A tesoura de Emmanuel Santiago.

Falo de uma tesoura querendo dizer do modo como o poeta trabalha a quebra do verso pelo menos neste poema em específico. No entanto, acabo por falar também da tesoura do poeta quando elimina trechos da versão primitiva do texto, tentando entender que tipo de ganho vem daí. Sei que é um tanto invasivo da minha parte estampar, sem qualquer anuência do poeta, não apenas um poema até então inédito como, ainda por cima, a primeira versão, mas quero crer que a atitude será bem vista por quem eventualmente queira estudar a poesia do autor.

Leiamos o poema:

           As ruas do Centro
           alucinam: a neblina
           tem sabor cáustico
           de gasolina; tropeço
           no mendigo dormindo
           no meio-fio qual anjo
           caído; os postes elétricos
           fustigam com sua luz
           sulfúrica; as ruas do Centro
           se propagam dentro da
           vertigem; a virgem
           pare uma criança deformada
           debaixo do viaduto; ato
           contínuo, continuo, os olhos
           nus, armados de punhais.

É relativamente simples de entender. Visa traduzir a experiência de caminhar pelas ruas. De uns tempos pra cá vejo o Emmanuel se empenhando muito em poemas assim. O que o leitor deve notar é que as alucinações causadas no poema não tiram o pé do chão, preferindo como que girar ao redor de objetos essencialmente urbanos. Uma técnica de construção que nos remete de imediato à flanêrie dos grandes nomes do simbolismo francês, golpeados pela selva de pedra das metrópoles europeias. "palais neufs, échafaudages, blocs, / Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie", diz Baudelaire, sugerindo também que a sensibilidade moderna estava aos frangalhos.

Observe o papel desempenhado por termos como "As ruas do Centro", "a neblina", "mendigo dormindo no meio-fio", "os postes elétricos", "virgem", "viaduto". Me parece perfeitamente possível enxugar o poema de Emmanuel até o ponto em que exibisse apenas estes termos desprovidos de qualquer efeito alucinógeno. E no entanto, o efeito aqui é precisamente o de mostrar como a vertigem de uma cidade transfigura seus objetos, de se notar, porém, que o sentido do poema apresenta uma sutileza digna de nota: qual seja, a de que a alucinação não os dissolve por completo e nem os transfigura apagando sua natureza original.

Um modo de prová-lo é se observarmos que o poema se compõe de períodos pontuados de maneira enfática, especificamente com um ponto e vírgula. Isso deixa claro para o leitor quando um objeto está sob enfoque e quando outro está. Todos estão dentro do conjunto maior das ruas do Centro, mas, tão logo partimos para o primeiro deles, ou seja, a neblina, somos informados do sabor que essa neblina possui, ao que, logo após o ponto e vírgula, passamos para outro: o mendigo dormindo. Compreende? Cada objeto encabeça seu próprio período, sua imagem, sua alucinação. Isso faz com que a sintaxe do poema privilegie os focos alucinógenos causados por cada um dos objetos, terminando com um conjunto vertiginoso que não se dissolve numa única sensação mas que, ao contrário, especifica o que cada objeto ou foco de vertigem é capaz de causar.

É habilidoso. Não me parece correto dizermos que o eu lírico esteja alucinado, afinal de contas o que alucina no poema são as ruas do Centro. Além disso, o eu lírico fecha dizendo que seus olhos estão nus. Se estão nus, é como se ele enxergasse de maneira crua e direta o que está à sua frente, mas, como a experiência urbana é uma experiência visceral, uma experiência que se entranha no sujeito e o impede de querer contemplar o concreto puro e simples da cidade fora das vertigens que inevitavelmente ela causa; como é assim, então mesmo que ele diga enxergar com olhos nus a situação, ainda assim o que ele enxerga é precisamente o que se experimenta ao perambular à noite pelas ruas de qualquer metrópole. Ou por acaso eu posso caminhar à noite numa rua qualquer e achar que a experiência se resume à sarjeta, ao asfalto, a latas de lixo abarrotadas, a um gato que mia? Existe muito mais. O fedor, por exemplo, o ruído distante de uma TV ligada, o nojo, o medo, o estarrecimento.

Pois bem. Todos os objetos encontrados no poema podem ser encontrados nas ruas da cidade. É como, sendo assim, se as cidade fossem o gênero e cada um dos objetos, por exemplo a neblina ou os postes, fossem a espécie, o espécime. Ocorre que as ruas da cidade ganham outro papel importante: elas suscitam e orquestram a vertigem. Como são elas que alucinam, então em última instância são elas que causam o poema. Mas o que significa dizer que elas tomam a dianteira na construção da paisagem? Bem: significa dizer que nas ruas da cidade se encontra um enormíssimo amálgama de coisas e situações. O fato de que estejamos à noite não muda o quadro: embora de dia possamos ver o alvoroço de uma praça movimentada, à noite a paisagem ou esconde para nós os seus segredos ou, pelo contrário, mostra as marcas e as chagas vivas de toda cidade em pleno vapor. Logo, veja que não é que Emmanuel invente ou exagere nas suas descrições. Embora em outros momentos não seja bem assim, aqui, pelo menos, é possível dizer que a poesia que pratica não é a de um surrealismo que se destaca da realidade nua e crua de uma metrópole, mas, pelo contrário, é a de um realismo visceral que entende que descrever de maneira puramente objetiva uma rua qualquer seria inocência e descalabro por lhe pedir que ficasse inerte e aplacasse suas vertigens. Não é a poesia, para repetir o que foi dito, de quem tira os pés do chão, e sim a poesia de quem se emaranha na cidade e a vê palpitar de dentro.

Por isso não existem notas irônicas no poema de Emmanuel. Mesmo se imaginarmos notas dissonantes causadas por algumas metáforas, ainda assim incorreríamos num erro, afinal de contas os adjetivos são usados não para distanciar o leitor da experiência imediata da cidade e sim para que, pelo contrário, nela se afunde. É um modo de abordagem que me faz recordar de imediato o que Fabiano Calixto faz de melhor ou o que Joca Reiners Terron, já na prosa, faz ao elaborar tramas que se a princípio parecem absurdas, misteriosas e fantásticas, num olhar mais detido são plenamente justificadas pelo cosmopolitismo de qualquer metrópole.

Veja o caso da neblina. Segundo o poeta, ela "tem sabor cáustico / de gasolina". Ora: e a neblina urbana, fuligem praticamente, não tem? Sei que quando passamos para o mendigo nós já mudamos o enfoque, afinal de contas falar do mendigo como anjo caído já é se banhar de linguagem figurada. Não espanta que seja para mim a pior passagem do poema, mas não posso negar que ela desempenha um papel de certa importância. Peço pra que note não apenas a comparação com o anjo, coisa, creio, que muitos também iriam elaborar, santificando o mendigo como uma espécie de pária, mas também o fato de que o eu lírico tropeça nele e que o mendigo dorme "no meio-fio". Como não pensar que o meio-fio, aqui, adquire um caráter também figurado, no sentido de que a santidade vista na figura do mendigo que dorme à sarjeta é um modo de sugerir como ele dorme não apenas à margem da sociedade mas à margem da cidade de Deus e da cidade dos homens?

Outros detalhes podem ser apontados sobre a passagem. Em The Old Cumberland Beggar, Wordsworth, ao ver um mendigo, menciona que aquele homem de algum modo servia para manter ou reavivar a caridade e a benevolência que, de outro modo, restariam inertes por anos nos corações dos homens:

                                    While from door to door,
           This old Man creeps, the villagers in him
           Behold a record which together binds
           Past deeds and offices of charity,
           Else unremembered, and so keeps alive
           The kindly mood in hearts which lapse of years

Com Emmanuel a situação é outra. Ele tropeça no mendigo, o que quer dizer que o trata como um objeto (você não tropeça em alguém: você vai de encontro, esbarra, machuca) e, mais ainda, como um objeto desapercebido, um empecilho. Não fosse assim e o mendigo deveria receber algum destaque que fosse no fluxo do poema, coisa que no entanto não é feita, afinal de contas ele é computado dentro do texto como entulho na penumbra. O curitibano Adriano Scandolara chega a resultado análogo no início de Ode ao edifício Ricardo:

           Eu, sozinho, no prédio todo
           não ouvi os estertores:
           ia ao banco, quando
                                 quase
           tropeço no
           cadáver.

O efeito do verbo "tropeçar" é o mesmo: mostrar a maneira inteiramente desumana com que tratamos nosso semelhante apenas porque está na pior. Os dois poetas dão destaque muito grande ao verbo (Emmanuel, por exemplo, segregando-o no final do verso e aplicando um cavalgamento com os seguintes), mas em Scandolara a crueza é mais explícita, seja pelo fato de termos um cadáver isolado no verso final da estrofe, suscitando inclusive um cavalgamento com o verso anterior, seja pela ênfase dada ao "quase", que, aqui, além de ajudar a reconstruir sonoramente o tropeço do eu lírico, adquire um caráter essencialmente cínico: ter ou não ter tropeçado pouco importa. Ao esboçar uma pequena antologia de poemas contemporâneos sobre mendigos, Scandolara diz, na introdução:

Mas há vida ainda por baixo dos trapos (existem mendigos esquizofrênicos e drogados, claro, mas eu arrisco dizer que a maioria é lúcida, muito lúcida), como uma prova da resistência e persistência do humano – e, algo sombriamente, uma lembrança constante de que qualquer um está sujeito aos riscos de ser engolido pela cidade e tornar-se parte dela à força.

Sendo assim, embora seja a parte que eu mais desgoste do poema, não posso negar que é talvez das mais dramáticas. A segunda, creio que o ápice, é aquela que começa com as ruas da cidade se propagando dentro da vertigem, desdobramento esperado do cenário que até então vínhamos presenciando, e que termina com a imagem da virgem. A passagem é particularmente interessante pois denota um esforço do poeta em recortar e dar ênfase a termos centrais, o que já pode ser visto na simples forma com que são dispostos no poema.

É dizer: existem cavalgamentos constantes ao longo do texto, criando um ritmo próprio que separa o objeto de seu predicado. Uma vez que o predicado é, com frequência, aquilo que revelará a alucinação, então o procedimento da fratura serve de início como mais uma demonstração de como, na experiência urbana, até no íntimo da vertigem os objetos são discerníveis. Representa também uma ruptura constante, fazendo da experiência do leitor uma experiência como que intervalada, aos soluços. Veja-se o caso da neblina. A posição isolada do vocábulo no final do verso dois realça sua presença no texto ao mesmo tempo em que estabelece uma deixa para que percorramos de forma mais ávida os versos que seguem. No entanto, já o final do terceiro deixa claro que a força enunciativa desta passagem é o adjetivo "cáustico", que aparece aqui num forte contraponto com a imagem certo modo palpável e concreta da neblina, a princípio muito mais fácil de ser presenciada pelo homem comum do que o sabor cáustico.

Em alguns momentos a técnica acaba por realçar os efeitos sonoros do texto. Pois, como sugerido anteriormente, parte da vertigem também reside no fato de que a vertigem é experimentada sonoramente pelo leitor. Veja-se o caso da passagem relativa aos postes elétricos. A forte assonância em U dos versos imediatamente posteriores à menção aos postes dá concreção ao flagelo que as sombras recebem da luz. Na verdade, a própria imagem já é por si só curiosa uma vez que as sombras é que são atacadas pela luz sulfúrica. Ora: o adjetivo denota de modo claro que a luz é tomada como elemento negativo. E não podia ser diferente: Emmanuel tem a lucidez de ressaltar que na noite urbana não é a sombra que amedronta e sim a luz, ou seja, é a luz que escancara as mazelas e joga à sombra ou à penumbra os demais elementos da paisagem, entre eles o humano. Penso que consigo provar este ponto se o leitor se atentar para o fato de que a passagem do mendigo é separada da dos postes elétricos por uma vírgula simplesmente, sinal gráfico distinto da demarcação enfática representada pelo ponto-e-vírgula. O que se subentende da construção frasal é que o mendigo, além de dormir feito anjo no meio-fio, também dorme à luz dos postes elétricos. Ocorre que, se foi caracterizado como anjo, como portador da luz, ele fica à margem e à sombra da sociedade, sendo fustigado pela luz nefasta lançada pelos postes elétricos.

A passagem se torna ainda mais dramática quando observamos que, instantes depois, teremos as ruas do Centro se propagando dentro da vertigem e, logo após, a imagem da virgem que dá a luz. Ou seja: um terceiro sentido para a palavra "luz", palavra esta que desempenha papel estrutural no texto, uma vez que o vocábulo já pode ser antevisto até mesmo no verbo "alucinar", igualmente central. Mas, antes mesmo de chegarmos aí, peço ao leitor que note a passagem "vertigem; a virgem". A rima interna, além de revelar o privilégio sonoro dado por Emmanuel a seus versos, mostra também um contraponto forte, um contraste intenso que será resolvido da forma mais terrível com o parto da criança deformada debaixo do viaduto. A imagem é claramente estarrecedora, servindo como uma espécie de choque de realidade imediatamente após a informação de que as ruas se propagam dentro da vertigem. Ou seja: esperaríamos uma imagem de teor surreal, quando, pelo contrário, somos golpeados pela realidade em sua feição mais crua, capaz de corromper até o milagre da vida.

É um tipo de golpe e de construção textual que seria perdido se o poeta mantivesse a redação original:

           As ruas do Centro
           alucinam: a neblina
           tem sabor cáustico
           de gasolina; tropeço
           no mendigo dormindo
           no meio-fio feito um anjo
           caído, os postes elétricos
           fustigam a sombra com sua luz
           sulfúrica; uma estrela arrepiada
           atira-se na garganta
           do abismo, onde o luar
           não alcança (se houvesse
           luar, mas não: hoje
           a lua nova se debruça
           sobre a cidade mergulhada
           num monturo de cinzas); as
           ruas do Centro se propagam
           dentro da vertigem; a virgem
           pare uma criança deformada
           debaixo do viaduto; ato
           contínuo, continuo, os olhos
           nus, armados de punhais.

Não funciona. Embora a imagem da estrela arrepiada seja interessante por sugerir, quem sabe, um cometa, fenômeno astronômico de conotações enigmáticas, a imagem não consegue se encaixar na mecânica do poema, de, mesmo na mais profunda vertigem, deixar claro que falamos de uma cidade de concreto. O suicídio da estrela, se por um lado é uma imagem forte, se torna prescindível, uma espécie de supérfluo que, além de ocupar um espaço considerável no texto, ainda assim possui o inconveniente de afastar o mendigo, fustigado pela luz dos postes elétricos, da virgem que dá a luz a uma criança deformada. Sei que a imagem da estrela arrepiada e do luar tentando alcançar o abismo adicionam novos elementos, mas, aqui, elementos de claro matriz metafórico desvinculado em parte da força concreta e direta das passagens anteriores.

É como se na redação inicial o poeta não fizesse jus aos "olhos / nus, armados de punhais". A passagem é curiosa pois realça de forma muito intensa o adjetivo "nus", que, fincando seu pé monossilábico logo no início do verso, posterior a um cavalgamento (como de praxe no texto), denota de maneira muito clara o olhar do eu lírico. Claro que, se lermos o poema de forma superficial, encontraremos uma contradição, afinal de contas o olhar nu é aquele que não se deixa seduzir pelo sobrenatural ou pela vertigem. No entanto, como sugerido, a vertigem que o eu lírico experimenta não provém de entorpecentes quaisquer ou de alucinações unicamente de sua parte. A experiência urbana é em sua essência alucinatória. O elemento humano sucumbe numa cidade grande, o que a imagem da virgem, muito mais que a do mendigo, deixa claro. A virgem pode ser simplesmente uma mulher ou qualquer pessoa que ainda não tenha a experiência, a maturidade necessária para sobreviver na selva de pedra, o que o parto de uma criança deformada bem o atesta: a criança, afinal, será necessariamente deformada pela experiência urbana. Que os olhos, além de nus, sejam armados de punhais, é um modo de mostrar por um lado a violência do ambiente e, por outro, a cautela, a postura defensiva e em constante suspeita que se deve adotar diante da vertigem das ruas do Centro.

*

Fique, por fim, o leitor com a declamação de Roberto Mallet para o poema: