Dois poemas de Lêdo Ivo.

Hoje foi um dia legal. Hoje, no caso, quinta-feira dia dois. Acordei mais cedo (antes mesmo do café e um pouco depois dos galos) e consegui estudar por uma hora, o que é algo que eu durante muito tempo tentei e até então nunca consegui. Depois, no Núcleo de Prática Jurídica da faculdade, participei de um atendimento com uma cliente. No mínimo enriquecedor, visto que, já quase terminando a bendita graduação, a experiência que tive com a advocacia em si foi quase que nula. Li, na biblioteca municipal, a antologia de poesia goiana contemporânea publicada ano passado. Há tempos que eu queria dar uma conferida. No horário do almoço, consegui a proeza de comer bem e por menos de dez reais. Assisti Logan, filme que gostei muitíssimo. Comprei dois livrinhos num dos meus sebos preferidos da cidade. Já achei coisas melhores lá, mas de todo modo foi legal ver o 22 diálogos do Temístocles Linhares (livro que, ao lado do sempre admirável Mário Faustino, serve de ilustre antepassado para minha tentativa de unir crítica literária e diálogo platônico) pelo preço irrisório de um real. E pra fechar, cá estou, fazendo duas das coisas que mais gosto: escrevendo pro bloguinho e comendo bauru de pão caseiro.

Não sabia direito o que escolher, então resolvi ficar com Lêdo Ivo. Ele vem rondando minha cabeça de uns tempos pra cá. Explico: Wladimir Saldanha, poeta contemporâneo do qual não li nenhum livro mas que, com base nos poemas constantes em seu blog, reputo como notável (Wladimir é também um tradutor de qualidade, bastando que o leitor observe suas recentes versões feitas para o Spleen de Baudelaire, aquele que fala do roi d'un pays pluvieux), publicou no Jornal Opção dois textos sobre a poesia do Lêdo. Textos bons, desses muito sensíveis que de quebra fazem uma releitura consistente de toda uma época e do modo como um poeta é capaz de estabelecer diálogos de formas insuspeitas.

Por hora, fiquemos com esses dois poemas aqui. Os dois são do livro Cântico, com poemas de 47 a 49. Acho que se disser que é nesse livro que consta o Soneto puro, o leitor já vai dar uma situada. (A propósito, nessa esteira dos célebres-poemas-de-amor, cumpre notar que Poemas, sonetos e baladas, do Vinicius, sairia apenas um ano antes, 46, contando com alguns dos best hits de sua carreira, entre eles o Soneto de fidelidade e o Soneto do maior amor.) De um modo geral nunca fui um grande entusiasta da poesia do Lêdo, embora sua reunião de poemas feita em 74, chamada O sinal semafórico, seja um dos livros que mais me orgulho de ter comprado (muito pelo fato de tê-lo conseguido ao preço irrisório de dois reais). E isto sem exclusão, claro, de seu admirável trabalho como tradutor de Rimbaud (lembrai-vos das "grandes éguas azuis e negras"!...) e como crítico. Ao que me consta o poeta era uma pessoa absolutamente adorável, dos poucos poetas que você realmente gostaria e muito de conhecer. Pois, embora nomes como Bruno Tolentino ou Augusto de Campos sejam de minha preferência, pra ficarmos com o Tom & Jerry, eu sinceramente não sei se gostaria de passar uma tarde com os dois. Imagino que seria um verdadeiro porre, o Tolentino com uma pose pra lá de esnobe e o Augusto rebobinando o Plano piloto. Com o Lêdo, pelo menos do que já ouvi dizer de pessoas que de fato o conheceram (gente com um santo parecido com o meu), eu provavelmente me divertiria um bocado, e sairia dali encantado com o poeta.

Já da poesia do Lêdo propriamente dita eu sempre fui mais afeito aos sonetos. O resto eu não gosto muito não, com exceções aqui e acolá. Mas veja você que quando se abre um livro como Cântico, bem se percebe que estamos diante de algo de um patamar no mínimo distinguível. Não que seja o melhor livro da época, especialmente se considerarmos tudo que os veneráveis da geração de 30 publicavam mais ou menos nesse período. Um livro bom, eu diria, no sentido cálido e acalentador da palavra "bom". Um livro, como dito, que conta com o Soneto puro, mas também com o Soneto do Cais Pharoux. Que conta com A palavra e a graça:

           Além das palavras,
           ó palavra, estás.

O velho embate do poeta com a palavra. Metalinguagem, sabem como é. Só que exposta de uma maneira muito clara, com um invejável poder de concisão. Temos, basicamente, um paradoxo e uma invocação. Ora: como a palavra pode estar além das palavras? Não faz sentido. É corriqueiro dizer que o poeta faz aquela luta com as palavras que Drummond um dia caracterizou como vã, especialmente no sentido de que a linguagem não é capaz de expressar tudo o que às vezes intentamos e, no entanto, o trabalho mesmo do poeta é o de comunicar o que não pode ser comunicado. A palavra "goiabeira" é capaz de me fazer evocar tudo o que uma goiabeira foi para mim durante a infância? Parece pouco que eu grafe a palavra na folha em branco. Ou que eu encha a folha toda só com a mesma palavra. Parece ser necessário, por exemplo, ir de encontro às "tardes fagueiras / À sombra das bananeiras" de que fala Casimiro de Abreu, muito embora exista uma distância evidente entre uma goiabeira e uma bananeira. De fato. Mas no poema de Casimiro eu consigo encontrar a emoção em formato de cápsula. O incomunicável (tudo o que a aurora da vida foi) comunicado ("Que os anos não trazem mais!").

Não parece ser bem isto o que ocorre no poema do Lêdo, porém. A palavra está além das palavras... Não é que exista algo que esteja além das palavras, por exemplo a memória da infância. É a palavra. Que palavra seria essa? Alguma palavra em específico? Uma palavra obscura e misteriosa, algo à maneira do ptyx de Mallarmé ou do noigandres de Arnault Daniel? Claro que no último caso, por exemplo, após todo um debate e ranger de dentes, nós conseguimos descobrir o que diabos a palavra queria dizer, o que não impediu, todavia, que seu odor ainda assim e ainda hoje deixasse de afugentar o tédio. É, é. Seria uma opção de leitura, visto que o mistério em torno de uma palavra como noigandres parece estar além das palavras. Ou, a bem da verdade, de qualquer outro vocábulo que receba uma carga especial, creio que em específico uma carga artística. Digo "em específico" pois se considerarmos que um apelido faz com que aquela simples sequência de fonemas vá além das palavras graças ao poder de evocação emocional, do mesmo modo uma palavra que recebeu um trato célebre o suficiente nas mãos de escritores também consegue ir além das palavras, à guisa do ocorrido com "nonada" nas mãos de Guimarães Rosa.

Mais uma vez, opções de leitura até válidas, mas que não encontram total ressonância no texto. O leitor precisa observar que temos no início o plural ("palavras") e depois o singular ("palavra"). Ora: qualquer um sabe que o vocábulo "palavra", quando no singular, também adquire um sentido religioso, ainda mais quando está grafada em maiúscula ou, então, quando é corporificada a ponto de poder ser invocada pelo poeta. É precisamente o que ocorre: as palavras do início do primeiro verso são todas, são qualquer uma, ouso dizer que até mesmo aquelas que todas as palavras do poema e do livro são capazes de oferecer. A palavra, porém, do segundo verso, só pode ser uma: a palavra divina, a palavra transcendental, a palavra capaz de acarretar consigo a graça ou o Inefável.

           Teu nome, Inefável,
           em mim se compraz.

Inefável é o que não se pode nomear ou descrever em decorrência de sua extrema beleza. Este é o momento certo para tirarmos a poeira de texto sobre o Sublime escrito por Longino, mas como o meu é um texto despretensioso, me restrinjo a colocar a deixa em cima da mesa para o leitor. Digamos, apenas, que não é que o poeta defina o Inefável. Digo que podemos ler o trabalho poético como o de comunicar o incomunicável, mas isso não quer dizer que o poeta comece grafando "Infância" e depois aperte a tecla dois pontos. O poeta suscita beleza com a linguagem. É a maneira, aliás, de romper o paradoxo. Pois se o Inefável, por exemplo, é algo que não pode ser nomeado ou descrito, então a maneira que o poeta tem de manejar essa coisa tão sublime (e o inefável, a beleza, o sublime e outros adjetivos jucundos andam de mãos juntas) é justamente suscitando-o com base na aparelhagem dos versos. Ora: parece um pouco presunçoso por parte do eu lírico dizer que o Inefável se compraz nele. Mas me parece perfeitamente possível que se tome o eu lírico deste poema como um representante de todos os eu líricos e de todos os poemas. O Poema, com maiúscula (designando o gênero, dando nome ao bando), é o lugar onde o Inefável de fato se compraz. Não que o Inefável não possa existir em outros lugares. Hoje, eu disse, foi um dia bem legal pra mim. Desses que você conta nos dedos, desses que te fazem vislumbrar que sua vida, afinal de contas, é mais do que ganhar dinheiro pra pagar boletos. Me contentei com coisas simples, por exemplo almoçar e pagar menos de dez reais. Fiquei feliz, me senti livre. Sei que tem gente que encontra o mesmo sentimento tirando fotos de cordilheiras cobertas de neve, mas isso é com os outros. Não preciso de tanto. Enfim. Eu diria que sim, claro que o Inefável pode ocorrer em outros lugares também. O Poema não é o único local privilegiado. A experiência religiosa me parece que tende a ser uma porta de acesso ao Inefável muito mais certeira, e às vezes me pergunto se com o esporte também não.

           Por que me persegues
           se meu desejo é
           ser direto e lógico,
           claro, doce e firme
           como a coleção
           terramarear?

O leitor não pode ser desavisado a ponto de traduzir o embate do Lêdo, neste poema aqui, com um embate contra uma tendência construtivista da poesia. É preciso lembrar a data em que o poema foi escrito. Ele realmente parece fazer sentido se colocado contra a explosão de vanguardas na década seguinte, mas, por hora, a poesia em voga era uma poesia onde o raciocínio muitas vezes se fechava e a poesia se tornava não raro hermética, com o mosquito duinense causando febre metaforicoide em não poucos poetas. Aquela coisa de falar da aurora como uma mulher nua, colocar um pássaro voando ali no meio, uma joia, uma sugestão de noite no final etc etc. João Cabral faria pelo menos duas investidas contra esse tipo de poesia, ambas na Antiode que, além de se colocar contrária à poesia dita profunda (grifo meu), dizia que, ao contrário do que o eu lírico outrora supunha, a poesia grafava "flor" sabendo que "flor é fezes".

Com Lêdo Ivo a crítica é tanto no sentido de que uma poesia direta, lógica, clara e doce já era por si só uma poesia que batia de frente com as características mais marcantes da poesia da geração de 45 (e isso mesmo se considerarmos as projeções posteriores de uma poesia engajada), mas também há que se vislumbrar no sentido de que o Inefável persegue o poeta apesar deste seu desejo. Ora: não é de se pressupor, portanto, que se o poeta quer ser direto e lógico, o Inefável viria justamente para embaralhar tudo isso? Afinal de contas, Longino dizia que o discurso, para que concorresse ao sublime, devia ser um discurso digno e elevado, implicando com isso o uso (não exagerado, obviamente) de recursos como a hipérbole ou o hipérbato, além da recusa de se tratar assuntos baixos. Não vejo como a clareza ou a doçura se encaixariam aqui, por exemplo, ou mesmo os ditames da lógica friamente considerada. Ademais, a tendência construtivista da poesia, que se desenvolveria depois mas que já encontrava a semente plantada na prática da geração de 45, pode ser caracterizada (de forma algo tosca, confesso) como uma maneira de tornar a ideia do Inefável uma ideia alheia às suas pretensões. De que adianta que o Inefável se compraza no poema? A "flor" no poema cabralino pode ser tida como uma metáfora desse mesmo Inefável, e, no entanto, a Antiode cabralina demole ao dizer que "flor é fezes".

A coleção Terramarear foi uma célebre coleção de literatura infantil publicada ali pra década de 30. No site do Marginália, meu amigo Ângelo Giardini fez uma listagem dos livros que a compõem. Kipling, Twain, Stevenson... Essas coisas. Ora: a coleção Terramarear pode ser lida, por sua vez, como metáfora da infância. Creio que também existe a possibilidade de lermos na palavra "Terramarear" uma sugestão da condição terrena, visto que, desdobrada, conseguimos ler "terra", "mar" e "ar" com tranquilidade. Sendo assim, que tipo de declaração é esta que o poeta faz? Ser "direto e lógico" me parece um tanto quanto óbvio. Ser "claro" também. Mas "doce" começa a adicionar uns sentidos curiosos... Não costumamos associar a ideia de doçura à ideia da lógica, por exemplo. Talvez no sentido de uma gradação: se sou direto, sou lógico, e se sou ambos, acabo sendo claro. Ora: do fato de ser claro eu consigo fazer um salto para a ideia da doçura sem muita dificuldade. É, é. Concedo. Mas depois temos "firme". Firmeza não contradiz com a doçura? Não parecíamos ter um movimento que ia do mais espesso ao mais mole, por assim dizer, da doçura? O que o poeta nos sugere é que seu desejo é tratar a coisa de maneira direta, de maneira clara, mas sem deixar que ela escape (por isso o "firme") e capaz de transmitir um sentimento doce. A evocação da coleção Terramarear de certo modo consegue isso tudo, pois nela conseguimos antever a doçura dos livros da infância com a imediatez de uma imagem poética que é um forte candidato a um correlato objetivo, pra me valer da expressão de Eliot. Ou seja: um objeto que consegue corporificar aquilo que é abstrato, aquilo que é vago.

Entretanto, leitor, veja que se cheguei a este ponto do argumento, não parece óbvio que o Inefável persiga o poeta? Afinal de contas embora Longino associasse a ideia do sublime à grandeza (e estou partindo do princípio que o inefável é concebível no sublime), sabemos, após a aventura modernista e seus porquinhos-da-índia, que nada impede que um poema que fale de assuntos antes tidos como baixos e com uma linguagem quase que despida ainda assim possa ser um poema belo, um poema inefável. Que outra impressão se poderia ter diante de um carrinho de mão vermelho? Disse antes, também, que o poeta comunica o incomunicável... suscitando-o. Ora: sendo assim, as características de ser direto, lógico, claro, doce e firme como uma coleção de livros infantis parecem ser características suficientes para que o Inefável seja suscitado por um poema.

           Vai-te embora, vai,
           deixa-me tranquilo,
           sem anjo invisível,
           sem ninguém que guarde
           meus passos na vida.

O Inefável perturbaria o poeta, então? É possível e me parece a leitura mais provável. Afinal de contas o poeta pode suscitar a beleza mas não o sublime. Aqui, claro, eu basicamente me valho daquela distinção entre o Belo e o Sublime que autores como Burke ou Kant em priscas eras fizeram, ou seja, o Sublime trata de algo imensamente maior que de certo modo massacra e apequena o ser humano. É também o que já podia ser antevisto em Longino, pois, como mencionado há pouco, quando ele fala do sublime, ele fala de coisas engrandecedoras. O problema é que existe aquilo que Roger Scruton chamou de beleza mínima, no sentido de que a beleza pode subsistir até numa rua despretensiosa ou num jardim florido. O poeta pode, afinal de contas, pretender aquilo tudo, mas sem que ele encare a grandiosidade que a ideia do Inefável é capaz de trazer. Ele pode suscitar pequenas belezas, pequenos estalidos até agradáveis, mas sem que algo maior realmente seja antevisto em seus poemas (ou sem que ele busque contemplar algo do tipo). E este é o xis da questão.

           Fique eu tão sozinho,
           pobre e abandonado,
           que seja impossível
           me visite a graça.

O poeta se anula. Até então, um substrato religioso havia sido apontado no singular do vocábulo "palavra", mas é de se notar que se trata, evidentemente, de um substrato que coabita de maneira perfeita na ideia do Inefável, sem contar, claro, o "anjo invisível" do verso treze (anjo este que me parece olhar de esguelha para os terribilíssimos anjos rilkeanos). Só que, curiosamente, o termo "graça" não aparece em maiúscula. Ora: "graça" é também um termo de matiz religioso, e creio que depois do poeta ter grafado "Inefável" em maiúscula (sem que tenha grafado, por exemplo, o nome da coleção), bem como as outras sugestões antes apontadas, é capaz de fazer com que o leitor suspeite dessa procedência religiosa do termo "graça" só de bater o olho. E a partir daqui nós vemos bem como a ideia de se afastar o Inefável a ponto da graça jamais visitá-lo é uma ideia perigosa. O poema todo possui um ritmo singelo e uma verdadeira doçura. Na verdade, acho que quase todas as características antes apontadas como apetecidas pelo poeta se encontram aqui. A única que não consigo ver de maneira tão explícita é "lógico", mas, quanto ao restante... A doçura, por exemplo, pode ser muito bem observada se atentarmos para a redondilha menor usada em todo o poema, um tipo de verso muito usado em contextos ágeis ou que pretendem um tema mais leve, à maneira de uma ária. Um tipo de verso lírico por excelência, podemos dizer, muito ajudado pelos ecos que as terminações em A e em I ao longo do poema tendem a oferecer. Existem aquelas em E, por exemplo em "Por que me persegues", mas de todo modo são minoritárias e não só: no caso deste verso, há que se considerar que ele se amarra sonoramente ao próximo, graças a "desejo" e depois a "direto", além de manter certa maneira vivo o E cravado na palavra "Inefável".

           A Graça de Deus.

É o verso que vem logo após os antes citados. Um adendo. Uma revelação. Note como, agora, "graça" está grafada em maiúsculo. Note como "Deus" fecha de maneira incisiva e monossilábica uma estrofe (a segunda) de um poema que, como apontado, possui uma preponderância de sons em A e em I, aspecto este muito ajudado, claro, pelo fato de ser a menor frase de todo o livro.

           Mas isso é possível,
           terramarear?
           E tu, Inefável,
           me abandonarás?

O poeta começa se dirigindo a uma palavra: "ó palavra". Logo depois saberemos que a palavra é a palavra "Inefável": "Teu nome". É curioso que o poeta dialogue com o que não pode ser nomeado ou descrito. Seria o caso de pressupormos uma proximidade ou uma distância à maneira de uma prece? A segunda opção me parece preferível, muito pelo uso da interjeição. De todo modo, no início desta terceira estrofe o poeta se volta para "terramarear". Minha leitura é de que se trata de uma metáfora da infância, mas aqui me parece ser mais correto lermos como a súmula do estilo que o poeta antes descreveu. Ou, até mesmo de forma mais ampla, como sua poesia, ou como a poesia desejada ou a poesia de maneira mais ampla (nenhum destes movimentos ampliativos me parece exagerado). Pois bem. É possível que o Inefável abandone o poeta? Não se trata de sugerir que o poeta parece apresentar, como sugerido, todos os apetrechos necessários para acomodar o Inefável em suas malhas silábicas. Trata-se, antes, de seguir o que o conceito do Inefável diretamente. O sublime, dizia Longino, é o eco da grandeza da alma. Pois bem. É possível que o Inefável abandone o poeta mesmo que ele o expulse? É possível voltar as costas para o Inefável?

Vejamos A armadilha, o segundo poema selecionado.

           Muda o tempo e o diamante
           cresce num pudor de alba.

O poema é feito de três quadras de versos de medida cambiante. O primeiro, por exemplo, podemos ler como possuindo sete ou oito sílabas, a depender de como o leitor elida "-po e o" e de como ele se comportará diante de "dia-". É possível que ele englobe tudo numa elisão e aplique uma sinérese em "diamante", mas acho que isso tornaria o verso carregado de um modo que a poesia do Lêdo não costuma comportar. Enfim. O tempo muda. Isso da alba se ligar a uma joia é algo meio batido, não digo nem tanto hoje mas sim na poesia da geração de 45. O tipo de correlação automática: o céu é bonito e apresenta uma cor vívida; logo, é hora de compará-lo a joias preciosas graças ao valor delas e à sua tonalidade. Só que, claro, nosso amigo Lêdo Ivo é um poeta que possui lá seus dotes. Aqui eu apontaria que o poeta estabelece uma divisão certo modo clara entre a ideia do tempo que muda e do diamante que cresce. Mas não no sentido de apartar as duas coisas, pois, a esse respeito, é claro que existe uma ligação entre ambos propiciada pelo "e", pela tendência metaforizante da poesia do poeta como um todo (e da própria poesia como fenômeno geral, aliás) e pelo verbo "cresce". Mas é uma divisão. E mais: ele cresce "num pudor de alba". É um detalhe interessantíssimo. Não sei se consigo abordá-lo integralmente. Dá uma sensualidade à imagem que muito a enriquece. Mas não só. É um ganho sonoro considerável. No primeiro verso temos um jogo sonoro entre o T e a nasal M/N das palavras "tempo" e "diamante", muito ajudado pelo fato de que são palavras próximas, ligadas por duas vogais facilmente elidíveis, e no segundo temos um verso de seis sílabas que possui acento na primeira, na quinta e na sexta. Ou seja: depois do primeiro acento, ele meio que abre um espaço em branco que é preenchido por duas sílabas tônicas juntinhas ("-dor" e "de al-") onde a consoante D adquire papel especial.

           Antigamente meus amigos
           jogavam pôquer à tarde.

Isso é de uma concreção admirável. Não acho que jogar pôquer à tarde metaforize alguma coisa. É apenas uma imagem que surge de maneira incrivelmente límpida no céu do poema. Enquanto nos dois primeiros versos tínhamos um início que possuía um cômputo sonoro digno de nota, além de uma estrutura metafórica intrincada (afinal de contas o diamante cresce, ele se liga à alba e a alba possui um pudor), aqui temos uma imagem que surge de contraponto de forma clara, doce, firme. "Antigamente" também cria um espaço em branco do ponto de vista rítmico, a que se seguiria um ritmo jâmbico que começa em "-mente" e termina só no outro verso, em "pôquer". Temos uma aliteração em M no verso três e um suave jogo de vogais tônicas no verso quatro: o A de "jogavam" e de "tarde" intercalado ao "O" de "pôquer". Não acho nada lá muito notável, mas é algo.

O tempo muda, mas essa mudança do tempo é posta numa frase que termina com a alba, isto é, o nascer do dia. O diamante é evidentemente uma joia preciosa. É como se o poeta dissesse que à medida que o tempo muda, esse diamante precioso que faz com que o dia nasça vai crescendo, sem que deixe de guardar consigo um decoro, um pudor quem sabe decorrente de seu alto valor ou do fato de ser um diamante rarefeito, como se fosse sendo refinado ou sedimentado à medida que o tempo passa. Não nos esqueçamos que o poeta, no belíssimo Soneto dos vinte anos, fecha dizendo que enquanto a vida o fez "para que amasse", o poeta a fez "trazendo a aurora para a noite escura", isto "entre o sonho e o pensamento" (súmula da poesia do autor, valendo-me, para que o afirme, do que Wladimir Saldanha expôs em seus artigos). Assim sendo, a invocação dos amigos jogando pôquer à tarde, um tipo de invocação que de tão saborosa chega até a nos emocionar (muito, repito, graças à sua posição hábil no corpo do poema), é uma maneira de enxergarmos esse diamante crescer diante de nossos olhos.

           O que é vida, esvoaça. A erva hesita
           diante das covas abertas.

Afinal de contas, se o tempo muda o tempo acaba. Mais uma vez citando o Soneto dos vinte anos, "Passem rios, estrelas, que o passar / é ficar sempre". Ou: "Que eu mesmo, sendo humano, também passe / mas que não morra nunca este momento / em que me fiz de amor e de ventura." A diferença é que, em A armadilha, o tom não parece tão triunfal ou tão exultante. A vida esvoaça. Tudo o que é vida esvoaça, aliás. A forma com que o poeta constrói a frase propicia a aliteração (que se segue também em "erva"), dá ênfase ao verbo e indica o movimento de sopro: "O que é vida" seguido, logo depois de uma pequena pausa, por "esvoaça" e por um ponto final (e depois, ainda, pela imagem das covas abertas). Todavia, a erva hesita "diante das covas abertas." Hesita? Hesita por serem muito recentes ou por nem tudo ter se perdido, no sentido de que as covas não guardariam exatamente algo morto?

           De tempo me fala o postal
           onde te ergues, Cidade.

As duas imagens desta segunda estrofe me parecem muito boas. Realmente: um postal pode falar do tempo, não só por constar nele uma fotografia que, afinal, é registro efêmero (às vezes num espaço de meses aquilo ali pode mudar), mas também porque um postal é uma fotografia enviada com intenções pessoais, felicitações, esse tipo de coisa. A cidade costuma ser vista como um reino mais concreto, e de fato cidades duram mais que amigos jogando pôquer à tarde ou até mesmo mais do que a erva diante do túmulo. Cidades não esvoaçam, por exemplo. Ainda mais se considerarmos que "Cidade" vem grafado em maiúsculo, indicando imponência. Já amigos sim, perecem. A alba sim, e todo dia. A erva... sim, por certo, mas a ênfase não é nem nela: é mais considerando o que está dentro da cova aberta, seja como cadáver, seja como a vida humana novamente metaforizada (um sopro). Este último sentido me parece possível também pelo fato de que "erva" vem no singular enquanto as covas abertas, no plural. Ou seja: a erva pode hesitar também no sentido de que, face a tantas covas abertas, ela não sabe em qual vai se enredar. Lêdo Ivo consegue sugerir a efemeridade da vida graças à simples flexão dos nomes. Espanto nenhum: ele não havia conseguido encapsular o conceito da transcendência em dois versos, contando, para tanto, com a flexão de número do substantivo?

           Responde-me, ó chuva que seca
           o duro encanto das calçadas.
           A bicicleta na praia
           é a morte ou é a viagem?

Já falei desses versos em outras passagens aqui no bloguinho mas não custa relembrar: Drummond, num comovente poema de Claro Enigma, fala do jornal caído no chão e, depois de constatar que ele mente, diz que o chão, de tanto ser pisado, um dia talvez se humanize. O encanto das calçadas é o mesmo da cidade: trata-se de puro concreto, mas que ainda assim é capaz de trazer encanto pois pessoas passam por ali. É fácil ligar a ideia do calçado à falta de vida, uma espécie de empecilho para que a flor brote do asfalto. Mas não costumamos imaginar a ideia de que calçadas se desgastam pela atividade humana, pelo fato de que foram feitas para que pessoas trilhem aquele caminho de maneira incansável. Não quero romantizar demais a coisa, afinal de contas o poeta caracteriza como um duro encanto. Todavia, é uma perspectiva.

O fato de que a chuva seque é, mais uma vez, um detalhe que me agrada. Especificamente, que ela sequer na calçada, afinal de contas sabemos que o cheiro da chuva caída na calçada é um cheiro peculiar. Pois no geral os poetas colocam a chuva pra dar um banho de ducha nos transeuntes, dando vida à paisagem, essas coisas. Aqui, naturalmente, estamos diante de uma armadilha. Entretanto, pergunto: que tipo de resposta essa chuva poderia dar ao poeta? Ora: o tempo muda e aquele diamante dos instantes magníficos, eu disse, vai crescendo. A chuva caiu na calçada e fez com que essa mesma calçada deixasse de lado sua característica seca. Pois a terra, em contraposição, comumente é fria e molhada. A calçada não. Logo, a chuva cair na calçada reverte isto. Mas veja: a chuva está secando. Está voltando à estaca zero. (O Arnaldo Antunes tem um poema a respeito disso: a chuva molhar tudo e no final secar.) Que tipo de lição pode-se extrair?

Aliás, que tipo de pergunta é esta feita no final? A bicicleta e a praia são coisas legais. Associamos imagens juvenis e belas a ambas. Como poderiam ser a morte? Uma viagem parece ser mais óbvio: monto numa bicicleta e pedalo, faço uma viagem à praia. Ocorre que também sabemos que a morte é uma viagem. A última. Que ligação estabelecer entre ambos? Difícil dizer. O título diz: Armadilha. Leio como: a armadilha do tempo, de que à medida que ele se apura ele faz com que a vida escasseie, esvoace. Não é isso o que nos ensina o belo soneto de Cláudio Manoel da Costa, terminado em: "Onde há mais resistência, mais se apura"? A bicicleta na praia parece ser uma coisa agradável. Eu gostaria de estar diante de uma imagem dessas. Assim, ao vivo e a cores. Assim, agora, neste exato momento. Acho bem possível que nosso amigo Lêdo estivesse pensando em alguma imagem de sua infância alagoana. Eu pensaria no ingresso que paguei pro filme hoje, por exemplo. O dia de hoje, aliás, foi desses que faz com que o diamante cresça. Não sei quantos mais eu terei na vida, mas uma coisa me parece certa: visto que momentos assim são raros, de modo que mesmo que eu levasse uma vida pra lá de confortável, ainda assim seria capaz que em meio a dunas de areia numa praia israelense eu não conseguisse metade da paz de espírito que consegui hoje; visto que momentos assim são raros, eu dizia, e visto que a única coisa pelo jeito certa é que depois de ter marcado mais um dia assim na caderneta da Vida restam-me outros, eu sinceramente não sei dizer mais quantos, mas sei no mínimo dizer que restam todos menos um. E esta talvez seja a armadilha. Afinal de contas me parece sim uma indagação válida: um instante de alegria extrema, como o que vivenciei hoje, ainda que de maneira tão simples. Isso é a morte ou é a viagem? A armadilha consiste neste alçapão. O mesmo da chuva que molha o duro encanto do asfalto para, logo após, secar. É inevitável que caiamos. O ponto não é esse. O sentimento que fica depois de lermos o poema é o de que sabemos muito bem qual é a resposta.