obra literária. A famosa pergunta: ao ler um poema, devo buscar a intenção do autor ou ela é, quando muito, uma leitura dentre outras? Foram várias as respostas, indo da dupla dinâmica Wimsatt e Beardsley na primeira metade do século às respostas pós-estruturalistas (Barthes, Foucault) e às respostas às respostas pós-estruturalistas (Umberto Eco). De um modo geral todas concordavam que a intenção do autor é uma leitura dentre as outras e que no fundo o que realmente importa para a crítica não é chegar a um sentido último do texto e sim, como dito por Barthes de forma memorável, a tarefa da crítica é construir validades, construir interpretações que se sustentem pela obra e não pela vida conturbada do lunático ali por trás. Mas é preciso ficar atento pra um detalhe de extrema importância: se formos ver direitinho, até as recentes contrarrespostas ao triunfo não-intencionalista (E. D. Hirsch, Kendall Walton, Noel Carroll) não chegam ― passam longe de descartar obras de arte só porque revelações bombásticas, incômodas ou delituosas foram feitas a respeito do artista.
Primeiro pois discutir as intenções do artista não é o mesmo que discutir o apreço que devemos manter diante dos filmes de um cineasta qualquer mesmo sabendo que ele molestava, sei lá, a sua filha. Quando se fala em buscar as intenções do artista, estamos falando de uma atividade muito mais desconfortável, difícil e em certo sentido limitada do que se pode pensar. Supondo que um poema empregue um dialeto nazista neolítico, a intenção do artista ao escrevê-lo pode não ter sido a de realmente ofender o próximo e sim, numa espécie de circunlóquio ridículo e inútil, mas que deve ser considerado caso queiramos levar a intencionalidade a sério, um louvor à raça ariana ou ao progresso da humanidade ou qualquer tipo de tese que estampe em letras garrafais o capítulo de algum teórico neonazista da vez. Por isso desconfortável e difícil: entrar na cabeça nem sempre muito instigante ou mesmo inteligente do poeta que, se chegou a um bom resultado, era muito mais porque possuía técnica do que, sei lá, formação mínima a respeito de falácias lógicas. Por isso também limitada: nada nos leva a descartar a obra, afinal de contas o trabalho de interpretação mal e mal começou.
Mesmo porque cabe lembrar que o fato de que um artista tenha sido machista, racista, abusador ou estuprador não nos leva a concluir que sua obra irá obrigatoriamente refletir tais características. Leituras marcadas, leituras que usam mais um ferrete do que ferramentas de análise textual, leituras assim não afundam só quando lemos um pacato escritor que nos seja particularmente simpático. A coisa começa a ficar complicada é quando você precisa tomar todos os cuidados de uma leitura honesta mesmo diante de um pulha. Aí sim você vê que a tese do fruto da árvore, podre que seja, ignora que qualquer um pode, coisa se querem saber um tanto comum, criar arte a partir de assuntos desconexos e excêntricos, muito à moda de um Olegário Mariano compondo sonetos a respeito de cigarras. Ou seja: o racismo ou o machismo do artista só se tornam elementos relevantes para a interpretação do texto se se entranham de forma relevante na obra.
Segundo pois, como mencionado, as maneiras de se retirar do limbo a intenção do autor não nos levam a desmerecer a obra, mas, pelo contrário, poder lê-la com mais embasamento. O ponto defendido pelos intencionalistas é simples e pertinente: para que eu possa julgar alguma coisa, eu preciso entender o que o artista quis fazer, caso contrário caio no ridículo de atribuir uma intenção a algo que jamais pretendeu fazê-lo. É só depois que, detectadas as respectivas "características genéticas" da obra (a expressão é de Walton), eu a filio a um gênero e finalmente chancelo meu juízo ou leitura de maneira minuciosa.
Mas claro. Claro que a separação entre obra e artista precisa ser feita de maneira séria. E a tal ponto que não estou nem um pouco convicto de que mesmo quem defenda a separação realmente entenda a necessidade que ela representa. Afinal de contas a tal da separação é muito mais inócua do que se pensa. Ela não isenta ninguém. Até onde eu saiba (e eu já li algumas vezes pra confirmar), não há nenhuma excludente de ilicitude no Código Penal que dê salvo-conduto a artistas ou que os isentem de pena. E podem ter certeza que a separação entre artista e obra não contribui para esse quadro. Se parece existir uma espécie de falcatrua por trás do gesto, é somente porque existem aqueles que na verdade não separam, ou seja, que por mais que alardeiem a necessidade de lermos a obra e só a obra, às expensas louvam de maneira escusa o artista e besuntam de eufemismo todo e qualquer discurso que deveria escancarar e no mínimo colocar da maneira mais clara possível o crime que o artista cometeu. É isso. Cometeu crime mas andou compondo romances? Que coisa. Mas fica tranquilo. Seus romances já não são mais seus mesmo. Contigo ― contigo temos uns livrinhos muito mais interessantes, desses que você vai querer se inteirar.
Justificativas que apelam para o argumento contextual, santo padroeiro das relativizações, ou que desviam de foco e redundam em velado menosprezo; justificativas, tão múltiplas quão múltiplo é o engenho humano (the paragon of animals), justificativas pelo jeito também não fazem o dever de casa e não separam artista e obra coisíssima nenhuma. Se a separação realmente tivesse sido feita, então o nosso amigo artista deveria ser submetido aos rigores da lei, os tais rigores significando não que vai se prostrar de joelhos sob a brasa crepitante de juízes draconianos mas sim que a letra da Constituição vai ser respeitada (a partir desse ponto recomendo que o leitor se exalte) e o réu vai gozar de um devido processo legal, de uma ampla defesa, será resguardado de penalizações secundárias e terá, até que a batida de um martelo prove o contrário, o benefício da dúvida e da inocência.
Que bicho de sete cabeças pode existir aí? Entendam: se não fizermos esse mínimo do mínimo ao ler uma obra, daremos a oportunidade, assim de bandeja, para que uma próxima (e cada vez mais próxima) manada de cordeirinhos desordeiros resolva aportar na performance da vez e desmerecer o produto somente porque o artista fez isso ou aquilo ― a exemplo (hipotético, claro, hipotético sempre) de manter relações sexuais com uma menor impúbere ―; daremos a oportunidade, exato, mas daremos oportunidade também para que o próprio circuito de apreciação crítica seja sabotado uma vez que, como não lemos mais a obra e sim o artista, então basta que se eleja um fenótipo, um perfil ou um cabide ideológico pertinente o bastante para que o camarada seja automaticamente canonizado. Não precisamos mais daquilo de que arte ― técnica ― τέχνη. Basta massagear os referenciais teóricos certos que sim, oh sim.
A separação não seria vista com maus olhos se fosse realmente levada a cabo. O problema é que num deslumbre cúmplice e ingênuo terminamos por ignorar que a arte também representa uma relação de poder que pode (ô se pode!) blindar alguns isentando-os, seja o caso, da aplicação da lei. É positivo que comecemos a escancarar essas relações de poder, desde que com isto respeitemos aquela ladainha toda de os rigores da lei. Se volto pra casa e dou pela ausência de alguns eletrodomésticos, a informação de que um tipo mal-encarado rondava minha casa não é o suficiente pra que se prolate uma sentença e se arquive o caso, nem, muito menos, me dá carta branca pra que promova uma caça às bruxas. Não é preciso chegar a ponto de redigir e assinar uma carta sem eira nem beira que termina por relativizar o abuso sexual (ignorando que é justamente a partir de conceitos hipocritamente amplos de galanteio que os abusos fazem a festa) pra que se perceba que qualquer maneira de penalização secundária pode chegar a proporções que fogem do controle.
Cada um no seu quadrado. Separar artista e obra não é um modo escuso de apadrinhar, perdoar ou mesmo incentivar a prática criminosa de artistas. Como sugeri anteriormente, penso o exato oposto: não separar é que pode nos levar a situações de ampla condescendência apalermante, afinal de contas terminaria por depender de que grupo estipula o eticamente aceitável para a excelência artística. Agindo assim, substituímos o debate crítico, onde se examina textos que para todos os efeitos foram escritos, estão lá, reduzidos a termo, quando muito amedrontados pelas traças, e emanam sua força muitas vezes à revelia de quem os tenha escrito; nós o substituímos, bem se entenda, e colocamos em seu lugar um simulacro artístico que com toda facilidade do mundo descamba pra fofoca ou dá munição pra que o outro lado se refestele de maneira tão tola quanto. Se com a separação entre artista e obra nós continuamos a apreciar e debater a excelência artística, deixando que o tal do artista pague pelos seus atos do jeito que a lei mandar, com a confusão entre ambos nós... Olha, nós deixamos tudo ao Deus-dará.