O fiasco da poesia concreta?

Saiu essa semana, na edição 2171 do jornal goianiense Opção, um texto a respeito do fiasco da poesia concreta. É um texto que possui falhas a meu ver evidentes demais, além de fazer uma leitura pra lá de rasa do que foi de fato o concretismo. Creio que não deve ser espanto para ninguém que sou um entusiasta da poesia concreta tanto em relação a suas propostas e embasamento teórico, quanto em relação a sua prática poética, o que não implica dizer que eu seja, por conseguinte, uma espécie de amendobobo que bata palmas pra tudo o que os caras tenham feito. Meu propósito aqui é não o de atacar feito um cão raivoso e sim o de explicitar minhas discordâncias. Enfim.

Inútil dizer que não conheço nada da produção intelectual e artística do articulista.  Pesquisei e vi que ele possui alguns vídeos e textos publicados em outros sites, num deles, uma curta fala seguida de uma entrevista, defendendo uma opinião que me agradou: qual seja, a de que ao se falar sobre poesia contemporânea é preciso fugir dos extremismos de se ler apenas poesia passadista ou vanguardista, ou então de achar que a boa poesia só é feita em versos livres ou em sonetos, como se a poesia fosse necessariamente uma questão de "Ou isto ou aquilo" (verso da Cecília citado na entrevista). Da sua poesia, por sua vez, eu realmente gostei de Platão e acho que alguns de seus haikais possuem um sabor genuíno, algo que revelam que se trata de um leitor sem dúvidas sensível, por exemplo em "chuva verde / sobre serra negra / pirilampos" ou "noite escura / o voo da coruja / QUE FRIO": note como em ambos conseguimos sentir a paisagem quase que intacta e até mesmo uma sugestão acurada da época do ano.

Já quanto ao texto publicado, vamos por partes.

Apesar de também reconhecer que a poesia da chamada geração de 30 foi uma poesia de altíssimo nível, há o que se questionar a respeito da classificação de um período literário como siglo del oro de nossa poesia embasada no fato de que grandes poetas começaram a publicar nesse lapso. Os livros de estreia de gente como Drummond, Cecilia ou Murilo são notáveis. Sim, é correto. O problema não é esse. O problema é que depois eles também lançariam coisas notáveis. Já no âmbito da poesia da geração de 45, por exemplo (época que o articulista caracteriza de maneira hábil e concisa), teremos livros do quilate de Claro enigma, Romanceiro da inconfidência e Invenção de Orfeu. Ora: são livros que apresentam uma mudança na obra desses grandes autores, e sem muitas dificuldades poderíamos até mesmo sugerir que é como se tivessem ressurgido das cinzas, ainda mais se considerarmos que entre o Drummond de estreia e o Drummond de Claro enigma, teremos mudanças drásticas que envolvem até mesmo uma poesia de forte cunho social. Do mesmo modo, se fôssemos partir do critério proposto, então não sei até que ponto poderíamos chegar com tanta facilidade à tese da ruptura entre os concretistas e a geração de 45, pois, embora saibamos que aqueles manteriam uma posição crítica e não raro ácida (muitas vezes injusta, é importante reconhecer) em relação aos últimos, por outro lado não se pode olvidar que os irmãos Campos e o Décio foram a princípio batizados de Novíssimos, que tiveram alguns de seus poemas publicados em revistas chefiadas por grandes nomes da geração de 45 e que, apesar da ruptura posterior, mantiveram pontos de contato com a prática de predecessores como Péricles Eugênio da Silva Ramos, muitas vezes reconhecido mais por sua atuação como tradutor e crítico do que como poeta.

Não obstante, a princípio também me parece que só raramente um ou outro poeta que começou nessa época tenha chegado depois a um grau de refinamento capaz de se equiparar ao dos livros antes citados (um exemplo seria o de Afonso Félix de Sousa na sequência de sonetos Íntima parábola). O articulista cita nomes como Joaquim Cardoso ou Carlos Pena Filho para escudar sua tese de que existiram sim alguns autores notáveis, mas nada de mais. Aqui eu já apresento uma certa divergência, afinal de contas estou muito longe de chamar um poeta como Carlos Pena Filho de grande ou qualquer coisa do tipo. Não sei se destacaria, do autor, muita coisa além do soneto Desmantelo azul, que realmente me parece muito bonito. Diria, até, que se alguém é capaz de considerar este soneto um poema legal, então me parece meio lógico exigir que essa pessoa tenha um grau de tolerância um pouquinho maior a ponto de no mínimo aplicar parte dessa boa vontade na leitura de um poema concreto.

Logo depois é que os problemas começam a surgir. O articulista cita o teste do tempo como um teste necessário e válido para auferir a qualidade de uma obra. Sem dúvidas o teste do tempo é um teste que consegue transmitir certa segurança e que possui certa consistência (pelo menos se considerado de maneira rigorosa por quem busca aplicá-lo), embora daí não se deduza que seja perfeito. Existem críticas pesadas ao teste do tempo, entre elas a de que o teste do tempo privilegia os padrões do gosto de determinada época e não os de épocas passadas. Isto por óbvio nos leva à contra-resposta de que o autor que consegue vencer estes vários padrões de gosto é o grande autor, mas as coisas nem sempre funcionam assim. Pode ser que um autor até então tenha resistido ao teste do tempo de forma notável, mas, diante de uma mudança dos padrões de gosto considerável, ele venha a sucumbir. Quem garante que com os autores que hoje apreciamos não ocorra o mesmo? Se, supondo que eu pudesse viajar no tempo e ver que livros o pessoal daqui a quinhentos anos irá canonizar, eu não posso, diante da constatação de que alguns autores que hoje nós apreciamos serão desprezados séculos depois, dizer de maneira desdenhosa que os leitores futuros não leem direito ou que são uns desmiolados. O argumento do teste do tempo, repito, precisa ser considerado de maneira rigorosa por quem busca aplicá-lo. Se incorro nestes resmungos, estou deixando de aplicar o teste do tempo para aplicar outro critério.

Do mesmo modo, ele com frequência ignora que a obra de alguns autores não foi uma constante, mas apresentou altos e baixos. Virgílio já não parece ser um autor tão canônico assim, pelo menos se considerarmos o número de leituras ou traduções que hoje são feitas de sua obra. Com Ovídio a mesma coisa. E Lucano, que chegou até mesmo a fazer parte de la bella scola de Dante? Nem se fala. Aliás, o próprio Dante cabe como exemplo, visto que enfrentou um longo período de ostracismo que só teve fim no século XIX. Pois veja que não falo daquele tipo de autoridade morta, de se tornar um autor que de vez em vez surge nas notas de rodapé. Quem de nós já leu as Geórgicas? As Metamorfoses, na íntegra? Vencer o tempo e ser lido por uns poucos eleitos é o tipo de coisa que, por princípio, faz com que o teste do tempo dependa de outros critérios que a simples persistência temporal. Se Virgílio, Ovídio e Lucano são lidos apenas por alguns eleitos, para o teste do tempo cruamente considerado eles não diferem muito de um nome secundário da poesia romana que também é lido por alguns eleitos, se brincar os mesmos que vão atrás deles três. Sei que posso estar simplificando as coisas, em específico se ponderarmos que talvez a ideia de se evocar o teste do tempo só raramente é feita de forma desacompanhada, isto é, no geral o que se faz é celebrar alguns valores literários como atemporais e, depois, dizer que as obras que corporificam tais valores são as que sobrevivem ao tempo de maneira mais legítima. É uma nova maneira de conceber o teste do tempo, mas de tal modo que o teste do tempo, em si, deixa de ser a mola mestra, sendo na verdade até mesmo uma mola subsidiária, visto que, como uma ideia assim sugere, autores podem vencer o correr das décadas mas de maneira ilegítima. Sob mesmo diapasão, faço notar que as coisas ainda dependeriam de que valores são estes que norteariam esta nova concepção, afinal de contas, como sugerido antes, o critério da invenção, adotado pelos concretistas, é um critério que pode ser perfeitamente acoplado a esta nova configuração do teste do tempo.

Além disso, pode-se argumentar que o teste do tempo privilegia línguas hegemônicas: dificilmente um português passará no teste do tempo se considerarmos outras culturas que não a lusófona. Pode-se repartir a mesma ideia por zonas geográficas ou zonas mercadológicas menores: no contexto da literatura brasileira, dificilmente um autor do Rio Grande do Norte passará no teste do tempo se sua produção não se atrelar ao pólo editorial no sudeste do país. Por fim, diz-se também que o teste do tempo não é o único aplicável, visto que existem outros que podem ser tão interessantes quanto, por exemplo o de avaliar a inventividade linguística de uma obra, onde mesmo aqueles textos que aparentemente são refratários ao teste do tempo (vide o caso dos poemas satíricos, que dependem de informações contextuais, o que certamente cria empecilhos para sua ampla difusão requerida pela lógica do teste do tempo, coisa que, por óbvio, não nos leva à conclusão de que se tratam de poemas menores) podem receber leituras dignas sem que uma série de ressalvas seja feita, visto que para o critério da inventividade linguística um poema satírico pode oferecer contribuições tão válidas quanto as de um poema épico.

Mas este não é o único problema do texto. Certo, suponhamos que o teste do tempo é o único. Não creio que o autor tenha dado a entendê-lo, mas, de todo modo, sua conclusão é de que a poesia concreta (e quanto a isto o autor diz não haver dúvidas) "é um movimento completamente datado e já superado", visto que "elegeu o puro e simples ludismo verbal como principal brincadeira". Só aqui eu já questiono se é realmente algo a que não restam dúvidas, da maneira como o articulista expôs. E não me refiro nem tanto à falta de sentido da frase referente ao ludismo verbal, pois, de fato, eleger o ludismo verbal como principal brincadeira parece dar a entender que outros poetas elegem outras coisas como brincadeira (e aqui se poderia citar os livros de estreia de parte da geração de 30). Uma maneira infeliz de colocar as ideias, visto que o que o articulista diz é que se a poesia concreta se limitou a este ludismo verbal, a esta brincadeira, existem concepções muito mais sérias do fenômeno poético, no que ele desfia o rosário de nomes à nossa frente. Um rosário meio ridículo em algumas partes, pois se o leitor realmente estiver disposto a considerar Olavo de Carvalho ou Bruno Tolentino como nomes que de algum modo se equiparem a Otto Maria Carpeaux ou Benedetto Croce, então o leitor está disposto a incluir mais gente nesse meio. Ora: a poesia concreta também recebeu leituras favoráveis de críticos notáveis que destacam sua contribuição à história das formas poéticas. Podemos citar nomes como Marjorie Perloff ou Flora Süssekind a este respeito, ou, se quisermos citar outros que tenham dialogado de maneira indireta com a poesia concreta (não necessariamente falando da poesia, mas expondo ideias afins), poderíamos ficar com Roman Jakobson ou Umberto Eco.

O que incomoda na formulação feita pelo articulista é que, ora essa, um poeta como Bruno Tolentino não parece ter resistido ao teste do tempo de forma adequada. E aqui temos uma questão em aberto que poucos dos advogados do teste do tempo querem admitir: que falar do teste do tempo envolve especificar, mais cedo ou mais tarde, de que tipo de leitores estamos considerando. Afinal de contas A ratoeira da Agatha Christie e muitos romances de H. G. Wells também estão resistindo ao teste do tempo, ambos inclusive sem lançar mão daquele profundo arcabouço simbólico que o articulista menciona, ou, ainda que se entenda que nas entrelinhas do texto eles o façam, não é em decorrência desta característica que tais obras perduram.

Do mesmo modo, dizer que uma obra resiste ao teste do tempo nem sempre quer dizer que ela esteja pura e simplesmente fornecendo estudos, visto que muitos dos advogados da ideia hoje em dia de maneira sub-reptícia dão a entender que as obras precisam persistir mas pelos motivos certos. Bruno Tolentino quase não deu ensejo a artigos, ensaios, livros, monografias, dissertações ou teses a respeito de sua obra, o contrário do que se vê com Haroldo ou mesmo com poetas como Ana Cristina César. Logo, se o teste do tempo é o teste válido, então o que se conclui é que Haroldo é um poeta mais forte do que Tolentino. Claro que sempre se pode ranger os dentes e reclamar de um boicote, no que até se lembrariam daquela ridícula lista feita durante a famigerada polêmica. Como se a ridícula lista não tivesse decorrido da extrema virulência do Tolentino. Qual é mesmo o termo que o pessoal dá pra esse tipo de coisa? Vitimismo? Oh, sim. Mas tá bom. Ok. Pode-se aceitar esta tese (desde já se esquecendo da olímpica preguiça dos leitores de Tolentino, mais preocupados em contar causos com o poeta do que lerem sua obra), mas então se esqueceria que o teste do tempo não se preocupa muito com isso, e do mesmo modo que um estudioso em literatura queer atribuiria à homofobia arraigada nas análises literárias a erradicação de homossexuais do cânone, o que se faria seria em essência o mesmo. Um problema eventualmente grave? Claro. Mas o teste do tempo, por si só, não se preocupa com isso.

Além do mais, as coisas não precisam ser tão esquemáticas assim, a respeito da quantia de publicações acadêmicas a respeito de um nome. Mesmo porque possuir, periodicamente, um número constante e suficiente de monografias a respeito de um autor contaria mais para o teste do tempo do que uma explosão de leituras às vezes muito melhores mas restritas a duas décadas apenas. E não só. Casimiro de Abreu, proporcionalmente, é um poeta que rendeu um número muito maior de leituras do que Sousândrade. No entanto, acho que Sousândrade merecia no mínimo um número igual. Ora: o que tem ocorrido de uns tempos pra cá é que Sousândrade tem despertado o interesse crítico mais do que Casimiro. Seria, sendo assim, o caso de supormos que algum dia o poeta dos oito anos deixe de resistir ao teste do tempo ao passo que o poeta dO Guesa passaria a magicamente resistir? Se a título de exemplo concedermos que isto ocorra num futuro próximo... E então? O que houve? O combustível acabou?

Podemos prosseguir notando que a resposta dada pelo articulista para a persistência do Haroldo é a pior possível. Diz:

Ainda mais surpreendente que a declaração de Haroldo de Campos, no entanto, é a insistência de alguns subcríticos e subpoetas, que, contrariando a lógica e o bom senso, superestimam uma diretriz estética já renegada até mesmo pelo seu sumo mentor. É que, inexplicavelmente, o Mo­vimento Concretista continua a ser supervalorizado nas nossas universidades, sendo inclusive objeto de inúmeras dissertações de mestrado e até mesmo de teses de doutoramento.

O argumento cai por terra. Se um artista para ser bom precisa passar pelo teste do tempo, tornar ilegítimas e absurdas as leituras que precisamente permitem que ele passe é um gesto crítico extremamente duvidoso. De que modo o articulista espera que os concretistas passem pelo teste do tempo se ele taxa as formas de fazê-lo como contrárias à lógica e ao bom senso? A conclusão a que se chega é de que não é que o articulista estabelece o teste do tempo como válido. Na verdade ele estabelece um tipo de leitura como única capaz de legitimar o teste do tempo. Uma maneira, como se vê, muito questionável de tratar a situação, pois é claro que se eu elejo um critério determinado como único capaz de realmente mostrar que os artistas que sobrevivem ao teste do tempo são realmente bons, então por óbvio os artistas que criem obras com propostas distintas daquele critério por definição serão vistos por mim como um embuste.

A situação continua quando o articulista diz que a vanguarda concreta, com a "a valorização semântica da mancha gráfica do poema" e com a proclamação da inovação como viga-mestra, falhou em seus intentos pois existiram exemplares de poesia visual muito antes dos concretos. Leitura simplista, entretanto. Não é que os concretistas tivessem elencado a inovação como viga-mestra em detrimento da experiência do passado, como se seu propósito fosse tratar de maneira literal o Make it new poundiano. É significativo que Augusto de Campos tenha vertido esse mesmo dictum valendo-se, para tanto, da expressão "renovar". Do mesmo modo, no Plano-piloto os concretistas traziam uma lista de precursores para seu trabalho. Claro que traziam. Nunca se preocuparam em cortar as relações com a tradição mais rica e viva do arcabouço literário. A noção de um paideuma, desenvolvida por Pound, sempre foi caríssima para os concretistas. O liame estabelecido não era o de uma repetição ou aplicação de resultados instigantes que autores do passado haviam demonstrado, mas sim de propostas e caminhos que suas obras permitiram. Num manifesto intitulado Olho por olho a olho nu, Haroldo de Campos dirá que a poesia concreta é uma "poesia posicionada no mirante culturmorfológico ao lado da / PINTURA CONCRETA / MÚSICA CONCRETA". O neologismo culturmorfológico" (cultura + morfologia, mas com as conotações que Pound dá a um termo como kulchur em seu Guide to Kulchur, isto é, uma noção de cultura intimamente ligada a um paideuma) será aplicado por Haroldo em outras ocasiões, por exemplo ao criticar a poesia da geração de 45 como uma poesia que justamente havia embalsamado o processo culturmorfológico (enquanto a poesia concreta, por outro viés, seria um "produto de uma evolução crítica de formas").

Do mesmo modo, não se pode dizer que a poesia concreta tenha sido apenas um ludismo verbal gratuito. Nem mesmo que tenha se reduzido à visualidade. De fato a poesia concreta sempre ressaltou a importância do olho como uma maneira de propiciar a comunicação direta e, assim, romper com a discursividade linearmente rítmica do verso tradicional. Num manifesto escrito por Augusto de Campos, recebemos a informação de que o poeta assume uma responsabilidade "total perante a linguagem: assumindo o pressuposto do idioma histórico como núcleo indispensável de comunicação, recusa-se a absorver as palavras como meros veículos indiferentes". Um pouco depois, diz que a poesia concreta se insurge contra "a introspecção autodebilitante e contra o realismo simplista", dizendo que "o poeta concreto vê a palavra em si mesma ― campo magnético de possibilidades ― como um objeto dinâmico, uma célula viva, um organismo completo". Não me parece que uma concepção dessas tenha resultado em brincadeira pura e simples. No mesmo manifesto do Haroldo, mencionado antes, temos que "a palavra tem uma dimensão GRÁFICO-ESPACIAL / uma dimensão ACÚSTICO-ORAL / uma dimensão CONTEUDÍSTICA / agindo sobre os comandos da palavra nessas / 3 dimensões". Como dito, embora o aspecto visual tenha sido a princípio o mais marcante da poesia concreta, ele não impediu que a posterior aproximação dos concretos e dos tropicalistas, por exemplo, ou mesmo os trabalhos orais levados a cabo por Augusto ou Haroldo, se tornassem alheios ao projeto inicial da poesia concreta. Era apenas que, como a poesia concreta buscava transformar o poema num "poema-produto: objeto útil", então ela buscava resolver uma tensão entre ser um produto erudito de alta complexidade e ao mesmo tempo ser um produto capaz de se comunicar perante um mundo de mercadorias. Na verdade, ainda mais: ser um objeto.

Se existe uma crítica que possa ser feita à deficiência da poesia concreta em transcender, a crítica deve se localizar precisamente aí. É o que, por exemplo, Paulo Franchetti, leitor perspicaz do legado da poesia concreta, faz ao apontar para o fato de que a partir do momento em que a poesia concreta busca se ligar à tecnologia mecânica (chamada por Franchetti de "tecnologia tecnológica" ― redundância necessária) de seu tempo, ela acaba perdendo sua força, visto que essa tecnologia mecânica, se posta em contraposição à tecnologia verbal, possui um poder de sobrevivência muito menor (e para Franchetti, a meu ver de forma acertada, de um modo geral os textos do legado concretista que conseguem fugir desse naufrágio são precisamente aqueles que abrandam sua dependência da tecnologia mecânica). É o que explica a curiosa passagem no Plano-piloto, retirada de um manifesto escrito por Décio Pignatari anos antes, de que o poema concreto renuncia "à disputa do 'absoluto', a poesia concreta permanece no campo magnético do relativo perene." Aqui, por óbvio, não se trata de chegar à conclusão automática de que a poesia concreta é um objeto descartável e sem capacidade alguma de sobreviver à passagem dos anos. O argumento de Franchetti é de que aquela poesia concreta que se apegou de maneira excessiva à tecnologia mecânica acabou por envelhecer de maneira precoce, justamente por não ter trabalho a tecnologia verbal com igual preponderância visando uma situação pelo menos de equilíbrio, como se o poema fosse apenas um experimento sem aquela tensão própria da poesia concreta entre a tecnologia verbal interna da palavra (em sua dimensão verbivocovisual, ou enquanto "composição de elementos básicos da linguagem, organizados ótico-acusticamente no espaço gráfico") e a tecnologia mecânica, o apoio prático e palpável com que o poema se funda. Mas não só. O que deve ser observado é que a frase formulada por Décio diz respeito ao "campo magnético do relativo perene." Ora: não é que o poema concreto naufrague, de maneira completa, nesse relativo perene. Ele apenas está nesse campo magnético, resultado esperado de sua aproximação com a cultura de massas. (Note que Augusto, como citado, se vale da mesma metáfora para caracterizar a forma como o poeta enxerga a palavra: como "campo magnético de possibilidades".) Ocorre que, a partir do momento em que ele também pressupõe uma tecnologia verbal que consiga fazer jus aos momentos mais inventivos da tradição poética, então ele não se limita simplesmente a ser um produto qualquer. Um objeto útil, sem dúvidas, um produto, foi-se dito, mas também um poema.

Aqui caberia também dizer que o termo "absoluto" aparece entre aspas na citação de Pignatari. É dizer: ele certamente se refere a usos específicos do termo, quem sabe ligados ao que era praxe, segundo a cartilha poética de 45, conceber. Num texto chamado Contexto de uma vanguarda, Haroldo dirá que no panorama do mundo contemporâneo o "patrimônio mental é cada vez mais posto em termos universais" e, portanto, a arte deve ser posta justamente neste quadro, ou seja, deve pertencer a seu tempo, como, de resto, sempre foi com a grande poesia de outros séculos: Haroldo cita Camões e Sá de Miranda, que, "vivendo com a informação adequada, importanto provençais, italianos e espanhóis, e exportando poesia em língua portuguesa criativa e qualitativamente enquadrada no contexto da época", foram ainda assim "homens contemporâneos em seu tempo". Assim, se a poesia contemporânea refina seu arsenal poético, se coloca todos os poros de sua linguagem em funcionamento, e se ela se coloca como produto de exportação, então a poesia contemporânea é tida como sendo universal por Haroldo já neste texto. Aqui, inclusive, ele diz que o poema concreto é alheio ao fato de ser chamado de poesia ou de poema: "importa consumi-lo, de uma ou de outra forma, como coisa. A informação estética prescinde de etiquetas nominativas." A discussão sobre se a poesia concreta é ou não poesia não parece ter sido uma discussão realmente preponderante para a vanguarda concreta, e isto não só pelo fato de que suas influências foram literárias e também advindas de outras artes (em especial as artes plásticas). Décio Pignatari progressivamente vai se afastar da poesia, chegando a casos onde a insistência em uma designação literária queda como sendo irrelevante. Basta que se lembre de sua teoria da guerrilha artística décadas depois, proposta de grande importância por estabelecer uma ponte entre o refinamento da vanguarda concreta e a poesia do desbunde por exemplo, bem como de obras como LIFE ou Organismo/orgasmo. Por igual senda, Alexei Bueno em sua história da poesia nacional não considera a poesia concretista como poesia, mas sim como um ramo das artes visuais, algo próximo do cartazismo (e é neste sentido que ele chega a chamar o beba coca do Décio como "composição brilhante"). Parece detrator dizê-lo, mas está muito mais próximo do projeto inicial da poesia concreta do que se imagina...

Prosseguindo, há que se dizer que nada impede que um poema concreto se revista de uma "dimensão ontológica, transcendental e simbólica do texto poético", pra me valer da fórmula mágica apresentada pelo articulista. A menção à poesia figurativa na Grécia antiga, bem como aos labirintos barrocos e ao "poema-partitura" de Mallarmé o atestam bem, e só aqui é necessário repisar que os concretos sabiam sim dessa precedência. Augusto de Campos não escreveu um poema como ovo novelo achando que estava inventando a roda. Ele o fez justamente em diálogo com o poema em forma de ovo de Símio de Rodes, paralelo que seria apontado por Décio Pignatari. O que há para ser notado é que nos poemas figurados por exemplo de Rábano Mauro, a visualidade não é simplesmente um ludismo, mas uma maneira de evidenciar uma mensagem metafísica mais profunda. O poema passa a ser uma espécie de labirinto ou até mesmo de brincadeira para o leitor, sem que isto permita concluirmos que termine apenas em tal dimensão. Afinal de contas, devo notar não só que um poema pode perfeitamente se revestir de um aspecto verbalmente lúdico, e pretender ficar por isso mesmo e ainda assim ser bom (penso em alguns poemas-piada), do mesmo modo que um poema pode chegar a essa tal "dimensão ontológica, transcendental e simbólica" sem que ele realmente consiga algo de admirável a respeito, ainda que as discussões aventadas sejam porventura instigantes. Um exemplo já dentro da poesia concreta de poema que consegue um equilíbrio entre a presentificação do objeto própria da poesia concreta (e não a simples apresentação), entre sua estrutura tensional, e um conteúdo metafísico mais amplo, seria o ZEN de Pedro Xisto, que, para Luis Dolhnikoff, é um prodígio informacional. Outro seria o caso de se / nasce / morre do Haroldo.

Um último ponto a ser pinçado é o da afirmação feita pelo Haroldo, no programa Roda viva, de que ele próprio havia abandonado o barco da poesia concreta. Se o próprio fundador o fez, então a única conclusão a que se chega é...

É de que se trata de uma citação descontextualizada. O articulista até que consegue pontuar, por meio de colchetes, o que Haroldo queria dizer ali dentro da frase, por exemplo ao especificar que "experiência limite" se refere a um projeto vanguardista. Ocorre que ele se esquece que não é nenhum absurdo que Haroldo tenha se afastado da configuração inicial da poesia concreta. Não quer dizer que ele desprezasse sua produção passada. Drummond também se afastou do projeto modernista, do projeto social e do projeto metafísico que sua poesia ostentou com o passar do tempo. Se por um lado pode-se dizer, e com justeza, que Drummond nunca chegou a ponto de orquestrar um movimento poético com toda a firmeza e detalhe que a vanguarda concreta, por outro a relação que Haroldo estabelece com as propostas e projetos iniciais de sua poesia não são em essência muito distintos do que o próprio Drummond, como dito, faria em relação à sua. Num texto chamado Poesia concreta, Augusto de Campos (que foi um dos primeiros a usar a expressão) diz que existe uma poesia concreta no sentido de que existe uma poesia onde as palavras "atuam como objetos autônomos", no que cita a concepção sartreana da palavra como coisa. As diferenças são pequenas com o que Haroldo irá formular décadas depois no Roda viva. O que não nos leva à conclusão de que o projeto poético que a vanguarda concreta formulou seja um projeto alheio ou distinto do que Haroldo depois desenvolveria num livro como o Galáxias, visto que a preocupação da pela comunicação da própria estrutura continua sendo um fator importante, bem como o trabalho das ferramentas básicas da linguagem com preponderância ou a ideia de se "criar novas relações semânticas para a abordagem do produto estético" (conforme Haroldo dirá num texto intitulado Contexto de uma vanguarda).

Não há inconsistência nenhuma, portanto, ao contrário do que foi alegado. O projeto inicial da vanguarda concreta perdeu sua urgência propedêutica, que de todo modo não cumpria ser feita a vida toda. Isto não nos leva à conclusão de que se demonstrou como sendo um fiasco. Apontou caminhos. A poesia concreta trouxe um embasamento teórico avançado para a época e, verdade seja dita, até mesmo hoje em dia. Não espanta que depois tenha se valido de suas conquistas e preocupações como forma de criar um maquinário crítico e tradutório, por exemplo, de igual importância. Muitos poetas posteriores aos concretos se valeriam de sendas abertas pelo grupo, e alguns poetas ainda hoje possuem uma produção que consegue se nutrir de maneira direta do que mesmo os momentos mais característicos da poesia concreta tinham a oferecer (por exemplo o forte apelo visual na poesia de André Vallias). De igual modo, existem poetas que embora mantenham distância crítica perante o projeto inicial da vanguarda concreta (como, de resto, os próprios concretos posteriormente fariam, em especial Haroldo e Décio), isto não quer dizer que resultados estéticos banhados nesta fonte não existiram.