Poetisa ou poeta?

Eu também não. Estas são as primeiras palavras que Orides Fontela diz ao ser entrevistada por Jô Soares em 96. O apresentador mencionava que não gosta de dizer "poetisa", quando ela o corta e explica que antigamente o termo... o termo... "Estava desvalorizando, entende?" Não é que a figura do poeta não possuísse sexo. "A poesia não tem sexo; o poeta tem."

Realmente. O termo "poetisa", sintetiza Sérgio Rodrigues em seu instigante Viva a língua brasileira!, "Está claramente em declínio." Logo, a pergunta do título é facilmente respondida se nos lembrarmos que os dicionários mais abalizados já registram o vocábulo "poeta" como possuindo aplicação tanto para casos masculinos quanto femininos. O motivo de uma abertura assim? Orides Fontela já nos respondeu: o termo desvalorizava o trabalho da mulher. Em tempos pretéritos ele era usado em contextos negativos, associado aos "saraus lítero-musicais" a que se refere Jussara Neves Resende, os quais, frequentes no final do século XIX e "acompanhados de torradas e chá", suscitavam a antipatia de muitos escritores do tempo, que viam naquilo uma ode à futilidade.

A leitura é confirmada Maria Lucia dal Farra, que, certa feita abordando o epíteto aplicado a Cecília Meireles, informa que no início do século passado a escrita de sonetos condoídos passou a integrar o rol de prendas femininas, ao lado por exemplo do piano ou do bordado. Daí que o uso do termo não raro tenha espichado até adquirir a forma larval de "poetisa de salão", onde a trivialidade de muitas das reuniões terminou por contaminar de maneira grave o uso do termo. Dal Farra cita um maldoso chiste contado por Dias-Sancho para uma revista portuguesa em 1923, onde o articulista compara a poesia feminina a cogumelos: repletos de "carolices de banalidades", próprios para "serões com os primos" e "álbuns de praias", esses cogumelos se reproduziam "prodigiosamente" ― "e se há alguns saborosos e suculentos, outros há, todavia, que envenenam perigosamente..."

Esse conteúdo negativo polinizou gerando flores espalhafatosas ainda exibidas na fachada de algumas províncias. É com isto em mente que Cláudio Moreno, certa feita respondendo a um leitor, menciona o chauvinismo de muitas "academias femininas de letras", onde o termo "poetisa" costuma ser muito usado: "Na sua santa ingenuidade, ao criarem essas instituições femininas paralelas, estavam simplesmente reforçando a crença chauvinista de que as 'verdadeiras' academias eram privilégio dos homens."

"Poetisa" seria, portanto, mais uma ferramenta no canivete suíço do machismo de antanho. Um modo de abordar a escrita feita por mulheres de maneira asséptica, podando seus ramos até que exibam um limitado leque de temáticas e vedando, de forma implícita, que a mulher bailasse em qualquer tablado longe do padrão belo, recatado e do lar. Literatura, em suma, "de mulherzinha", constituindo, com isto, um conceito adstringente e constritor de literatura feminina. Ana Cristina César, num divertido ensaio a respeito do assunto publicado em 79, se perguntava "por que as poetisas brasileiras tem optado por essa via [de uma escrita marcada pela "nobreza e o lirismo e o pudor"], e não por outra. Por que mulher quando escreve se atrela a esse tipo de produção?" Mais cedo a autora propunha "uma enquete tipo Globo Repórter", onde sairíamos à rua e perguntaríamos aos pedestres: "o que é poesia; o que é mulher; e mulher fazendo poesia, fala de quê".

As respostas vão configurar o senso comum do poético e do feminino. Surgirão algumas imagens que se convencionou chamar da natureza e considerar belas. O cancioneiro popular. Perfume, pérola, flor, madrugada, mar, estrela, orvalho, pólen, coração. Tépido, macio, sensível. E em aparente contradição: inatingível, inefável, profundo. A velha contradição que os românticos não conseguiram resolver. Mulher é inatingível e sensual ao mesmo tempo. Carne e luz. Poesia também. O poético e o feminino se identificam.

Hoje, depois de Adélia Prado, Hilda Hilst e da própria Ana C., já não faz o menor sentido tratar a mulher como essa criatura molenga e frágil cujos arroubos apaixonados não extrapolam o perímetro caseiro. Com a substituição vocabular, intenta-se uma concepção do trabalho poético feminino que faça jus à gama ilimitada ― porque ilimitada deve ser pra qualquer um ― de temas e técnicas possíveis. É, portanto, a promessa de que passemos de uma designação estreita para outra infinitamente larga. E não se pense que intentada apenas por quem incendeia sutiãs. Otto Maria Carpeaux, no artigo "Poesia intemporal", de 60, já dizia enfaticamente que Cecília Meireles é poeta e não poetisa. A própria Cecília, no célebre poema Motivo, diz, numa na estrofe de abertura:

         Eu canto porque o instante existe
         e a minha vida está completa.
         Não sou alegre nem sou triste:
         sou poeta.

Alerto entretanto que é redutor implicar que o eu lírico do poema tenha assumido uma voz feminina: antes, ela é universal e assexuada, representando, de maneira abstrata, toda voz que preside as malhas de um poema: "Sei que canto. E a canção é tudo", dirá o primeiro verso da última estrofe. Uma forma de prová-lo seria seguindo a exposição de Maria Lucia dal Farra, que menciona uma conferência ministrada por Cecília onde a escritora defende, de modo mais amplo, a tese de que já era chegado o tempo onde a mulher podia partilhar, no domínio literário, de experiências e instrumentais expressivos idênticos ao do homem, rompendo portanto a barreira entre os sexos, mas isto, todavia, sem que implique na repartição de uma poesia feminina ou masculina, haja vista que para ela "o espírito ― e a arte que é uma de suas manifestações ― talvez seja essencialmente andrógino".

Naturalmente que Cecília possuía relativa consciência das acepções indesejáveis implícitas no termo "poetisa", no que basta lembrarmos duma entrevista que deu em 1953 para a Gazeta, onde afirma: "Considera-se que o poeta tem sempre alguma coisa a dizer, mas a poetisa, não. Em geral, o homem costuma segregar a mulher que escreve, que é, por assim dizer, a mulher prendada." Todavia cabe notar, com Karen Patrícia Peña, que Cecília não fazia a mesma distinção quando tratava de suas contemporâneas, à guisa do que podemos ler em seu livro Três conferências. Significa dizer que a distinção, se denotava que os ares deveriam ser expandidos, denotava também que isto só seria feito se a qualidade artística da autora abordada fizesse jus a esta espécie de galardão. Emprego este, em essência valorativo, que de resto também me parece visível no crítico austríaco, ao que se conclui que a substituição vocabular tinha inicialmente o modesto propósito de afastar as nódoas que "poetisa" deixava na reputação de quem fosse etérea o suficiente.

É neste sentido, pra citar exemplos colhidos um tanto que ao acaso, que Armindo Pereira, comentando em 61 a poesia de uma certa Elza Heloisa, relembra o elogio de Carpeaux e também reputa o termo "poetisa" como inadequado, o mesmo com Andrade Muricy que, em 64 falando da poesia de Gilka Machado, pede ao Brasil que se lembre de sua "extraordinária poetisa, poeta maior das maiores". Em 57, na Revista da Semana, numa seção intitulada "Reportagem-mirim", encontrávamos a questão que estampa o título deste meu texto: "Poetisa ou poeta?" A resposta é surpreendente: "O feminino de poeta não é forçosamente poetisa: pode ser poeta também." No entanto, mais uma vez o critério qualitativo se impõe: "Existem poucos poetas do sexo feminino no Brasil. Também, pudera: existem poucos, também, do sexo masculino." José Veríssimo, num texto publicado em 1906 na revista Kosmos, diz que Julia Cortines, poetisa, "é um poeta tão bom como os nossos melhores". Aqui, no entanto, o crítico só está igualando a qualidade artística da produção da autora à dos outros nomes mencionados, entre eles ninguém menos que Cruz e Sousa, no que, para tanto, o abandono da flexão de gênero por um mero instante denota ênfase na comparação estabelecida.

Como dito, são exemplos colhidos ao sabor do acaso. Seria interessante contarmos com um estudo da aplicação do termo "poetisa" na crítica brasileira, no que, penso, nos depararíamos com a constatação de que a troca para "poeta" significou durante certo tempo a cunhagem de uma nova maneira de elogio, nem sempre visando ostracizar a aplicação de "poetisa", afinal de contas ainda existiam mulheres para quem a designação era adequada. A pauta contemporânea, a seu turno, de que o direito seja extensível a qualquer escritora, independente de sua qualidade ou da prática artística adotada, é uma pauta recente (não sei, todavia, precisar a partir de quando) e que dá um passo a mais na desejável abrangência do termo. É neste sentido que a reflexão de Jussara é pertinente:

Não posso aceitar, entretanto, que essa necessidade nasça do mito de que é preciso mudar a designação de poetisa para a de poeta como se o simples fato de chamar uma mulher de “poeta” melhorasse os seus poemas, atitude no mínimo “machista”, como afirma Gilberto Mendonça Teles.

Hoje me parece improvável que, fora do ambiente palaciano e anacrônico de algumas Academias de Letras, se use o termo "poetisa" com conotações negativas. Não nego que a associação da feminilidade à escrita poética ainda assim possa redundar num saldo negativo e preconceituoso, como se, portanto, estivéssemos diante de mais um capítulo da mistificação da figura feminina que com frequência deposita algumas pedrinhas de naftalina no baú do pensamento masculino mais antiquado.

Exemplo de postura assim, dado também ao acaso, é o de Massaud Moisés, crítico notável e de grande erudição que infelizmente alastrou por suas obras adjetivos relacionados ao sexo feminino muitas vezes com conotações aviltantes, à guisa de quando se refere à sensibilidade lírica de alguns românticos (por exemplo Casimiro de Abreu) como "afeminada", "feminoide" ou "feminil". Ou seja: o crítico toma um dado textual, a exemplo daquele de que em Amor e medo os seios do poeta crescem quando contempla a mulher amada ("A luz da aurora me entumece os seios"), mas o reveste de carga negativa, associando o feminino a falta de qualidade artística, aqui identificada como um atributo masculino e viril.

Noutra senda, desta vez sem que os adjetivos "notável" e "erudição" façam jus a sua produção intelectual, temos o caso de Fabrício Carpinejar, que há meses atrás ministrava uma entediante palestra sobre a alma feminina. Um coquetel de estereótipos que desceriam melhor pela garganta se Carpinejar reconhecesse de vez o quão ridículas são as ideias apresentadas e fizesse uma apresentação humorística ao invés da abordagem impalpável e gaseificante escolhida, como se a fêmea da espécie humana fosse realmente um bicho tão misterioso e incompreensível a ponto de justificar um raciocínio que escorre pelos dedos logo que tocado. Que o palestrante, portanto, não tenha conseguido manter a compostura com uma pergunta feita por uma jovem na plateia, questionando justamente a densa mistificação com que o tema foi tratado, é apenas uma maneira de forçar o evento a colocar os pezinhos no chão a despeito do "Eu quero fazer generalizações" dito pelo poeta à maneira de uma criança birrenta.

Afinal de contas, não custa lembrar que se trata de uma mistificação que cai bem nos condimentos do Segundo Sexo: Virginia Woolf já lembrava que enquanto a mística feminina (pra tomar de empréstimo o célebre título de Betty Friedan) era um assunto com relativa recorrência nas cabeças varonis, uma correlata mística masculina quase nunca ocupou as mulheres, ou seja, "Women do not write books about men ― a fact that I could not help welcoming with relief, for if I had first to read all that men have written about women, then all that women have written about men, the aloe that flowers once in a hundred years would flower twice before I could set pen to paper." Ainda, cabe recordar, com Simone de Beauvoir, que os poetas tratam a mulher como a poesia e o poético (e todas as rimas catalogadas em "-or") só raramente se lembrando de questionar se a própria moçoila julga o mesmo. Resumidamente: "Verdade, Beleza, Poesia, ela é Tudo: uma vez mais, tudo na figura do Outro. Tudo exceto ela mesma."





Pois bem. Que fazer? Simples: da maneira como a autora achar melhor. Questão de tratamento. Por óbvio não vacina o crítico de refestelar-se num oceano de reduções sexistas, de modo que não é a escolha do vocábulo que magicamente irá desenferrujar consciências neolíticas. Caso a autora não tenha deixado claro a opção de sua preferência, ou caso o leitor até mesmo o ignore, penso que a carga negativa historicamente implícita em "poetisa" já indica a opção mais neutra, isto é, a que vai te salvar de ser escalpelado.

No entanto, nada nos leva a crer que o termo haja sido banido ou que um articulista que eventualmente o empregue seja um machista irremediável. Não se trata de uma questão de novilinguismo, muito embora o frêmito de alguns destacamentos da militância sonhe com esse tipo de reductio ad absurdum onde os preconceitos entupiram a tal ponto a cisterna anímica do indivíduo que os estalidos de um ou outro "poetisa" na resenha indicam de maneira clara o estado terminal do crítico (e não que, sei lá, nunca tenha lhe ocorrido um quinto da problemática suscitada pelo termo ou que, simplesmente, "poetisa" afague melhor os seus ouvidos). Realmente me parece improvável que hoje, ao vivo e a cores, alguém use o termo "poetisa" com a conotação jocosa que ele recebeu outrora. Logo, penso que reabilitar o "poetisa" não seria de todo mau, e ouso dizer que a depender da poética abordada, onde uma distinção de gênero é aspecto crucial, o uso da flexão feminina pode ser um modo de fazer justiça às pretensões do texto analisado.