Experiências literárias.
Na rotina de nossos pais existia um momento do ano em que o espírito era preparado para a visita de um daqueles vendedores ardilosos que seduzia a família logo que num abrir da maleta ele expunha o mundo mágico dos benefícios do Clube do Livro. O sonho de que pai e mãe se aclimatassem à alta cultura e que seus filhos fossem catapultados para um futuro melhor ladrilhado de clássicos da literatura universal estava agora redimensionado a fim de que coubesse no bolso, bastando, para tanto, que os diletos progenitores comprassem pelo menos uma quota mensal de livros do vasto catálogo oferecido pelo Clube.
O sucesso foi absoluto. Surgido de um conluio entre a Abril e a Bertelsmann, conglomerado alemão que abocanhou enormes fatias da televisão, jornais e editoras mundo afora de modo que hoje se assemelha a uma baleia bíblica carregando em seu intestino grupos como a Penguin Random House, sócia majoritária da Companhia das Letras e por conseguinte de todos os seus selos, por exemplo a Objetiva ou a Alfaguara; surgido de um conluio assim, é claro que as partes envolvidas só visavam o que fosse no mínimo uma máquina de imprimir cédulas, e prova disto é que, lançado o Clube do Livro em 73, dois anos depois chegava-se a 250 mil sócios, número que alcançaria o ápice de 800 mil em 83, quando a editora, no seu auge, batia nas portas de quase três mil municípios do país e vendia milhões de exemplares anualmente, todos, como dito, saídos de um catálogo que continha em seu bojo livros de receita, peças de Shakespeare, poemas árcades e romances policiais.
De lá pra cá descobrimos água em Marte. O perfil dos escritores mudou e trouxe consigo um tipo de exigência que retirava as editoras da inércia propiciada pela narrativa pós-apocalíptica em que se fiavam. Sei que é meio estranho dizer algo do tipo, afinal de contas o primeiro resmungo que dois leitores trocam quando se veem no elevador é a respeito do desinteresse pela leitura no Brasil, panorama totalmente distinto aos demais países do globo, por exemplo os Alpes suíços ou os pampas argentinos. Em lugares assim, dizem os mais viajados, os livros se abrem em metrôs ainda que em horário de pico e os mais velhos de tardezinha balbuciam para grupos de crianças os poemas que sabem de cor. Tudo tão lindo!... Lindo a ponto de pingar uma gota de dor no coração. É que ao espiarmos o que apontam pesquisas abalizadas feitas religiosamente ao longo de quase uma década, a única conclusão a que se chega é a de que pelo jeito só o Brasil, só ele, está chafurdado num lamaçal, observando, sem que esboce reação alguma, seu glorioso futuro rastejando em terra firme a palmos de distância, inacessível.
É quando, a partir das lentes de contato das estatísticas, olhamos pro rosto dos brasileiros e descobrimos que 70% deles não leu nenhum livro ao longo do ano. Por vezes esse número sobe, por vezes desce, mas fica sempre zanzando na casa desta porcentagem maldita, pingando uma gota de dor em nosso coração. Com exceção dos gringos, que, segundo o Pew Research Center, contavam com um percentual de um quarto da população mais ou menos, ignoro quais sejam as estatísticas ao longo do mundo. Enfim. Como toda mãe diz, você não é todo mundo. 70% parece ruim demais. Nem uma biografia de subcelebridade pra dar sopa, um livro de receitas do padre, um compêndio de ufologia, de astrologia ou de curiosidades enlatadas. Nada. E aqui não adianta nem mesmo sair de cena com a desculpa de que a juventude é que anda desmiolada. Os números de décadas atrás eram melhores? Eu duvido, viu. E mesmo que fossem, cabe perguntar porque diabos um público leitor tão dedicado desses gerou um tão desleixado: gerações não são compartimentos estanques.
Ocorre que numa terra tão árida a literatura não desiste de borrifar gotas de verde. O público leitor está disperso, mas, o que me parece interessantíssimo, de focos assim é possível vislumbrar uma oportunidade quase sem precedentes de aumentar a base de leitura do país. Nossa população e marcadamente nossos jovens leem pouco, mas ainda é possível encontrar espécimes que dedicam parcela importante de suas vidas e de seu orçamento à compra de víveres literários. E quer saber mais? As editoras ― as mais espertas, as mais lúcidas ― estão aprendendo aos poucos de que modo esse público tão valioso se comporta. Quer dizer: trata-se de um público que já não se contenta com um romance trancafiado numa brochura frágil e de capa repleta de um espalhafato libertino, muito menos com uma capa dura frígida e em letras menores que formigas-doceiras. Trata-se de um público que vivencia a internet até que a morte os separe, e não mais o estereótipo do professor universitário aposentado que visita a banca de jornal todo dia de manhãzinha e sai de lá enrolado no echarpe, o suplemento cultural debaixo do braço.
Um público que, sabe?, quer comprar um livro pela capa também. E problema nenhum quanto a isso. Sei que tem muita gente por aí que faz careta quando dá uma reparada no entusiasmo de quem entra numa livraria e sai cheirando tudo. Livro é recheio, nós sabemos, é o que está lá dentro, é a sequência de caracteres decodificada por nossos neurônios, é o picadeiro do artista e não do editor. Já sabemos como termina esse tipo de cantilena ― toda ela muito bonita pra quem começou a se interessar por literatura há alguns meses e está entorpecido pelo suposto impacto que empunhar um romance de Dostoiévski causa no sexo oposto. O problema é que no mundo real as pessoas gostam de um livro bem impresso, um livro agradável de ser lido, com uma capa legal, um miolo firme, bem diagramado, com um papel que exale conforto, essas coisas. Não adianta bancar o floquinho de neve julgando que apreciar o suporte físico do livro é o mesmo que menosprezar o tesouro intelectual que ele contém dentro de si. Nós não vivemos mais ― se é que algum dia vivemos ― uma época onde soía escolher entre uma capa chamativa estofada de estereótipos e uma epopeia corporificada numa brochura aos frangalhos.
É normal que isso ocorra. Faz parte do que se entende por ser leitor. Quem asfixia o prazer de cheirar um livro novinho em folha, ou mesmo de viajar no tempo com o aroma adocicado de um livro publicado há meio século, quem asfixia um prazer assim acaba matando parcela relevante do que é amar os livros. De modo análogo, é tolice dizer que ninguém compra um livro pela capa. Qual o problema em reconhecer que sim, muitas vezes nós somos guiados pela sedução abscôndita de uma lombada na gôndola? Obviamente isso pode ser um erro fatal, mas quem negará que quando calha de o livro realmente ser bom nós nos sentimos como se tivéssemos descoberto, guiados apenas por uma entidade superior, um baú repleto de pedras preciosas?
Nesta defesa do leitor comum, o que me parece importante salientar, tentando com isto estabelecer um gancho com o finado Clube do Livro, é que num momento pretérito, muito embora recentíssimo, nós leitores deixamos de simplesmente apreciar um livro impresso com requinte e luxo para abraçarmos a ideia mais genérica da "experiência literária". Mas aqui, claro, pode ser que o leitor me pergunte: que caralho é "experiência literária"? Ao que respondo que a expressão é retirada do subtítulo de uma espécie de Clube do Livro strikes again chamado TAG, onde o indivíduo paga uma taxa mensal e recebe um livro por mês, indicado por um curador, acolchoado num conjunto que traz consigo uma revista que contextualiza a obra do autor, um souvenir diverso e, entra mês, sai mês, uma espécie de jogo detetivesco onde os participantes tentam descobrir qual será o livro do próximo mês, isto graças a pistas que a empresa vai dando para seus consumidores à maneira de um caçador instigando o animal feroz a que coloque a pata em cima da arapuca.
Um exemplo. A edição de janeiro deste ano trazia uma edição exclusiva do Vida e proezas de Aléxis Zorbás de Níkos Kazantzákis, indicado por ninguém menos que Patch Adams. Trata-se de um belíssimo livro impresso em capa dura pálida com desenho de dois homens na praia, onde o azul do mar, vívido e forte a ponto de sentirmos as pinceladas do artista, é contrastado levemente pelo dourado dos rapazes de braços abertos e dos rochedos ao longe. Como dito, a edição é exclusiva para assinantes e possui uma caixa e marcador personalizados. O kit também contava com um tal calendário literário, o tipo de ideia singela que mais parece cintilar num mar de obviedades: ao invés de marcar feriados ele marca datas da literatura, por exemplo o nascimento de um grande romancista. Um mês depois, sob curadoria de Martha Medeiros, os leitores recebiam uma edição de O xará, da escritora americana Jhumpa Lahiri, onde o souvenir consistia numa edição extra de O capote de Gógol, livro que o protagonista do romance de Jhumpa recebe de seu pai.
Como se pode observar, o objetivo dos kits é o de ampliar a experiência para algo além do conforto de ler um livro bem impresso. É como se agora o propósito fosse o de envolver o leitor, aprisioná-lo nas malhas do texto. Ele está comprando algo que foi feito para ele, algo que revela um cuidado a ponto do consumidor sentir que os curadores da TAG batem no seu ombro e dizem "sabe, cara, eu sou que nem você, eu te entendo". Não que a TAG tenha sido a primeira a pensar em algo do tipo. A recém-finada Cosac & Naify se notabilizou por publicar livros de luxo, alguns chegando a um requinte que faziam da experiência de ler o livro algo muito mais amplo, algo que requeria ferramentas além de olhos, sinapses e celulose. Na sua edição para o Bartleby de Melville, por exemplo, o leitor precisava literalmente descosturar a lateral direita do livro, no que, tão logo o fizesse, encontraria as páginas do livro não refiladas exibindo imagens cinzentas e metálicas iguais a um muro: transpô-las e encontrar os veios narrativos requeria que lançássemos mão de um estilete para separar as páginas. Atualmente caberia citar o trabalho de divulgação empreendido pela Darkside, que envia para os parceiros o livro Evangelho de sangue envolvido em correntes e cadeados que literalmente o trancafiam (o tipo de coisa que talvez mate sua avó se ela te descobrir fuçando).
Quando isso começou? Não sei dizer. A ideia de assinar um serviço de kits culturais parece ter se alastrado e não é de modo algum exclusividade da literatura. Existem kits idênticos para a cultura nerd, onde camisetas, bustos, adesivos, pôsteres e gibis são acondicionados nas caixas. O que representariam? Como não sou consumidor desses kits, eu realmente não sei dizer ao certo, mas posso negar de antemão que seja uma futilização da literatura ou qualquer outro tipo de cantilena neomarxista que enxergue nisto um aviltamento consumista do livro enquanto produto emancipatório. São kits bem montados, agradáveis, o tipo de coisa que faz você gostar de gostar daquilo. O prazer parece simples e irrelevante, ainda mais porque em muitos casos a compra dos itens do kit, se em separado e no momento certo do ano, talvez saísse mais barato que a assinatura mensal. No entanto, é um tipo de atenção e carinho que o leitor gosta de fazer para si próprio. Um presente, uma surpresa e um graveto a mais colocado na lareira de sua paixão pelos livros.
Acaba por indicar, é claro, que o apocalipse do livro impresso, alardeado por tantos, é algo que não parece próximo pelo menos desta geração de leitores. Quando apontam para os jovens e os enxergam como apalermados segurando smartphones, se esquecem que muitos também gastam a mesada com o livro da youtuber ou os da saga Harry Potter. São também, em suma, um público leitor, seja ele esporádico e não fiel (apesar de extremamente rentável), seja ele fiel e altamente promissor. Se por um lado parece estranho tratar uma obra como Harry Potter de clássico, mesmo porque, caso a tratemos assim, será a partir de um conceito um pouco decepcionante de clássico, por outro não se pode negar que teve uma influência e uma importância enorme para a formação de leitores. Muita gente que compra os kits de uma editora como a TAG, ou de várias outras em atuação no mercado, compra porque um dia adquiriu um a um os livros da saga do bruxinho querido. Neste sentido é que as editoras não podem se enganar pelas narrativas encabrestadas que parcela da intelectualidade insiste em oferecer, tratando o público jovem como tudo, menos um público leitor.
Pelo contrário. Tem uma molecada aí que tá lendo horrores, meu amigo. E atenção: leitores exigentes. Que desejam apreciar o seu livrinho amado mas também desejam fazê-lo numa edição bem feita, dessas que você mostre pras visitas e passe horas e horas folheando as páginas apenas para contemplar a dança dos caracteres que te aguardam. Algo que parece só poder ser feito no livro impresso, o que faz com que a vinda inelutável dos livros digitais abrande seus ímpetos mortíferos. Não há nem nunca houve necessidade de chorarmos nossas pitangas: repito que esta geração, pelo menos, não vai abandonar os prazeres da celulose, afinal de contas a ideia abstrata da "experiência literária" só funciona se estiver atrelada ao que se pode tocar com a ponta dos dedos. Ninguém cria um kit como o da TAG para frígidos leitores digitais. Eles são úteis, possuem um design arrojado e são programas e concebidos para que amemos manuseá-los ― mas ainda ignoram toda a feitiçaria ancestral de acorrentar nossos cinco sentidos graças à evocação de uma caixa repleta de souvenirs pensados unicamente para nossa seita.
Se existem leitores capazes de manter as finanças de uma empresa como a TAG, então estamos falando de um público consumidor que ainda respira e, o que é mais importante, que transborda vida. Sabendo ser verdade que na tabela de vendas existem leitores intermediários, desses que esperam pular as etapas angustiantes de saber que livro comprar fiando-se na opinião abalizada do curador, por outro não se pode ignorar que leitores assentados também compram os kits e se divertem um bocado com o que eles proporcionam, agora, todavia, de uma maneira muito além da comodidade de uma editora que esparramava nas maletas de seus representantes um amplo catálogo acessível. Estamos falando de leitores que buscam aumentar, até onde isto for possível, a experiência de imersão característica da literatura, transformando o piscar de olhos em que nos transportamos para um tiroteio num livro de banguebangue em algo mais duradouro. Só posso enxergar com bons olhos que o façam.
O sucesso foi absoluto. Surgido de um conluio entre a Abril e a Bertelsmann, conglomerado alemão que abocanhou enormes fatias da televisão, jornais e editoras mundo afora de modo que hoje se assemelha a uma baleia bíblica carregando em seu intestino grupos como a Penguin Random House, sócia majoritária da Companhia das Letras e por conseguinte de todos os seus selos, por exemplo a Objetiva ou a Alfaguara; surgido de um conluio assim, é claro que as partes envolvidas só visavam o que fosse no mínimo uma máquina de imprimir cédulas, e prova disto é que, lançado o Clube do Livro em 73, dois anos depois chegava-se a 250 mil sócios, número que alcançaria o ápice de 800 mil em 83, quando a editora, no seu auge, batia nas portas de quase três mil municípios do país e vendia milhões de exemplares anualmente, todos, como dito, saídos de um catálogo que continha em seu bojo livros de receita, peças de Shakespeare, poemas árcades e romances policiais.
De lá pra cá descobrimos água em Marte. O perfil dos escritores mudou e trouxe consigo um tipo de exigência que retirava as editoras da inércia propiciada pela narrativa pós-apocalíptica em que se fiavam. Sei que é meio estranho dizer algo do tipo, afinal de contas o primeiro resmungo que dois leitores trocam quando se veem no elevador é a respeito do desinteresse pela leitura no Brasil, panorama totalmente distinto aos demais países do globo, por exemplo os Alpes suíços ou os pampas argentinos. Em lugares assim, dizem os mais viajados, os livros se abrem em metrôs ainda que em horário de pico e os mais velhos de tardezinha balbuciam para grupos de crianças os poemas que sabem de cor. Tudo tão lindo!... Lindo a ponto de pingar uma gota de dor no coração. É que ao espiarmos o que apontam pesquisas abalizadas feitas religiosamente ao longo de quase uma década, a única conclusão a que se chega é a de que pelo jeito só o Brasil, só ele, está chafurdado num lamaçal, observando, sem que esboce reação alguma, seu glorioso futuro rastejando em terra firme a palmos de distância, inacessível.
É quando, a partir das lentes de contato das estatísticas, olhamos pro rosto dos brasileiros e descobrimos que 70% deles não leu nenhum livro ao longo do ano. Por vezes esse número sobe, por vezes desce, mas fica sempre zanzando na casa desta porcentagem maldita, pingando uma gota de dor em nosso coração. Com exceção dos gringos, que, segundo o Pew Research Center, contavam com um percentual de um quarto da população mais ou menos, ignoro quais sejam as estatísticas ao longo do mundo. Enfim. Como toda mãe diz, você não é todo mundo. 70% parece ruim demais. Nem uma biografia de subcelebridade pra dar sopa, um livro de receitas do padre, um compêndio de ufologia, de astrologia ou de curiosidades enlatadas. Nada. E aqui não adianta nem mesmo sair de cena com a desculpa de que a juventude é que anda desmiolada. Os números de décadas atrás eram melhores? Eu duvido, viu. E mesmo que fossem, cabe perguntar porque diabos um público leitor tão dedicado desses gerou um tão desleixado: gerações não são compartimentos estanques.
Ocorre que numa terra tão árida a literatura não desiste de borrifar gotas de verde. O público leitor está disperso, mas, o que me parece interessantíssimo, de focos assim é possível vislumbrar uma oportunidade quase sem precedentes de aumentar a base de leitura do país. Nossa população e marcadamente nossos jovens leem pouco, mas ainda é possível encontrar espécimes que dedicam parcela importante de suas vidas e de seu orçamento à compra de víveres literários. E quer saber mais? As editoras ― as mais espertas, as mais lúcidas ― estão aprendendo aos poucos de que modo esse público tão valioso se comporta. Quer dizer: trata-se de um público que já não se contenta com um romance trancafiado numa brochura frágil e de capa repleta de um espalhafato libertino, muito menos com uma capa dura frígida e em letras menores que formigas-doceiras. Trata-se de um público que vivencia a internet até que a morte os separe, e não mais o estereótipo do professor universitário aposentado que visita a banca de jornal todo dia de manhãzinha e sai de lá enrolado no echarpe, o suplemento cultural debaixo do braço.
Um público que, sabe?, quer comprar um livro pela capa também. E problema nenhum quanto a isso. Sei que tem muita gente por aí que faz careta quando dá uma reparada no entusiasmo de quem entra numa livraria e sai cheirando tudo. Livro é recheio, nós sabemos, é o que está lá dentro, é a sequência de caracteres decodificada por nossos neurônios, é o picadeiro do artista e não do editor. Já sabemos como termina esse tipo de cantilena ― toda ela muito bonita pra quem começou a se interessar por literatura há alguns meses e está entorpecido pelo suposto impacto que empunhar um romance de Dostoiévski causa no sexo oposto. O problema é que no mundo real as pessoas gostam de um livro bem impresso, um livro agradável de ser lido, com uma capa legal, um miolo firme, bem diagramado, com um papel que exale conforto, essas coisas. Não adianta bancar o floquinho de neve julgando que apreciar o suporte físico do livro é o mesmo que menosprezar o tesouro intelectual que ele contém dentro de si. Nós não vivemos mais ― se é que algum dia vivemos ― uma época onde soía escolher entre uma capa chamativa estofada de estereótipos e uma epopeia corporificada numa brochura aos frangalhos.
É normal que isso ocorra. Faz parte do que se entende por ser leitor. Quem asfixia o prazer de cheirar um livro novinho em folha, ou mesmo de viajar no tempo com o aroma adocicado de um livro publicado há meio século, quem asfixia um prazer assim acaba matando parcela relevante do que é amar os livros. De modo análogo, é tolice dizer que ninguém compra um livro pela capa. Qual o problema em reconhecer que sim, muitas vezes nós somos guiados pela sedução abscôndita de uma lombada na gôndola? Obviamente isso pode ser um erro fatal, mas quem negará que quando calha de o livro realmente ser bom nós nos sentimos como se tivéssemos descoberto, guiados apenas por uma entidade superior, um baú repleto de pedras preciosas?
Nesta defesa do leitor comum, o que me parece importante salientar, tentando com isto estabelecer um gancho com o finado Clube do Livro, é que num momento pretérito, muito embora recentíssimo, nós leitores deixamos de simplesmente apreciar um livro impresso com requinte e luxo para abraçarmos a ideia mais genérica da "experiência literária". Mas aqui, claro, pode ser que o leitor me pergunte: que caralho é "experiência literária"? Ao que respondo que a expressão é retirada do subtítulo de uma espécie de Clube do Livro strikes again chamado TAG, onde o indivíduo paga uma taxa mensal e recebe um livro por mês, indicado por um curador, acolchoado num conjunto que traz consigo uma revista que contextualiza a obra do autor, um souvenir diverso e, entra mês, sai mês, uma espécie de jogo detetivesco onde os participantes tentam descobrir qual será o livro do próximo mês, isto graças a pistas que a empresa vai dando para seus consumidores à maneira de um caçador instigando o animal feroz a que coloque a pata em cima da arapuca.
Um exemplo. A edição de janeiro deste ano trazia uma edição exclusiva do Vida e proezas de Aléxis Zorbás de Níkos Kazantzákis, indicado por ninguém menos que Patch Adams. Trata-se de um belíssimo livro impresso em capa dura pálida com desenho de dois homens na praia, onde o azul do mar, vívido e forte a ponto de sentirmos as pinceladas do artista, é contrastado levemente pelo dourado dos rapazes de braços abertos e dos rochedos ao longe. Como dito, a edição é exclusiva para assinantes e possui uma caixa e marcador personalizados. O kit também contava com um tal calendário literário, o tipo de ideia singela que mais parece cintilar num mar de obviedades: ao invés de marcar feriados ele marca datas da literatura, por exemplo o nascimento de um grande romancista. Um mês depois, sob curadoria de Martha Medeiros, os leitores recebiam uma edição de O xará, da escritora americana Jhumpa Lahiri, onde o souvenir consistia numa edição extra de O capote de Gógol, livro que o protagonista do romance de Jhumpa recebe de seu pai.
Como se pode observar, o objetivo dos kits é o de ampliar a experiência para algo além do conforto de ler um livro bem impresso. É como se agora o propósito fosse o de envolver o leitor, aprisioná-lo nas malhas do texto. Ele está comprando algo que foi feito para ele, algo que revela um cuidado a ponto do consumidor sentir que os curadores da TAG batem no seu ombro e dizem "sabe, cara, eu sou que nem você, eu te entendo". Não que a TAG tenha sido a primeira a pensar em algo do tipo. A recém-finada Cosac & Naify se notabilizou por publicar livros de luxo, alguns chegando a um requinte que faziam da experiência de ler o livro algo muito mais amplo, algo que requeria ferramentas além de olhos, sinapses e celulose. Na sua edição para o Bartleby de Melville, por exemplo, o leitor precisava literalmente descosturar a lateral direita do livro, no que, tão logo o fizesse, encontraria as páginas do livro não refiladas exibindo imagens cinzentas e metálicas iguais a um muro: transpô-las e encontrar os veios narrativos requeria que lançássemos mão de um estilete para separar as páginas. Atualmente caberia citar o trabalho de divulgação empreendido pela Darkside, que envia para os parceiros o livro Evangelho de sangue envolvido em correntes e cadeados que literalmente o trancafiam (o tipo de coisa que talvez mate sua avó se ela te descobrir fuçando).
Quando isso começou? Não sei dizer. A ideia de assinar um serviço de kits culturais parece ter se alastrado e não é de modo algum exclusividade da literatura. Existem kits idênticos para a cultura nerd, onde camisetas, bustos, adesivos, pôsteres e gibis são acondicionados nas caixas. O que representariam? Como não sou consumidor desses kits, eu realmente não sei dizer ao certo, mas posso negar de antemão que seja uma futilização da literatura ou qualquer outro tipo de cantilena neomarxista que enxergue nisto um aviltamento consumista do livro enquanto produto emancipatório. São kits bem montados, agradáveis, o tipo de coisa que faz você gostar de gostar daquilo. O prazer parece simples e irrelevante, ainda mais porque em muitos casos a compra dos itens do kit, se em separado e no momento certo do ano, talvez saísse mais barato que a assinatura mensal. No entanto, é um tipo de atenção e carinho que o leitor gosta de fazer para si próprio. Um presente, uma surpresa e um graveto a mais colocado na lareira de sua paixão pelos livros.
Acaba por indicar, é claro, que o apocalipse do livro impresso, alardeado por tantos, é algo que não parece próximo pelo menos desta geração de leitores. Quando apontam para os jovens e os enxergam como apalermados segurando smartphones, se esquecem que muitos também gastam a mesada com o livro da youtuber ou os da saga Harry Potter. São também, em suma, um público leitor, seja ele esporádico e não fiel (apesar de extremamente rentável), seja ele fiel e altamente promissor. Se por um lado parece estranho tratar uma obra como Harry Potter de clássico, mesmo porque, caso a tratemos assim, será a partir de um conceito um pouco decepcionante de clássico, por outro não se pode negar que teve uma influência e uma importância enorme para a formação de leitores. Muita gente que compra os kits de uma editora como a TAG, ou de várias outras em atuação no mercado, compra porque um dia adquiriu um a um os livros da saga do bruxinho querido. Neste sentido é que as editoras não podem se enganar pelas narrativas encabrestadas que parcela da intelectualidade insiste em oferecer, tratando o público jovem como tudo, menos um público leitor.
Pelo contrário. Tem uma molecada aí que tá lendo horrores, meu amigo. E atenção: leitores exigentes. Que desejam apreciar o seu livrinho amado mas também desejam fazê-lo numa edição bem feita, dessas que você mostre pras visitas e passe horas e horas folheando as páginas apenas para contemplar a dança dos caracteres que te aguardam. Algo que parece só poder ser feito no livro impresso, o que faz com que a vinda inelutável dos livros digitais abrande seus ímpetos mortíferos. Não há nem nunca houve necessidade de chorarmos nossas pitangas: repito que esta geração, pelo menos, não vai abandonar os prazeres da celulose, afinal de contas a ideia abstrata da "experiência literária" só funciona se estiver atrelada ao que se pode tocar com a ponta dos dedos. Ninguém cria um kit como o da TAG para frígidos leitores digitais. Eles são úteis, possuem um design arrojado e são programas e concebidos para que amemos manuseá-los ― mas ainda ignoram toda a feitiçaria ancestral de acorrentar nossos cinco sentidos graças à evocação de uma caixa repleta de souvenirs pensados unicamente para nossa seita.
Se existem leitores capazes de manter as finanças de uma empresa como a TAG, então estamos falando de um público consumidor que ainda respira e, o que é mais importante, que transborda vida. Sabendo ser verdade que na tabela de vendas existem leitores intermediários, desses que esperam pular as etapas angustiantes de saber que livro comprar fiando-se na opinião abalizada do curador, por outro não se pode ignorar que leitores assentados também compram os kits e se divertem um bocado com o que eles proporcionam, agora, todavia, de uma maneira muito além da comodidade de uma editora que esparramava nas maletas de seus representantes um amplo catálogo acessível. Estamos falando de leitores que buscam aumentar, até onde isto for possível, a experiência de imersão característica da literatura, transformando o piscar de olhos em que nos transportamos para um tiroteio num livro de banguebangue em algo mais duradouro. Só posso enxergar com bons olhos que o façam.