O que fazer com um livro de estreia?

Nada impede que alguém estreie com idade avançada. No geral nós imaginamos pessoas muito jovens, mas é possível que alguém publique seu primeiro livro só depois dos quarenta. Como hoje as possibilidades de publicação são muito simples, acho difícil que alguém espere isso tudo, mas de todo modo nunca se sabe. Você pode passar a vida toda como um respeitável homem de negócios e só no final da vida, depois daquela situação dramática de um câncer em fase terminal, resolver dar vazão a toda a poesia que pelo jeito guardava dentro de si.

Com os mais jovens costuma-se amolecer um pouco pois afinal de contas eles podem melhorar, eles podem regar as sementinhas que o livro de estreia plantou ou podem simplesmente descartar aquilo, uma vez que possuem tempo. O problema é: todo mundo sempre tem e terá tempo. Você pode escrever uma literatura bem desprezível e, do nada, dar a doida e resolver experimentar um tiquinho, se brincar até expelindo algo com certa qualidade. Do mesmo modo, embora seja possível que você estreie só depois dos quarenta, como dito, isso não quer dizer que começou a escrever com trinta e nove. Se você passou uma vida toda escrevendo, mas apagando ou escondendo graças a um mecanismo de auto-censura, então talvez você não seja bem um estrante. É meio caricato dizermos que quem estreia é só quem manda imprimir cem exemplares de um conjuntinho monocromático de brochuras. Pode ser que você tenha um monte de poemas esparsos em revistas e nunca tenha lhe apetecido publicar. Improvável que isso ocorra pois o meio literário ainda tem e se brincar por um bom tempo ainda terá uma fixação sexual com o tal do livro diagramado e impresso, de modo que mesmo que sua poesia apresente uma qualidade considerável, se ela não for reunida em livro é bem possível que você seja mais ignorado até do que o outro ali, medíocre mas proprietário de cinco ISBN's.

Outro motivo para que amoleçamos diante de um livro de estreia, de todo modo, é que como o poeta está começando, então é de se imaginar que ele não está lá muito acostumado com os corcéis indomados da poesia, e pode, de todo modo, melhorar, pois pressupomos que com o tempo todo mundo melhora. Nada impede, claro, que o poeta piore, e me parece até mesmo que o padrão da raça poética é o de depois de certa fase descer ladeira abaixo. O Drummond que vem depois do Lição de coisas já não é o mesmo, e isso sem nem contar o que vem depois de Boitempo, que é uma coisa que pra mim vai ficando cada vez mais intragável. O mesmo com o Cabral depois de Museu de tudo (e olhe lá). Daria pra seguir com outros exemplos (Whitman, Gullar), mas acho que de um modo geral é difícil que um poeta chegue ao fim da vida e consiga escrever obras que apresentem o mesmo frescor que seus anos mais bombásticos (Goethe, Eliot). Uma vez eu vi atribuírem essa frase ao Bandeira, mas não sei bem se é dele: dizia que quando você é jovem, você luta pra conseguir um estilo e, quando é velho, pra se livrar dele. Deve ser bem por aí mesmo.

Seguindo este caminho, nada impede que você escreva um ótimo livro de estreia. No geral não é bem assim que ocorre: a primeira, primeira, primeiríssima publicação de muitos poetas costuma ser renegada por eles próprios, um tipo de livro que só depois de morto é que os herdeiros autorizam a reedição. Então é difícil dizer até que ponto isso de você colocar um livro de estreia numa zona mais doce de seu coração de crítico seja uma boa ideia, mesmo porque o poeta não necessariamente melhora com o tempo. Ao que tudo indica é razoável dizer que sim. Mas só. Disse que parece existir um ápice na carreira do poeta médio, depois do qual vem a decadência, mas é possível que esse ápice se localize precisamente nos primeiros livros, do mesmo modo que pode se localizar nos últimos.

A razão de se colocar livros de estreia numa zona mais ou menos isenta do ácido estomacal da crítica é muito no sentido de que como é um poeta novo que chega no pedaço, pode ser que ele exija um tipo de consideração menos viciada de nossa parte, no sentido de que se leio um novo livro seja lá de quem for, eu leio com um olho naquele e o outro nos restantes. Pode ser que no âmbito da literatura contemporânea isto nem sempre ocorra assim, posto que se um poeta qualquer lançar um livro, nada impede que aquele livro seja meu primeiro contato com sua obra, de modo que eu também estaria lançando um olhar virgem, por assim dizer, a seus textos. E se é assim no âmbito da literatura contemporânea, parece ser só o que importa, pois é justamente no âmbito da literatura contemporânea que o problema do como se postar diante de um livro de estreia, seja a resposta positiva (é preciso uma forma diferente) ou negativa (o jeitão de sempre), é uma questão própria do crítico que julga os livros que estão sendo lançados neste instante ou no mínimo há pouco tempo atrás.

O problema é que, se ele já lançou outros antes, então mesmo que aquele seja um olhar virgem, bastar-me-á ler o que veio antes e daí comparar. Nem sempre isso é algo tão simples pois como muitas vezes a tiragem de livros de poesia contemporânea é baixa, então é comum que um livro lançado há dez anos atrás seja simplesmente impossível de ser achado, seja porque o poeta já não tem mais nenhum exemplar dando sopa, seja porque a editora que o lançou faliu, seja porque os leitores que compraram pelo jeito ainda não se cansaram daquilo ou não sofreram nenhum revés econômico. Assim sendo, a possibilidade de lançar um olhar virgem para o poeta contemporâneo é comum, afinal de contas não dá pra comprar a obra completa de todo mundo que coloca um livro pra venda. O problema é que se eu leio na biografia que aquele cara tem outros quinze publicados, eu pressuponho certas coisas, e, de todo modo, existe uma possibilidade de que eu compre esses quinze ou alguns deles caso queira uma leitura mais embasada. E ainda que eu não o faça, ou ainda que eu simplesmente não consiga fazê-lo, é um poeta com experiência, de modo que, como dito, eu pressuponho certas coisas. É um ponto importante, esse.

Agora a coisa muda de figura com o poeta estreante. Pois pode ser que ele tenha lançado um livro quando jovem inconsequente e o tenha renegado à maneira do que o Gullar fez com o seu, de modo que se eu pegasse A luta corporal para ler, mesmo que eu soubesse que o poeta havia lançado alguns anos antes um tal de Um pouco acima do chão, eu de todo modo dificilmente teria acesso, terminando, por fim, no elas por elas; enfim: eu pego o livro do estreante que nunca publicou nadica de nada na vida e é só. Esse fim de linha geralmente é preenchido com o discurso das promessas, visto ser comum que o crítico desenvolva aquela atividade lúdica da aposta em cavalos. Se em doses terapêuticas, pode até ser agradável.

Olhar para um livro de estreia com olhos diferentes não parece uma ideia ruim. De fato, a intuição diz que se trata de um exagero a exigência de uma magnum opus por parte de quem, segundo a biografia padronizada na orelha, começa sua estrada com aquele livro. Ao mesmo tempo, parece razoável pedir um mínimo de decência, digamos assim, afinal de contas árvores foram serradas pra dar vida àquilo. Embora minha impressão seja a de que os poetas de um modo geral costumam incorrer em estreias catastróficas com mais facilidade que prosadores, quem sabe pelo fato de que poemas são um tipo de produção muito comum na adolescência (onde qualquer impulso externo faz com que você se considere o novo poeta maldito do quadrante) e pelo fato de que um livro de poemas é muito mais rápido de escrever que um livro de prosa; apesar desta minha impressão, um livro é coisa séria e acho difícil (no fundo quero acreditar) que alguém resolva publicar um livro de qualquer jeito, sem que passe por sua cabeça que, como é um livro, então um mínimo de seleção e senso crítico serão demandados. Não é esta, aliás, a principal lição que se aprende com o tempo: a ter um senso de ridículo? Pode até ser que no final da vida o poeta amigo desatarraxe os parafusos da obra poética, mas, como é estreante e como tem o fantasma do editor maléfico pairando sobre sua cabeça, fazer bonito parece ser uma exigência muito mais urgente. Ou fazer diferente. Ou fazer o que tem que ser feito. Enfim. Quando se é um estreante, você parece que se relaciona de um jeito mais angustioso com o editor maléfico, seja no sentido de se curvar perante os ditames editoriais, seja no sentido de montar num Rocinante da vida e bater de frente contra os influxos capetalistas.

De todo modo, não exigir obras primas de estreantes não quer dizer que deixo de ser rigoroso. Aliás, isso do rigor crítico de uns tempos pra cá tem se revelado pra mim como um assunto meio mal resolvido. Afinal de contas posso não exigir uma obra prima, mas posso exigir um livro bem escrito. Um livro bem feito. Um livro bom. Existem muitas gradações possíveis. E diria até mais: se incorro em eufemismos pra dizer que o livro é ruim ou mesmo se mitigo o texto com ressalvas quanto à idade do poeta, isto nem sempre quer dizer que deixei de ser rigoroso ou que estou passando a mão na cabeça. Existem outras formas de vestir a fantasia de crítico linha dura sem que, para tanto, você crie variações demolidoras de insultos lançados ao vento. É bem provável que o que se exige do crítico diante de um livro de estreia não é que ele amoleça, mas, sim, que encontre novas maneiras de exigência diante daquela obra e, principalmente, diante de si mesmo. De minha parte, por hora estou de acordo quanto a isto.