"Diálogo a dois", de Augusto de Campos.

Gosto muito desse poema aqui, saído da fase inicial do Augusto, como, de um modo geral, gosto muito dos poemas iniciais não só do Augusto, como também do Haroldo e do Décio. Acho que os do Décio tomam a dianteira, mas de todo modo aprecio mais os do Augusto que os do Haroldo. Em seu início, os concretos foram chamados de "novíssimos", no sentido de que pegaram algumas das características mais marcantes da poesia da chamada Geração de 45 (em específico o cuidado formal e o arsenal metafórico de impacto não raro surrealista) e levaram aquilo ali a novos patamares, com frequência às raias de uma poesia hermética e bestialógica, este último termo entendido no sentido de uma poesia cheia de palavras difíceis onde o significado era solapado pelo que sonoramente o texto sugeria.

É um caminho que nem o Augusto e nem o Décio seguiriam depois, a não ser por vias tortas se considerarmos, por exemplo no caso do Augusto, seu apreço por poetas notoriamente difíceis como Sousândrade, Kilkerry, Mário de Sá-Carneiro ou Ernani Rosas, ou, no caso do Décio, se considerarmos sua concepção do funcionamento do texto poético como um texto capaz de gerar ruídos num código (uma concepção, portanto, marcadamente semiótica) ou mesmo um experimento esparso como o de traduzir uma ode de Keats chegando, deliberadamente, a um texto mais difícil que o original. De todo modo, no âmbito da criação poética mais sistemática, este será um caminho que só o Haroldo, por exemplo, retomaria ao se aproximar daquela corrente poética que se chamou de neobarroca. Alguns dos poemas visuais do Augusto, é certo, são intrincados e difíceis de serem lidos (por exemplo Canção noturna da baleia), e outros do Décio radicalizam a tal ponto que deixam de ser poesia (por exemplo os de Stèle pour vivre nº 4), mas ainda assim, se considerarmos pelo menos o verso em seu ciclo histórico, minha opinião é de que só o Haroldo mesmo retomou algumas características incipientes em sua primeira poesia (e eu o digo mesmo sabendo que exercícios ocasionais no verso tradicional seriam feitos tanto pelo Décio quanto pelo Augusto).

Um vídeo que gosto para ilustrar a maneira como a palavra nesse tipo de poesia se torna opaca ao mesmo tempo que resplende, é esse daqui, do Augusto lendo poemas do Haroldo. Observem a maneira como ele parece saborear cada palavra, lendo tudo com muita calma e tirando os melhores efeitos possíveis de cada aliteração, de cada assonância. Sempre achei o Augusto um declamador de poesia notável.




Lembro do Luis Dolhnikoff, que certa feita escreveu uma admirável recensão crítica da obra do Augusto (onde ele faz algumas das maiores repreensões e alguns dos maiores elogios já feitos ao poeta), dizendo (mas isso noutro texto) que se compararmos o que os concretos faziam nesse tempo com o que, por exemplo, o Tolentino fazia, veremos a superioridade poética da fase inicial deste sobre a daqueles. Bem. Não concordo. Dizer que a poesia do Tolentino era mais clara é uma meia verdade. Não acho que um poema como Anulação, que inclusive faz parte do título do primeiro livro de poemas do Tolentino (na verdade verdadeira é o segundo, mas como o primeiro primeiríssimo envolveu um quiproquó todo sobre plágio, esqueçamos), possua uma sintaxe que se possa classificar como clara, escorreita ou coisa do gênero. Por certo que existirão outros momentos muito mais tranquilos de entender, e onde o Tolentino desenvolverá características poéticas que marcarão sua obra até o final, entre elas o domínio formal, o verso fluido, os cavalgamentos e as rimas parciais. Sim. E ainda mais se nos lembrarmos que os momentos iniciais dos concretos apresentarão só raramente uma poesia mais palatável (veja o caso de um poema como Rodeio, do Augusto, que chega a ser simplório). Contudo, faço notar que isto não nos leva à conclusão de que o hermetismo inegável do início da poesia do grupo Noigandres tenha sido gratuito ou, pelo menos é o que me parece, de menor qualidade.

Por momentos em que a poesia se trancafia e expõe ao leitor apenas os feixes de luz de sua carapaça sonora, pode-se citar metade daquele que começa com "Ar triste":

             Ar triste. O Artista. Olho:
             preso entrepálpebras ferrenhas
             Gladiatouro inc’oyable polindo as unhas
             friáveis pardelicatesse
             à lâmina de sua alma meltrretida.

O artista olha para a paisagem e vê as coisas intrincadas umas nas outras, o que explica os neologismos compostos de palavras coladas ("entrepálpebras"), de palavras estrangeiras ("pardelicatesse", também colada) e até mesmo daquelas enxertadas no meio de outras (é o caso de "malabar(rindo)arabe- / língua"), tudo para terminar com a matéria poética que atravessa a relva ("atravesrelva move um pouco") e esmorece. Isto posto, se observarmos que o "Ar triste" do início do poema é figurado pela paisagem intrincada e certo modo hermética, mas se observarmos que o artista guarda uma semelhança com tal paisagem não só por ter escrito um poema que a figurasse, como também pela paranomásia entre "Ar triste" e "O Artista", veremos como a maneira calma com que o poema termina ("os talos e / arrefece") funciona como interessante alívio para um poema que, em outras passagens, incutia uma certa clausura no leitor, bastando que se observe uma passagem como "Gladiatouro inc'oyable".

Mas não é este o poema que quero comentar aqui. Observemos Diálogo a dois, um dos meus preferidos:

             A Angústia, Augusto, esse leão de areia
             Que se abebera em tuas mãos de tuas mãos
             E que desdenha a fronte que lhe ofertas
             (Em tuas mãos de tuas mãos por tuas mãos)
             E há de chegar paciente ao nervo dos teus olhos,
             É o Morto que se fecha em tua pele?
             O Expulso do teu corpo no teu corpo?
             A Pedra que se rompe dos teus pulsos?
             A Areia areia apenas mais o vento?

             A Angústia, Pignatari, Oleiro de Ouro,
             Esse leão de areia digo este leão
             (Ah! O longo olhar sereno em que nos empenhamos,
             Que é como se eu me estrangulasse com os olhos)
             De sangue:
             Eu mesmo, além do espelho.

Ele possui como epígrafe a frase "A Angústia, Augusto, esse leão de areia", atribuída a Décio Pignatari. Ao que me consta, não vem de nenhum poema do Décio, então confesso que realmente não sei de onde é essa epígrafe. De uma conversa, quem sabe? Sabemos que Décio e Augusto possuíam uma forte amizade, a tal ponto que o Décio chegou a escrever um belo poema chamado Rosa d'amigos dedicado ao Augusto e também ao Haroldo, sem contar, por certo, o fato de que os três entrariam na canoa da poesia concreta e enfrentariam tormentas inúmeras. Mas não só: a relação de intimidade entre os poetas envolvidos com o concretismo foi tão grande que o próprio Décio dizia que ele era o único que não era da família, visto que o Augusto e o Haroldo eram irmãos, o Grünewald foi casado com uma irmã da esposa do Augusto e o Ronaldo Azeredo era, aliás, cunhado do Augusto. Daqui pode-se colher materiais que sirvam a uma crítica ao sectarismo dos concretistas, que em graus mais acentuados podem envolver a atribuição de um plano de doutrinação poética e esse tipo de veleidades. Deixo a cargo do leitor, desde já reputando como absurdas essas versões exageradas da tese do sectarismo sem, contudo, que deixe de reconhecer que se trata de algo próprio de qualquer movimento de vanguarda e que é prejudicial com muita facilidade.

Diálogo a dois é redundante. Mas se tomarmos como base que o poema fala da angústia e do isolamento, então não parece ser do tipo de redundância gratuita. Além do mais, o poeta fala consigo mesmo: ele se refere a um tal de Augusto, e me parece sólido deduzir que esse Augusto só pode ser ele, o de Campos. O Décio também usará o mesmo procedimento, de falar consigo, em alguns de seus poemas iniciais, inclusive chegando a resultados memoráveis (penso pelo menos no Decius infante). Não é, portanto, estranho que se insista na ideia de um diálogo se ele vira para si próprio? Afinal de contas o diálogo pressupõe pelo menos outra pessoa. Ou não? Bakhtin concebe a comunicação humana como sendo sempre algo dialógico. Mesmo que eu converse sozinho, ainda assim estou estabelecendo uma relação de diálogo com interlocutores não necessariamente presentes, mas que de algum modo jazem nas entranhas do meu discurso. Se uso certa expressão ou se construo a frase de tal modo, se erijo tais e tais argumentos, primeiro aquele e depois este, ou então se me valho do raciocínio perante algumas questões prévias, isso tudo demonstra que sempre estou me comunicando com outras pessoas, que minha composição discursiva é sempre direcionada para um outro que não precisa estar presente. Todas as conversas que já travei e ouvi na vida me fornecem um estoque enormíssimo de peças, estratégias e arranjos para que eu próprio crie meus discursos. É justamente este ato de zanzar por tal galeria interior, colocando umas passagens memoráveis na cesta enquanto torneios frásicos furtivamente entram em nosso bolso, que Bakhtin caracteriza como sendo a essência dialógica da linguagem humana.

É preciso se lembrar que a partir do momento em que Augusto parte de uma frase de Décio, uma frase que, diga-se de passagem, possui forte caráter poético pela paranomásia no início, pelo fato de grafar "angústia" em maiúsculo e pela metáfora; a partir disso, então estamos falando de um poema que parte de um mote alheio, espécie de composição poética extremamente antiga e de uso muito generalizado na poesia trovadoresca e na poesia portuguesa de medida velha. Ou seja: o poema não está sozinho. Nunca um poema está sozinho, claro, visto que podemos nos lembrar daquela célebre passagem da Kristeva (num texto em que ela justamente comenta o dialogismo bakhtiniano) onde a semanalista nos diz que todo texto é um mosaico de textos. Todavia, a partir do momento em que existe um mote, então a presença de outros textos, que às vezes se dá por vias subterrâneas e nem sempre fáceis de serem antevistas, embora a maior parte da vanguarda concretista tenha se dado justamente no sentido de escancarar e apontar para seu embasamento histórico; então tal presença se faz explícita, e o diálogo é mais fácil de ser percebido.

Um último aspecto que eu faria notar é que a etimologia da palavra "diálogo" (διάλογος, diálogos) parte de "dia-" (διά), que em grego significa "através de", e "logos" (λόγος), palavra, razão. Diálogo: através da palavra. Não seria precisamente este o modo com que o poeta vence a solidão do trabalho poético: através da palavra?

Não achei nenhum sentido específico para "leão de areia". O leão é um símbolo do vigor e da ferocidade, ao passo que a areia é um símbolo por excelência do transitório. Um leão de areia não parece ser algo muito durável. Agora: existe um motivo para a angústia ser um leão de areia? Existe uma assonância em A no verso que é certo modo subterrânea, se nos lembrarmos que a paranomásia entre "Angústia" e "Augusto" cria um forte timbre soturno, surgido da forma que o "U" tônico se impõe, alicerçado na proximidade das palavras e, claro, às sugestões que "Angústia" é capaz de dar. Logo depois teremos o A que faz parte do ditongo tônico de "leão" bem como o E em "areia". Ora: com exceção desse A tônico no ditongo de "leão", nós não temos nenhum outro A que se sobressaia no verso, e, no entanto, trata-se de uma vogal que se faz presente no verso praticamente todo, algo mais ou menos análogo à função que o E irá desempenhar na segunda metade, com o acento tônico de "esse" e no ditongo de "areia".

Quer dizer: o início do poema é soturno, mas ele não fica só aí. Parece ser um modo de indicar, portanto, que o fato da angústia ser um leão de areia é algo que possui uma força distinta do que o abatimento ligado à concepção de angústia parece indicar. "Angústia", etimologicamente, vem do latim angere e significa apertar, sufocar. Não será a primeira vez que o Augusto usará uma paranomásia com seu nome, bastando que se cite como exemplo os versos em que ele se vale da frase em latim Ad augusta per angusta (traduzindo: às coisas excelente por caminhos estreitos). Enfrentar a angústia vai requerer encarar a situação de frente, de maneira franca. Um diálogo consigo mesmo, quem sabe? Afinal de contas, "Augusto" e "leão" ocupam as posições tônicas do decassílabo sáfico do verso...

Os versos que irão predominar no poema serão os versos decassilábicos e dodecassilábicos. Em outros poemas da primeira fase o Augusto mostrará um certo apreço por versos assim, bastando que o leitor se lembre de um poema como O vivo ou Dodecassílabos. São versos de medida reconhecidamente nobre, que se encaixam a um andamento mais grave. No próximo verso teremos o complemento do que foi apresentado no verso inicial: o leão de areia "se abebera em tuas mãos de tuas mãos". O fato de que ele abebere na mão (acho o uso do verbo "abeberar" algo muito bonito, em específico porque estabelece uma conexão fônica com a assonância em E de metade do verso passado bem como uma rima parcial com "areia") é um modo de mostrar que aquele leão parece ser de algum modo domesticado. Mas observe: ele se abebera nas mãos do poeta, correto; mas se abebera não de água, e sim "de tuas mãos". Ora: abeberar é precisamente tomar água, alimentar-se, ingerir o sustento. Existe também o sentido figurado de retirar lições de algo, ensinamentos, de aprender. Enfim. Como abeberar das mãos do poeta? O poeta por acaso entrega as mãos para que o leão de areia as devore? Ou será que temos, nas mãos do poeta... outras mãos dele próprio, como se estas mãos tivessem se multiplicado? Afinal de contas, este segundo verso possui uma medida dodecassilábica, e a duplicação das mãos foi um procedimento que fez, portanto, com que o verso aumentasse a medida. É o mesmo procedimento que ocorrerá alguns versos depois. Não parece ser uma leitura implausível essa de que as mãos do poeta tenham se multiplicado ou coisa do tipo, visto que se coadunaria com o clima onírico do poema, onde a Angústia é um leão de areia que se abebera das mãos do poeta. Contudo, pode ser também que mãos adquiram aqui um caráter metafórico amplo, no sentido de que as mãos estão ligadas ao fazer, à manufatura, ao labor, e de tal modo que se o leão de areia, a Angústia, se abebera das mãos do poeta, então, por conseguinte, o poeta se prostra. Ele poderia dizer isto de maneira mais direta e patética, quem algo como "Oh dor, oh dor, resvalo-me!" O problema é que isto perderia não só a cadeia sonora que vai criando zonas consideráveis de irradiação fônica, como também perderia a metáfora selvagem do leão de areia que se abebera de forma, pressupomos, pacata, do instrumento essencial de trabalho do poeta. Sem contar, por fim, que para se construir um leão de areia se pressupõe o trabalho das mãos. Leões de areia não são construídos pelo correr do vento, a não ser que tenhamos uma sucessão de acasos inacreditável. Eles são desmanchados pelo vento.

No terceiro verso, de medida decassilábica, o poeta nos diz que esse leão "desdenha a fronte que lhe ofertas". O uso de "ofertar" mostra que o poeta trata de maneira dócil o leão. Ora: se o leão se abebera das mãos do poeta, então, como sugeri, isto indica que ele retira as forças físicas do eu lírico. Oferecer a fronte é um pouco distinto, pois diante da fronte costumamos pressupor a essência ou a maneira com que a pessoa se posta no mundo. Se o leão desdenha a fronte, então parece indicar que ele não quer esta essência ou este "revelar-se ao mundo", mas, sim, as forças físicas do poeta. Do mesmo modo, se considerarmos as metáforas como relativas à criação poética, abeberar da mão é um modo de tomar o lado laborioso da criação, visto que é a mão que dá termo aos pensamentos; por outro lado, a face poderia se ligar a um estado de espírito ou aos sentimentos que o poeta sente, mesmo porque quando alguém está alegre ou triste é pela fronte, pelo rosto que deduzimos tais estados.

O quarto verso, também de medida dodecassilábica, por sua vez, dá um verdadeiro nó na nossa cabeça, e a forma como as coisas vão se tornando pouco a pouco labirínticas parece figurar a maneira angustiosa com que o eu lírico se posiciona. Mais uma vez não é um procedimento muito alheio ao que o Augusto desenvolverá em outros poemas, e aqui posso citar novamente o caso de O Vivo. "Em tuas mãos de tuas mãos por tuas mãos". Está entre parêntesis. "Em tuas mãos" dá a entender uma certa docilidade. "de tuas mãos", por seu lado, mostra que seja lá o que o leão faz, ele faz das mãos do poeta. "por tuas mãos", noutra senda, apresenta uma preposição de inúmeros sentidos, desde "ao longo de" até relações de causa ou de benefício em favor de. Não acho que seja lícito ler as três expressões como oferecendo uma espécie de encadeamento. Me parece ser o caso, muito mais, de observarmos as três expressões como em separado, como que flutuando nas zonas semânticas do poema e apresentando três momentos distintos ou concomitantes, sucessivos ou apartados, de especificações a respeito de uma ação do leão de areia para com o poeta. E não só: as três expressões juntas criam uma certa completude, pois mostram todos os lados com que as mãos do poeta se relacionam ao ato do leão de areia. Uma sujeição completa, podemos dizer.

Ora: chegar até o nervo dos olhos é chegar ao âmago da percepção do poeta. A mão é também uma das nossas conexões mais diretas com o mundo exterior, e que o leão comece pelas mãos e pela fronte do poeta e vá se internalizando, é um movimento digno de nota. Por leão de areia podemos presumir uma estátua, e pelo fato de que seja feito de areia podemos presumir uma matéria fina que pode se adentrar no meio dos objetos e talvez até mesmo dos corpos, a depender do tamanho dos orifícios.

Que Morto é este do verso seguinte? Em O Vivo o poeta começa com: "Não queiras ser mais vivo do que és morto". Na primeira parte do poema O rei menos o reino, que daria título ao livro homônimo, Augusto começa falando da Angústia que rói um "não de pedra" e "Digere sem saber o braço esquerdo". Um pouco depois: "Este é o rei e este é o reino e eu sou ambos, / Soberano de mim", no que passa por um verso de forte poder paranomásico ("Solitário sem sol ou solo em guerra": Augusto retomaria o início deste verso na sua tradução para o Canto I do Inferno da Divina Comédia, especificamente o verso 3) e termina com "Comigo e contra mim e entre meus dedos." A imagem do morto é uma imagem com certa recorrência na poesia inicial do Augusto. Acho sim que eu defenderia também que ela continuaria em poemas posteriores. Sem dúvidas extrapola o que um texto despretensioso como o meu tem a oferecer, uma vez que demandaria análises atentas de outros poemas. Mas não acho, porém, que o leitor que não tenha acesso fácil a outros poemas do poeta esteja impedido de entender que o morto a que Diálogo a dois se refere é uma figura inerte, um morto nem tanto fisicamente mas sim pelo fato de que se prostra e deixa a vida escapar pelos dedos. É bem possível, até, que a figura do morto na poesia do Augusto seja a figura de quem dá um passo além e chega a ponto de execrar a vida, construindo barreiras que a impeçam de adentrarem em sua carne.

Ora: a frase se questiona se a Angústia, esse leão de areia, "É o Morto que se fecha em tua pele". Se, como dito, a forma com que o eu lírico se relaciona com o leão de areia é uma forma que em certos momentos denota uma desistência e, em outros, denota um fracasso, ao mesmo tempo em que se faz seguir de uma corrosão total, então me parece que, dentro do que a figura do Morto representa nos poemas iniciais do Augusto (claro que isso tudo de maneira muitíssimo esquemática), me parece que a resposta é positiva. A Angústia é, precisamente, esse Morto. Bate, mais uma vez, com o que costumamos conceber a respeito da angústia, ou seja, uma maneira de se trancafiar algo de podre conosco, como se carregássemos nosso cadáver, coagidos, quem sabe, por um leão de areia que, uma vez que foi identificado como a própria Angústia, pressupõe-se, ainda, ter sido o responsável (leia-se: o algoz) por aquele morto dentro da nossa pele.

A sonoridade destes dois últimos versos comentados é toda ela compassada, no sentido de que temos pares agradáveis de assonâncias, por exemplo entre "há" e "chegar", um pouquinho (quase nada, reconheço) entre o E tônico de "paciente" e de "nervo", entre "olhos" e "Morto" e, mais uma vez um pouquinho, entre "fecha" e "pele". Acho que é uma transição minimamente hábil para com o último parêntesis, que trazia um embaralhamento de mãos que nos confundia nesse labirinto de areia. O fato é que, após, teremos uma sequência de perguntas:

             O Expulso do teu corpo no teu corpo?
             A Pedra que se rompe dos teus pulsos?
             A Areia areia apenas mais o vento?

Onde, agora, a sonoridade é muito mais explícita, em específico pela aliteração em P das duas perguntas de cima e pela assonância em A da última. Ora: o expulso do corpo no próprio corpo é um dejeto. Só que um dejeto que não foi expelido para fora. A ideia do Morto já acarretava consigo essa ideia da podridão. Só que, como dito, se o expulso não foi excretado, ele pode até mesmo fazer mal. Qualquer coisa de podre que nós não joguemos para fora, é uma ameaça que não foi de todo dizimada. Ela pode gerar outras pelo fato mesmo da putrefação. E vou até um pouco além: se a Angústia se identifica, aqui na base do indagamento, com um Expulso, e se este foi "Expulso do teu corpo" (embora, já o disse, "no teu corpo", como se tivesse sido apenas varrido pra debaixo do tapete), então pressupomos um momento de bravura do eu lírico pelo simples fato de ter expulsado essa coisa que se identifica com a angústia. O signo de ferocidade representado pelo leão de areia traz consigo uma ideia de embate, e outra não é a sensação que fica quando o leitor encara a relação conturbada do leão de areia com o eu lírico (que, se por um lado abebera nas mãos do poeta, por outro desdenha a fronte ofertada) e com algumas amarrações sintáticas de notável hermetismo (em específico "Em tuas mãos de tuas mãos por tuas mãos"). Isto certamente iria contra o que aventei antes, do leão aparentar em algumas passagens ser domesticado, no que faço notar, todavia, que esta faceta do leão não é predominante e que ela parece mudar, no sentido de que o leão como que se tornaria mais feroz no correr dos versos. Neste sentido inclusive aponto que o que se verá nesta pergunta e na próxima é que existe uma força um pouco maior na escolha das imagens que só se viu com tanta clareza no fato de termos um leão de areia. A ideia, por exemplo, de se abeberar ou de desdenhar, são ideias que, embora tragam consigo algo da ferocidade do leão de areia, se abrandam pelo simples uso de um verbo como "abeberar", que traz conotações brandas, bem como pelo fato do leão de areia desdenhar a fronta que lhe foi ofertada. Por outra senda, algo ter sido expulso do corpo é digno de nota pela tentativa, o que, num contexto angustioso, não deixa de representar pelo menos um esforço, muito embora malogrado pelo fato da angústia enquanto Expulso ainda assim residir no corpo.

Mas aí temos a Pedra "que se rompe dos teus pulsos". Obviamente, diante do que comentei, o que há pra ser notado é o fato da pedra romper do pulso. Romper. Um verbo forte. Todavia, se por um lado sabemos que a pedra será símbolo por excelência de uma tendência construtivista que a poesia brasileira em questão de alguns anos (quiçá meses) desenvolveria, à guisa do célebre projeto cabralino (aqui eu até faço notar que Psicologia da composição é de 47 e O rei menos o reino é de 51), não custa lembrar que a pedra é uma imagem essencialmente angustiosa na poesia de Drummond, bastando que se observe o obstáculo transponível-intransponível que ela representa no célebre poema, sem exclusão, claro, de aparições igualmente notáveis, por exemplo a estrada de Minas pedregosa no contexto dA máquina do mundo. Me parece, aqui, que é neste sentido que Augusto usa a ideia da pedra. Afinal de contas, a pedra romper o pulso é uma imagem violenta. É só imaginar. Não é algo bom, ainda mais se considerarmos que, como dito, no contexto da imagética do Morto e após uma pergunta envolvendo um expulso que ainda assim residia nas cercanias, podemos associar a pedra com algo interno, algo intrínseco ao corpo do poeta que rompeu e escapuliu.

Depois teremos uma expressão como "Areia areia". É como se a primeira "Areia", grafada em maiúsculo, fosse uma espécie de símbolo. Do quê? Sugeri antes do tempo, do transitório, mas podemos pensar também do desgaste. Ou, ainda, se considerarmos que o leão é de areia, e que esse leão é a Angústia, me parece que este último sentido, do corroimento e do abatimento, se sobressai. O fato é que essa Areia se segue de "areia", em minúscula, desta vez designando a areia propriamente dita, sem carga simbólica. O sentido é: "A Areia que é apenas areia mais o vento". Ora: o vento é, como qualquer leitor da poesia portuguesa quinhentista sabe, um símbolo por excelência da vanidade. Se essa Areia, que liguei à Angústia propriamente dita graças ao leão, é apenas a areia mais o vento, isto quer dizer que o vento desmancha a areia e, quem sabe, desmanche a Angústia. Isto não seria algo bom? Digo: suponhamos que o vento passe pelo leão de areia. Eu não disse antes que o leão de areia é, precisamente, desmanchado pelo vento? Ora pois. O que existe de ruim numa ideia dessas? Por quê o poeta liga o desmanche do leão de areia, que é símbolo da Angústia, à própria Angústia, fechando o círculo, atando as pontas? Pois se o vento passa pela Areia que é areia apenas, e, presumimos, desmancha o leão de areia, o que sobra é nada. Um vazio. Todavia, aqui entra o xis da questão: não seria este, precisamente, o conteúdo terrível? De que, por trás da Angústia, não exista nada, à maneira de um rei menos o reino? Quer dizer: o que é um rei menos um reino? É um nada. Esta é a parte terrível do poema. O Morto também é um nada. O Expulso, depois de expulso, deixa um vazio. Tudo bem que ele foi expulso para outra região do corpo, mas ele deixou um vazio, e este é o fato. Do mesmo modo, se a pedra rompe os pulsos, é sinal de que ela vivia dentro do poeta. O processo é doloroso, mas o que vem depois? O nada, o nada.

             A Angústia, Pignatari, Oleiro de Ouro,
             Esse leão de areia digo este leão

"Oleiro de Ouro" se refere a Pignatari ou à Angústia? É meio complicado dizer, mas eu votaria na segunda opção, ainda mais se considerarmos que a ideia do poeta manejando joias preciosas com esmero é uma imagem que remete pelo menos ao ourives de Bilac. A expressão parece um pouco gratuita no contexto do poema, e confesso que minha impressão é por aí mesmo, embora eu note que ela serve para dois propósitos pelo menos: 1) ela muda o eixo do poema, visto que, agora, estamos numa nova estrofe onde o poeta se dirige diretamente ao autor da frase que lhe serviu de mote, como se, a princípio, ele estivesse apenas investigando os significados daquele termo que lhe foi proposto; e 2) uma vez que ela se relaciona de maneira direta com o mote, repetindo-o em parte para que o responda e nem tanto o sonde (e neste sentido seguindo de perto uma das estruturas mais comuns de poemas com mote, que é a de repetir esse mesmo mote em cada estrofe), então se trata de uma expressão que corresponde à forte carga sonora de "Angústia, Augusto", no início do poema, não só pela proximidade fônica interna que "Oleiro de Ouro" carrega consigo mas também pela posição que ocupa no início desta estrofe, onde a letra O aparece de maneira subsidiária, apenas, em "leão". Trocando em miúdos, cria uma espécie de fenda, um interstício mais concentrado, e neste sentido se pode argumentar que de gratuito possui pouco, visto que aprofunda a pausa apresentada pelo vocativo "Pignatari" e cria um foco de energia sonora que, como podemos perceber pela leitura do poema, é uma de suas molas mestras, ou seja, zonas com sonoridades privilegiadas.

Aqui o leão não é mais de areia: tanto que o poeta se corrige ("digo"). Resultado, quem sabe, do vento que passou pela "Areia areia apenas"? Acho que sim.

             (Ah! O longo olhar sereno em que nos empenhamos,
             Que é como se eu me estrangulasse com os olhos)

Dá pra ficar um pouco perplexo numa hora dessas. "O longo olhar sereno em que nos empenhamos"... Sim, de fato: o verso aqui é um de doze sílabas (o leitor deve fazer uma elisão entre "Ah!" e "O", absolutamente corriqueira). Ele parece ser até mesmo um pouco mais espichado que o normal, impressão que me parece ser decorrente da rima interna entre "Ah!" e "olhar", pela assonância em A da segunda metade do primeiro verso em diante e por algumas correspondências fônicas ali no meio, por exemplo o "-en-" de "sereno" que vai de encontro a "em" e ao "em-" de "empenhamos". Depois, no verso seguinte, teremos "estrangulasse", uma palavra com um tamanho considerável (com a elisão do "me" ela ocupa quatro sílabas, ou seja, um terço do verso) e teremos, no final, a necessidade de fazer um hiato em "com os" a fim de que a métrica se encaixe, como se, portanto, depois do "estrangulasse" devêssemos reduzir um pouco a marcha da leitura.

O que incomoda é: como assim "olhar sereno"? O poema não fala da Angústia?

Sim, fala, e começa comparando a angústia a um leão de areia. A questão é que, como vimos, existe uma relação de abatimento diante daquele leão de areia. Se o leão é um símbolo da ferocidade, ele deveria estimular o temor, o instinto de sobrevivência. No entanto, o eu lírico se prostra, ele oferta uma fronte que é desdenhada pelo leão. Claro que neste último sentido faltou apontar para a interpretação, que me parece também muito plausível, de que o eu lírico trata o leão de areia como um deus, afinal de contas esse leão seria uma estátua e, de todo modo, se o eu lírico oferta a fronte e o leão desdenha, esta parece ser uma relação certo modo imaginável entre um crente e o deus que ele adore. Seja como for, tivemos, depois, rompantes que, como sugeri, levam o poema a uma conclusão niilista. O que sobra é o nada, e aí talvez esteja a grande ameaça que as malhas do poema escondem. Seguimos com um reinício, que mimetiza de maneira hábil o início da primeira estrofe (instituindo um segundo foco poderoso de sons), que reestabelece o diálogo com o mote e que, pelo jeito, traz uma situação ainda mais apática. Pois veja que agora o leão não é mais de areia. Ele é um leão. Não pode ser desfeito pelo vento. E no entanto, logo após o eu lírico se corrigir, nos vemos diante deste parêntesis que fala de um "longo olhar sereno em que nos empenhamos". Quer dizer: não é um olhar sereno simplesmente lançado. Há que ser feito um empenho. Você insiste naquele olhar sereno, como se ele fosse difícil, árduo. Árduo, aliás, a ponto do poeta confessar, logo depois, "Que é como se eu me estrangulasse com os olhos". Não parece ser assim? Digo: se tenho um quadro depressivo, que eu resolva lançar um longo olhar sereno, apesar das aparências, pressupõe um embate interior muito grande com aquela Angústia que carrego dentro de mim. O diálogo a dois a que o título alude, ao que tudo indica, é esse diálogo entre o eu lírico e seu íntimo, entre o que no eu lírico é lúcido e o que nele é morto, é expulso, é angustioso.

             De sangue:
             Eu mesmo, além do espelho.

Agora sabemos sim do que é feito o leão. Ele é um leão de sangue. Ou seja, o leão se interiorizou totalmente no poeta. Não foi este o movimento realizado ao longo do poema: o leão de areia foi se emaranhando nas malhas anímicas do eu lírico? Ele foi criando espaço, foi arranjando seu terreno. Tentou-se expulsá-lo, mas ele continuou ali.

"Eu mesmo, além do espelho". Vejo alguns sentidos: suponhamos que estou diante do espelho. O que vejo ali no espelho? Digo: o que consta no espelho? Ora: eu mesmo. Logo, o que é que está além do espelho? Eu mesmo, de carne e osso, de corpo e alma. Não mais um reflexo externo, uma casca, um contorno, uma determinada disposição dos feixes de luz, mas essa pessoa aqui, que guarda seus Mortos, seus Expulsos, seus leões de sangue. Pois bem. Daria pra ler também num sentido análogo ao de quando dizemos que, na festa quinta passada, eu e o Juquinha, além do Zezinho, comparecemos. Logo, o que é o leão de sangue que o poeta busca definir a partir dos dois pontos? É ele próprio, mais ("além do") espelho.

Acho uma leitura um pouco fraca, mas, de todo modo, nem é isso: coloquei-a em cima da mesa à maneira de quem esvazia os bolsos. O ponto que faço é: posso ler também no sentido de que existiria algo além daquele espelho, algo além do jogo entre corpo e reflexo. Uma coisa oculta, uma coisa que não se vê, uma coisa íntima. Ora: o diálogo a dois é, de maneira irônica, o diálogo entre o poeta e ele próprio, entre o poeta e sua matéria morta, aquilo que a Angústia nele próprio massacrou. Logo, a Angústia é essa coisa no poeta que o espelho não mostra. Por isso o poeta estabeleceu um diálogo a dois: para tentar entender e para perscrutar. Encarar de frente, pode-se dizer.

Não é fácil. O leão se internaliza, ele é de sangue, o sangue, aqui, entendido não só no sentido de que seria uma espécie de irmão íntimo do poeta, mas também no sentido de que é um leão que o devora, apesar daquela paz e daquela apatia em tantos momentos do poema apresentada. Como reconhecê-lo, como saber da Angústia "além do espelho"? Qualquer um sabe que a verdade mais dolorosa a respeito da depressão é que, por mais amorosos e atentos que sejamos, isto pode não impedir que um próximo, por exemplo, se mate ou mergulhe fundo nestas águas tristes. Não só: muitas vezes quando percebemos, nós mesmos já estamos a alguns passos apenas do estopim. É como se não nos conhecêssemos. É como se déssemos o espelho como único instrumento capaz de nos deslindar, de revelar quem de fato somos e que fantasmas guardamos conosco. Um diálogo a dois, se quisermos tirar uma pílula de autoajuda do poema do Augusto, é mais importante do que se imagina não por pressupor outra pessoa na nossa frente, anuindo com a cabeça e de vez em quando sorrindo. Ele precisa ser feito mesmo quando estivermos sozinhos.