Moishe Pipik.

Em Operação Shylock (tradução de Marcos Santarrita) o romancista cuidadosamente reparte todas as coisas ao meio tal como se cortasse um tomate lustroso. Veja, neste sentido, a figura hipnótica do Philip Roth impostor, anunciada já na contracapa, mas veja também as léguas de distância entre o George Ziad universitário bonachão e aquele protótipo de militante colérico que dirige de forma não muito recomendada, veja o escritor bucovino Aharon Appelfeld, que olha pro Holocausto, olha pra sua ficção e confessa: "chega a ser desleal", veja o conflito interno que movimenta as pesadas engrenagens de um contexto social onde palestinos e israelenses, sionistas e diasporistas ocupam as casinhas no tabuleiro, e veja até mesmo, até!, aquela área dos edifícios romanescos destinadas ao acampamento nômade das personagens secundárias, por exemplo aquele soldado israelense Gal, dividido entre a lealdade familiar e a criação de uma figura sempre à sombra de atos terríveis.

E quer saber? Por mais paranoico que pareça, a impressão que tenho é que o simples ato de abrir a brochura e ter as duas páginas servindo de tablado para a narrativa acaba sendo uma extensão remota desta ruptura traumática. A começar pelas alucinações e pelo intenso sofrimento psicológico sofrido pelo narrador quando havia se viciado em Halcion. "Minha mente começou a se desintegrar. A própria palavra DESINTEGRAÇÃO parecia ser a matéria de que se compunha meu cérebro, que entrou em desintegração espontânea." Mais à frente no livro, quando o Philip Roth impostor já se encontra hospedado na trama um tanto à vontade, o narrador chega a cogitar que aquela figura grotescamente parecida com ele próprio era um resultado da desintegração que o acometera.

Por sua vez, a bifurcação entre o narrador e o impostor, que a certa altura passa a ser chamado de Moishe Pipik, ou Moisés Umbigo, uma figura meio lendária que os familiares do narrador evocavam de brincadeira para a criança; a bifurcação entre ambos abre espaço para que corram águas geopolíticas. A criação do estado de Israel repartiu o território palestino em dois. Nisto, como qualquer um deve saber, um núcleo de conflitos foi instaurado na região que, também como qualquer um deve saber, já era por si só um verdadeiro barril de pólvora. E é aqui que a figura do impostor surge com uma ideia a princípio mirabolante mas não inteiramente desprovida de senso. Para ele, a efervescência da região chegaria a um estágio onde a permanência do povo judeu se traduziria num suicídio a médio ou longo prazo. As cicatrizes do holocausto ainda estavam abertas, de modo que a preocupação primordial de Pipik era a de que os judeus abandonassem o sonho ou a predestinação de um estado todo seu e regressassem à Europa e abraçassem novamente a causa diasporista, haja vista que, permanecendo onde estavam, corriam o sério risco de cair nas garras de um "Oriente Médio estranho e ameaçador" (palavras dele) capaz de causar um segundo holocausto.

Desintegração, portanto, no contexto geopolítico, afinal de contas se a criação de Israel veio como abalo sísmico nos conflitos do Oriente Médio, no que para tanto é suficiente que nos lembremos da ofensiva árabe imediatamente posterior à declaração de independência, a solução dada pelo impostor é a de que se desintegre o estado israelense essencialmente como forma de precaução. Precaução válida, claro que é, mas, como o próprio narrador se apressa em dizer, um tanto insensata tão logo cogitamos a imagem de uma Europa abraçando carinhosamente uma leva de milhões de judeus que adentrariam de novo seu território:

"Oh, essa é melhor ainda", eu disse. "Os alemães, particularmente, vão ter o maior prazer em entrar no terceiro milênio da cristandade com dois milhões de judeus dando uma festa de boas-vindas no Portão de Brandemburgo."

E tem mais. Philip Roth, ele-mesmo, não é ingênuo de abraçar a causa de um dos lados com a comodidade que alguns, do fundo do coração, esperariam. Ele sabe que a situação é delicada e as soluções escandalosas (na outra aba do navegador vejo neste exato instante quem defenda novas cruzadas) não levam em consideração o fato, o simples fato de que vidas estão em jogo. Como em outros romances, o escritor flerta com situações absurdas buscando com isto apalpar os limites da máquina humana, rejeitando o que qualquer radicalismo sob roupagens a princípio sensatas aponta. Um cuidado próprio da boa literatura, é claro, mas que, no caso de Operação Shylock, se dá nos volteios de uma narrativa que emaranha estratos e substratos de sentido uns nos outros, fornecendo de bandeja, até mesmo para os leitores mais ávidos por um romance que devidamente recortado sirva de bandeira partidária, uma espécie de vida em resumo, caso queiramos ficar com a admirável expressão de Antonio Candido.





Outro exemplo de desintegração é quando o narrador se vê diante de Demjanjuk. A essa altura do enredo ele já havia se convencido da real existência de um segundo Philip Roth, o que, em que pese os pedidos de sua esposa em sentido contrário, não o impediu de prosseguir sua viagem para Israel a fim de entrevistar o escritor Aharon Appelfeld. É quando, num horário vago do dia, ao invés de ir visitar seu primo medroso Apter ele resolve ir ao julgamento de John Ivan Demjanjuk, acusado de ser o genocida nazista alcunhado "Ivã, o Terrível".

Para Philip Roth, romancista estadunidense prêmio PEN/Faulkner de 94 na categoria ficção com, vejam só, Operação Shylock, para Philip Roth, judeu, encontrar-se com o réu era algo estarrecedor. "Lá estava ele. Lá estava ele", o homem que no auge de sua juventude cometeu atrocidades inimagináveis. "Brandir uma espada, um revólver, um porrete, ser jovem, saudável, forte, bêbado e poderoso, ilimitadamente poderoso, como um deus!" Sim, o homem que estava no seu zênite, "por cima de tudo e cheio de entusiasmo" a ponto de "conseguir fazer bem uma coisa tão simples como sentir um pouco de prazer com o grande e gordo traseiro de alguém." Um dos segredos da perícia técnica tão estupenda do romancista é este: conseguir te colocar na cabeça de alguém quase que com um passe de mágica. O estupro, que nos causa repulsa, passa a ser encarado como "coisa tão simples" porque para um estuprador é de fato uma "coisa tão simples", o que também explica esse "um pouco" e esses adjetivos, cada qual abjeto a seu modo, caracterizando "o traseiro de alguém". Não existe o espalhafato do escritor que pausa todas as engrenagens narrativas a fim de que ajeitemos a touca e mergulhemos na cabeça da personagem em mais um daqueles monólogos que não se ajustam direito ao enredo. Tudo, ao contrário, é em tempo real, ao vivo e a cores. O discurso indireto livre flui que é uma beleza, e quando menos se espera você está borboleteando do feijão-de-corda hoje em dia plantado por Demjanjuk para o "buraco no rabo de alguém", aberto com uma broca, de quando o genocida era um jovem pujante.

Ocorre que a desintegração, como em tudo, também atua aqui. "Lá estava ele. Ou não estava." Ora: aquele era um processo criminal ainda em fase de instrução. Nada, portanto, de martelo batido, nada, portanto, de certeza. Regras do jogo, meus caros. Quem poderia garantir que Ivã, o Terrível, era realmente aquele homem ali? "Cruzava os braços casualmente sobre o peito e movia levemente as maxilas para baixo e para cima, como um animal em repouso acabando a ruminação. Era tudo que fazia, enquanto eu o observava." Isso mesmo: porque agora advérbios como "casualmente" ou "levemente" surgem nos canteiros da frase e porque a comparação é estabelecida com um ruminante é que a magia da frase nos afasta da certeza condenatória de momentos atrás.

Desintegração. De novo. Paranoica e absurdamente feito cubo de açúcar se desfazendo sobre uma colher de absinto. Shylock, no título do livro, é a célebre personagem shakespeariana que destoa da paleta certo modo homogênea que a literatura até então usava para retratar o judeu como um um maldito avarento, desses que iniciam uma peça direto com "Three thousand ducats". Quando descobre que sua filha havia fugido de casa, Shylock, repleto de dor, se pergunta o que havia motivado tamanha desgraça. Um judeu não tem olhos, mãos, órgãos, sentidos, paixões? A pergunta vai direto ao ponto e dá um nó na garganta. Não lidamos com um animal ou com a matéria amorfa que cabe no moldezinho insípido dos preconceitos. E, querem saber?, até aqui penso que a chave central da desintegração pode fornecer pontos relevantes de análise, afinal de contas entre a causa sionista e a diasporista é de se perguntar onde residiria o judeu de carne e osso, ou, até de modo mais amplo, onde uma pessoa (qualquer pessoa), longe de que abstração conceitual for, pode existir sem ser obliterada por reduções que, mais do que incessantes, simplesmente não dão conta das confusões e fragmentações inabarcáveis da vida.





Philip Roth sabe disso. Aharon Appelfeld contou pra ele. "A realidade do Holocausto superou qualquer imaginação." Antes na mesma resposta líamos: "Eu queria ser fiel à realidade e ao que de fato aconteceu. Mas a crônica que surgiu se revelava um fraco esteio. O resultado era meio fraquinho, uma narrativa imaginária não muito convincente. As coisas mais verdadeiras são facilmente falsificadas." Curioso, não? Mark Twain, em Following the equator, atribui à personagem fictícia Pudd'nhead Wilson a frase que diz que a verdade é mais estranha que a ficção: a ficção se vê obrigada a restringir-se a possibilidades; a verdade, não. Décadas antes a mesma ideia já havia aparecido no Don Juan de Byron e hoje costuma ser citada com uma pequena variação que muda verdade para realidade.

E de fato. Quem lê uma obra como Operação Shylock fica um pouco perplexo com as guinadas violentas do enredo. Numa certa passagem, por exemplo, o narrador está em seu quarto de hotel batendo boca com Pipik. Ele já não aguenta mais a presença incômoda daquela figura que até possuía boas intenções, mas que o deixava doido com sua obstinação doentia, doido a ponto de, páginas atrás, o próprio narrador ter enveredado naquela maluquice diasporista do impostor e feito uma defesa, ele próprio e de um jeito convincente, da tese diasporista para um casal de amigos ("Então é assim que se faz, pensava. É assim que eles fazem. É só dizer alguma coisa").

Então é assim, pensei, que eu sou quando estou dormindo. Não me via comprido numa cama, embora talvez fosse apenas a cama que fosse curta. Seja como for, é isso que as mulheres veem quando acordam e examinam a sensatez do que fizeram, e com quem. Era assim que eu ficaria se morresse à noite naquela cama. Este é meu cadáver. Estou sentado aqui vivo, mesmo estando morto. Estou sentado aqui depois de minha morte. Talvez seja antes de meu nascimento. Estou sentado aqui e, como o Moishe Pipik de Meema Gitcha, não existo. Saí há meia hora. Estou aqui fazendo shivá por mim mesmo.
É mais estranho do que eu pensava.

Vocês já sabem qual é a palavrinha mágica. Pois bem. A cena consegue ser tão absurda que enquanto o narrador contempla Pipik deitado na cama, enfim descansando após o primeiro assalto de uma discussão acalorada, ele resolve ligar pra esposa pra fazerem sexo por telefone. Não pensem que exista um motivo. Esporrear sadicamente na cara do rival talvez seja um bom motivo, mas fazer sexo por telefone simplesmente por fazer ainda me parece o melhor. Mesmo porque o fato é que não dá certo por muito tempo pois o segundo Philip Roth logo acorda, no que mais uma longa discussão é travada, agora com o impostor contando sua história de vida como detetive até o ponto em que os ânimos se exaltam e o impostor retira, "como se fosse um coelho, da braguilha, uma vara descomunal, saída direto de Lisístrata, que para meu maior pasmo ele passou a girar num movimento rotativo, colocando-a em posição, com a mão enconchada sobre a cabeça boleada de boneca, como se movesse a alavanca de um câmbio de um carro antes da guerra."

Por mais estranho que possa parecer elogiar um trecho destes, existem muitas coisas admiráveis nele. E não falo simplesmente na amplitude de comparações usada para descrever o pênis inflado do impostor, por exemplo quando o trata singelamente como um coelhinho saído da cartola ou quando estabelece uma comparação erudita com Aristófanes (que já aparecia de maneira profana um pouco antes na mesma passagem) ou mesmo quando passa a comparações mais diretas e palpáveis, por exemplo isso da "alavanca de um câmbio de um carro antes da guerra", que é simplesmente ótima ainda mais depois que sabemos que o pênis era artificial. Penso na cena como uma espécie de apoteose de um momento de grande tensão, o momento em que alguma coisa entra em erupção graças à mistura subterrânea da geopolítica desvairada de Pipik com a biografia insana que acaba de ser contada e com as benesses de um momento privilegiado da narrativa onde um acerto de contas, um cheque de um milhão de dólares e pilhas de nervos estavam em jogo. O que em qualquer outro romance seria resolvido com sopapos, disparos e paradas cardíacas, em Operação Shylock é arrematado por um pintocóptero.





E é nessa bagunça que a escrita de Philip Roth entra em cena e faz o que bem entende. Uma trama "sobre a qual não tem nenhum controle autoral", ele confessa a certa altura, e a qual, se por um lado permite que seus dotes narrativos frutifiquem nas épocas certas, por exemplo quando descreve os olhos da sra. Ziad como "intensos e globulares, olhos para ver no escuro, dispostos, como os de um lêmur" ou quando Pipik coloca o pau pra fora (e ah!, já ia me esquecendo, coloca e profere: "Olha aqui a realidade. Como uma rocha!"), por outro não se pode negar que a trama segue arrastada em não poucas passagens, com digressões geopolíticas extensas demais, diálogos iguaizinhos a homilias e histórias de vida bombásticas. Se todas essas características são parte importante da receita pretendida pelo narrador, algo que guarde consigo um pouquinho do acre sabor da realidade condimentado aos enjoos causados por um tipo de ficção que beira a vertigem, Operação Shylock foge com certo brilhantismo de uma explanação contextual seca e intragável graças ao emaranhado caótico das situações e a um senso de humor ímpar, mas isso só até o ponto em que o leitor cai na besteira de bocejar e perceber que existe um tanto razoável de páginas onde uma fachada excêntrica mal e mal esconde os circunlóquios de um escritor que entornou o caldo.

Não é outra a impressão toda vez que somos obrigados a enfrentar a lenga-lenga de Pipik quase como se ela fosse um tipo espaçoso de rima pobre. O mesmo com os relatos biográficos, que, se achatados a fim de que coubessem atrás dos arbustos das comparações (coisa que Philip Roth sabe fazer como poucos), então tudo bem, respiraríamos aliviados sem ter de recostar na cadeira toda vez que um filho de Deus com talento para a verborragia entra em cena e resolve desfiar todo um rosário de traumas pretéritos. Para John Updike, em resenha ao New Yorker, a "orgia argumentativa" do livro só vale a prata pra quem se interessa no tema Israel, no desenvolvimento de um enredo exalando pós-modernidade ou, em última instância, em Philip Roth. Fora disso eu duvido. Compre outras coisas do cara, caia de amores por sua prosa e só depois regresse.

Numa passagem que a seu modo ilumina os alicerces de uma carreira literária todinha, o narrador nos confessa ser "um implacável colecionados de histórias." Acho que se a gente der ênfase o suficiente para o adjetivo, então acabaremos por encontrar uma ótima explicação para a coletânea de fatos embasbacantes que ocorrem. Neste sentido compensa citar o restante do trecho, com todos os holofotes voltados para a valsa de advérbios:

Fico meio espantado com essas perspectivas audaciosas, fico ali excitado, quase eroticamente, por essas histórias tão diferentes das minhas, fico ouvindo como um menino de cinco anos a história mais fantástica de um estranho, como se fossem notícias da semana em revista, fico estupidamente ali desfrutando todos os prazeres da credibilidade, quando devia estar ou exibindo meu grande ceticismo, ou correndo para salvar minha vida.

Com o fantasma de Pipik ganhando corpo e ocupando o aposento, é o próprio narrador que se vê no centro das atenções, é ele que se vê como uma personagem que passa pelo escrutínio de leitores como nós, até então acostumados a cochichar da personagem que a mão invisível de um escritor ia traçando conforme as páginas se sucediam. Agora é diferente, e a imersão e a credulidade perante um relato colocam em xeque o nome impresso em letras garrafais na capa da obra e, quase que por tabela, requerem do leitor a partir de agora sensatez. "Era minha própria dificuldade para aceitar que explicava em grande parte por que eu errara tanto em praticamente tudo que se referia a Pipik e, provavelmente, ia continuar errando." Sim, exato. Mas e quanto a nós, leitores? Nós também entramos nesse barco. Aceitamos as cabriolas de todos os outros narradores de Philip Roth pois sabemos serem monarcas no alto de sua onisciência, narradores em primeira pessoa arriscando uma pele que na melhor das hipóteses é verossímil ou, quando muito, um alter ego empunhando máscaras de acordo com suas conveniências. O problema é quando a biografia na penúltima página do livro é a biografia de quem relata toda uma odisseia da desintegração. E aí? Como ficamos?

Na Nota ao leitor que encerra o volume, um mísero parágrafo com exatas dez linhas, lemos de início que "Este livro é uma obra de ficção" e concluímos com "Esta confissão é falsa". A sensação de ludibrio depois desse ziguezague nos faz voltar com o rabo entre as pernas para a frase de Twain ou para um rebotalho de pergunta polegadas após a paranoia: depois da desintegração, what else? No contexto geopolítico já deixei claro que o que sacoleja em meio aos escombros é vida humana. Penso ser uma resposta aplicável para todos os outros casos. A desintegração nos lança de encontro à complexidade irredutível da própria realidade, sem que pretenda com isto sugerir uma espécie de síntese cintilante, não obstante falsa. Um sósia que se passa por você e defende uma tese geopolítica exótica (pra dizer o mínimo) é só a pontinha que emerge das reviravoltas que parecem invalidar a eficácia de qualquer tipo de explicação simples, dessas que cabem no bolso e são ativadas quando se abre a matraca.

É melhor as coisas reais serem incontroláveis, é melhor que nossa vida seja indecifrável e intelectualmente impenetrável do que tentar extrair com uma fantasia maluca um sentido causal do desconhecido. É melhor, pensei, que os acontecimentos destes três dias continuem eternamente incompreensíveis para mim do que presumir a existência, como fazia há pouco, de uma conspiração de agentes de espionagem estrangeira determinados a controlar minha mente. Já ouvimos isso antes.

É, já ouvimos. E não. Não nos convencemos. Melhor assim.