De que modo uma antologia de poetas gays pode ser comparada a uma de cristãos.
TECO ― Tico, vem cá. A gente falou um negócio postagem dessas que me deixou encasquetado. Era no sentido de que uma antologia de poetas cristãos possui muito mais semelhança com uma antologia de poetas gays do que se pode pensar.
TICO ― Lembro disso sim. A gente tava cutucando a onça com vara curta, não era? No sentido de que, como sabemos, é muito frequente que um lado e outro, aqui tomados como uma espécie de antípodas da esquerda e da direita, se estranhem e achem a coisa mais absurda do mundo que possuam algo em comum.
TECO ― E acho que esse tipo de proximidade inesperada poderia servir pra quebrar um pouco a muralha mágica que o tiroteio ideológico ergue entre os dois lados. Se você percebe que a pessoa que habita a outra galáxia (o nível de distância tem sido esse mesmo) faz coisas que você também faz, uma percepção dessas ajuda e muito na hora do exercício empático. Enfim. De todo modo, acho que seria melhor que desenvolvêssemos com mais tardar uma ideia assim. Digo: em que sentido podemos falar de uma antologia de gays e uma de cristãos? Tomando como base apenas a opção sexual e a crença religiosa do cara? Isso não seria um liame fraco demais?
TICO ― A princípio eu penso que sim. Seria como que você pensar uma antologia com base apenas em critérios extraliterários... Se bem que isso é possível e é muito feito, até. Uma antologia de poesia regional costuma partir apenas do critério de se o poeta nasceu ou não naquele Estado ou Município. Não parece ter liame nenhum numa ideia dessas, e, no entanto, o que se vê compulsando uma antologia desse tipo é que muitas vezes os nomes ali presentes trazem consigo uma proximidade reveladora. Quer dizer: eles só nasceram no mesmo local. É um critério extraliterário que não possuiria influxos decisivos na hora da composição. E contudo...
TECO ― É preciso ponderar, todavia. Sim, o critério é o dos que nasceram, mas ele não vem com a retaguarda aberta. Usa-se muito também o critério do nasceu em outro estado e hoje mora no Estado, tendo, inclusive, passado boa parte da vida por aqui mesmo, ou então o critério do nasceu e ainda mora aqui, ou nasceu e passou a maior parte da vida. Enfim. O critério geográfico é um critério extraliterário, mas o fato de que dois escritores convivam no mesmo espaço físico traz consigo afinidades e repulsas naturais, ou mesmo uma pertença a conflitos de ordem local e debates culturais que tenham sido levantados naquele âmbito. São coisas assim que fazem com que os poetas acabem estabelecendo um laço mais íntimo entre si. Afinal de contas, como sempre afirmamos, a literatura não existe no éter. É possível que se fale sim da influência que ter nascido e ter morado numa determinada região acarreta no poeta (e aqui, claro, não falo só do quesito "visão da terra natal"). Não, por óbvio, em termos deterministas, mas, ao mesmo tempo, não acho que dê pra desprezar esse tipo de influência, que, como disse, é mais ampla.
TICO ― Certo. De todo modo, é um critério extraliterário e que possui relevância. No caso, todavia, de uma antologia de poetas gays... Que tipo de liame existiria? Eles não nasceram no mesmo local e dificilmente um chegou a conviver com o outro.
TECO ― É verdade, mas é possível que, pelo fato de que você é gay, saber que no passado existiu um autor, seja ele grande ou não, que também foi gay, é algo que se reveste de uma importância particular. Você passa a saber que não está sozinho.
TICO ― E isso, então, nos levaria a considerar que o fato de que eu descubra que existiram poetas gays no passado é o suficiente para que um liame de influências seja estabelecido?
TECO ― Olha, eu até diria que sim, mas com uma certa cautela. Mais uma vez, não se trata de determinismos, mas sim de enxergar como sendo mais um fator em atuação. Se de maior relevância ou não, a questão é complexa, e eu tentaria colocá-la nos seguintes termos: até que ponto o critério extraliterário da geografia é um critério mais relevante, na hora da criação artística, da gestação do escritor, que o critério da opção sexual?
TICO ― Eu realmente não sei dizer, e acho que nem é possível que se chegue a uma resposta satisfatória para uma questão assim. Cada um, cada um. Pois, embora dois poetas que tenham nascido no mesmo local acabem se vendo ou trocando ideias, ou mesmo sabendo da existência física do outro a ponto de, por exemplo, saber de fofocas particulares (algo como "fiquei sabendo que ele bebeu até cair no último sarau"), isso não quer dizer que ele vai ficar preso só a este contexto, como já enfatizamos. Quando alguém mexe com literatura, mexer com a literatura produzida pelo pessoal da sua região é, quando muito, só metade do caminho. Eu posso ir numa reunião de poetas do bairro onde se vai discutir o romance de um autor italiano, e todos as referências ali durante a discussão serem de autores russos. Enfim. É algo que me parece evidente demais. O fato é que os dois podem inclusive ser pessoas que se encontram com frequência, podem ser colegas de trabalho e ainda assim, se um deles for gay, a proximidade que ele sentirá com um outro poeta morto há dois séculos, que também era gay, será maior. Ou, ainda, pode ser que ele sinta mais proximidade com um poeta de outra região do país, só que, agora, um que não seja gay.
TECO ― Muito bem. Como dito, parece razoável supormos a ideia de que um fator extraliterário como a opção sexual possua influxos e crie liames entre os poetas.
TICO ― Pode ser também que os poetas ali contidos na antologia não apresentem liame interno ou liame estético algum.
TECO ― Então a antologia seria montada com poetas que são gays e só?
TICO ― É.
TECO ― Qual a utilidade de algo assim?
TICO ― Representatividade.
TECO ― Representatividade?
TICO ― É.
TECO ― Explique.
TICO ― Mostrar que existem poetas que são gays em atividade, ou que já estiveram em atividade. A antologia pode ter este simples critério. Dentro da antologia você poderia encontrar um número enorme de poéticas, da erótica à metafísica. Mas a ideia seria simplesmente essa: representatividade.
TECO ― Mas não parece pouco? Você não estaria colocando a opção sexual em detrimento da qualidade artística?
TICO ― E por que eu estaria? Não acho que estaria. Eu posso selecionar apenas grandes poetas gays, ué. O que te faz pensar que, pelo fato de que eu tenha montado uma antologia só com poetas gays, eles por conseguinte devam ser ruins, ou que eu deva estar sendo condescendente com um ou outro? Muitas vezes nós pensamos o fenômeno literário de maneira muito bitolada, tendo como horizonte só os autores que de algum modo são consagrados, no que acabamos excluindo autores negros, por exemplo, sem que achemos isso estranho. Na verdade não é nem que excluímos: nós simplesmente deixamos de perceber, passamos a vista grossa ou, às vezes, não fazemos a mínima ideia de sua existência, no que seria necessário justamente um trabalho crítico para retirar do limbo um autor desses. Do mesmo modo, é possível que leiamos um grande autor e não saibamos de sua opção sexual, e o fato de que ele tenha sido incluso numa antologia de poesia gay pode dar realce a aspectos reveladores de seu texto.
TECO ― Entendi o seu ponto. Mas não seria depender da vida do artista para a análise?
TICO ― Trazer aspectos da biografia do poeta para a análise é um gesto totalmente legítimo. Isso não invalida a análise. Tópicos teóricos consagrados como a falácia intencional ou a morte do autor servem no sentido de que o autor não é a autoridade maior na hermenêutica do texto; todavia, isso não nos impede de olharmos para a biografia do artista como um aspecto de análise importante (e que fique claro que esses tópicos teóricos consagrados não atentaram contra isto!...).
TECO ― Mas se descubro a sexualidade dele e depois corro pra reler a obra e descobrir novas coisas, não seria um modo de dar, justamente, primazia à biografia?
TICO ― Em parte. Dependendo da maneira com que você faz isso de "correr pra reler a obra" pode ser realmente que você fique na ânsia de encaixar ou de tudo fazer sentido, como se o fato do cara ter sido gay implicasse que tudo o que ele escreveu precisa conter a sementinha da compulsão sexual. Enfim. Um dos pontos é: não se pode ostracizar o artista, e é importante deixar isso bem claro. Eu posso ler a obra e não fazer menção à biografia em momento nenhum. É algo totalmente possível. Do mesmo modo, eu não posso, porque descobri que o artista era gay, ler de forma marcada tudo o que ele deixou. Isso é inaceitável. Agora, se eu descubro que ele era gay, então algumas teses defendidas durante uma análise qualquer caem por terra ou, no mínimo, recebem novas possibilidades de ênfase. Se aquele é um poema de amor e o tempo todo eu o interpretei como um poema de amor heterossexual, descobrir que o autor na verdade era gay dá mais este novo sentido. Não quer dizer que, agora, o poema definitivamente virou um poema de amor homossexual. Não é implausível que um poeta gay escreva um poema de amor heterossexual, mesmo porque poemas de amor heterossexuais são o padrão, o standart, o poema de amor homossexual sendo o exótico da coisa toda. Quer dizer, apenas, que este será mais um novo sentido.
TECO ― Correto. Entendi. Mas e com a poesia cristã? Montar uma antologia apenas com poetas que foram cristãos?
TICO ― É possível, embora acho que, montar apenas com esse liame extraliterário... Não sei qual seria a viabilidade de algo assim. Boa parte da poesia ocidental foi feita por cristãos. Eles não são minoria. Quando se faz uma antologia com os medalhões da literatura ocidental, você não chama isso de antologia de poesia cristã, ou de poesia branca, europeia, heterossexual e por aí vai. Este já é o padrão. Como dito, é o standart. Agora pode ser que hoje, ou da modernidade pra cá, quem sabe, quando a crença cristã sofreu um descrédito no campo da reflexão intelectual, crítica e mesmo poética, então aí já me parece uma maneira interessante de se pensar uma antologia.
TECO ― Então pra que uma antologia seja viabilizada, é necessário que fale de minorias ou do que está em descrédito?
TICO ― De novo, não necessariamente. Se o critério for puramente extraliterário, eu defendo que sim. Agora se pensarmos um critério de eficácia estética interna, um critério temático, aí já muda de figura.
TECO ― Não entendi.
TICO ― Veja bem. Montar uma antologia com poetas que foram cristãos, e só, é uma coisa. Isso pode reunir um número muito grande de autores, como dito, e com poéticas muito distintas. O cara pode ter sido cristão mas nunca ter escrito um só poema de louvor, de penitenciamento. Entende? Agora se o critério for o de poemas que falaram de temas próprios da crença cristã, isso já muda muito a ordem dos fatores. Aí já não depende mais do quesito das minorias, pois, como dito, muitos poetas que foram cristãos em vida não escreveram textos direta ou tematicamente ligados ao cristianismo. Podem ter escrito algo que tenha se embasado na cosmologia cristã, na sua visão de mundo religiosa, mas aí já é outra coisa.
TECO ― Mas o que serviria de medidor para o fato de que aquele é um poema de temática cristã, ou de temática gay?
TICO ― O antologista é que vai dizer, ué. Temos, claro, preconceitos que podem fazer com que, antes da antologia, se imagine mais ou menos o que seria um poema de temática cristã. Algo que envolva o Senhor ali no meio, um terço, um genuflexório, uma água benta, sei lá. Ou então um de temática gay, que envolveria um pênis, uma cena de sexo. Ocorre que esse tipo de preconceito é útil só até determinado ponto (um ponto muito que não vai muito longe, fique bem claro). Posso escrever um poema falando do convívio com a pessoa que amo e ainda assim aquilo ali ser um poema gay. Ou então contemplar uma paisagem com ovelhas pastando e elevar meu espírito para uma paz maior: poema cristão, portanto. Enfim. Isso é com o antologista.
TECO ― A divisão que você fez, entre poetas cristãos que foram cristãos e só, e poetas cristãos que falaram de temas cristãos, também se aplica, portanto, a uma antologia de poetas gays?
TICO ― Isso mesmo, Teco.
TECO ― Me parece que antologias que busquem unir os dois, ou seja, poetas que por exemplo foram cristãos e trataram de temas cristãos, é o mais comum, não acha?
TICO ― Tenho essa impressão também. Afinal de contas não me parece implausível que um poeta não cristão escreva um bom poema que retrate a cosmovisão cristã. Não vejo nenhum óbice a algo do tipo, ainda mais se pensarmos no poeta como um fingidor... Penso por exemplo em Drummond, que tinha alguns ranços homofóbicos enquanto pessoa mas que escreveu o Rapto, um dos mais belos poemas de temática homossexual de nossa literatura. Agora é importante notar que tratar da temática cristã, ou mesmo da temática gay, é sempre num sentido construtivo. Rimbaud em seus momentos mais iconoclastas atacou de maneira veemente a religião cristã. Ou seja: o tema dele foi um tema cristão. E no entanto ele não é colocado.
TECO ― Não sei. Foi um tema cristão? Não, não acho. Foi outra coisa: por exemplo a hipocrisia e a camisa de força que a religião cristã incute nos seus devotos. Seria algo parecido quanto à inclusão de um poema homofóbico numa antologia de poesia homossexual. Tratou de um tema gay? Não. Tratou, na verdade, sei lá, da degradação moral, da corrupção dos costumes, da decadência cultural etc etc.
TICO ― Compreendo.
TECO ― Agora uma outra picuinha: muito bem, o quesito temático é bacana de ser considerado. Mas, ora, isso não faria com que ambos os tipos de antologia que estamos levando em consideração fossem a mesma coisa que, sei lá, uma antologia de poemas sobre bichos?
TICO ― O problema é que na maior parte dos casos uma antologia de poemas sobre bichos é apenas uma curiosidade, ao passo que uma antologia de poetas cristãos ou de poetas gays refrataria uma visão de mundo, ou no mínimo a afirmação de que são temas que merecem e mereceram um trabalho instigante por parte dos artistas. Eu dou um valor implícito àquela reunião que vai além da coleção de exemplos ou do lúdico puro e simples.
TECO ― Isso basta, por hora. Creio que retornaremos a este assunto.
TICO ― Lembro disso sim. A gente tava cutucando a onça com vara curta, não era? No sentido de que, como sabemos, é muito frequente que um lado e outro, aqui tomados como uma espécie de antípodas da esquerda e da direita, se estranhem e achem a coisa mais absurda do mundo que possuam algo em comum.
TECO ― E acho que esse tipo de proximidade inesperada poderia servir pra quebrar um pouco a muralha mágica que o tiroteio ideológico ergue entre os dois lados. Se você percebe que a pessoa que habita a outra galáxia (o nível de distância tem sido esse mesmo) faz coisas que você também faz, uma percepção dessas ajuda e muito na hora do exercício empático. Enfim. De todo modo, acho que seria melhor que desenvolvêssemos com mais tardar uma ideia assim. Digo: em que sentido podemos falar de uma antologia de gays e uma de cristãos? Tomando como base apenas a opção sexual e a crença religiosa do cara? Isso não seria um liame fraco demais?
TICO ― A princípio eu penso que sim. Seria como que você pensar uma antologia com base apenas em critérios extraliterários... Se bem que isso é possível e é muito feito, até. Uma antologia de poesia regional costuma partir apenas do critério de se o poeta nasceu ou não naquele Estado ou Município. Não parece ter liame nenhum numa ideia dessas, e, no entanto, o que se vê compulsando uma antologia desse tipo é que muitas vezes os nomes ali presentes trazem consigo uma proximidade reveladora. Quer dizer: eles só nasceram no mesmo local. É um critério extraliterário que não possuiria influxos decisivos na hora da composição. E contudo...
TECO ― É preciso ponderar, todavia. Sim, o critério é o dos que nasceram, mas ele não vem com a retaguarda aberta. Usa-se muito também o critério do nasceu em outro estado e hoje mora no Estado, tendo, inclusive, passado boa parte da vida por aqui mesmo, ou então o critério do nasceu e ainda mora aqui, ou nasceu e passou a maior parte da vida. Enfim. O critério geográfico é um critério extraliterário, mas o fato de que dois escritores convivam no mesmo espaço físico traz consigo afinidades e repulsas naturais, ou mesmo uma pertença a conflitos de ordem local e debates culturais que tenham sido levantados naquele âmbito. São coisas assim que fazem com que os poetas acabem estabelecendo um laço mais íntimo entre si. Afinal de contas, como sempre afirmamos, a literatura não existe no éter. É possível que se fale sim da influência que ter nascido e ter morado numa determinada região acarreta no poeta (e aqui, claro, não falo só do quesito "visão da terra natal"). Não, por óbvio, em termos deterministas, mas, ao mesmo tempo, não acho que dê pra desprezar esse tipo de influência, que, como disse, é mais ampla.
TICO ― Certo. De todo modo, é um critério extraliterário e que possui relevância. No caso, todavia, de uma antologia de poetas gays... Que tipo de liame existiria? Eles não nasceram no mesmo local e dificilmente um chegou a conviver com o outro.
TECO ― É verdade, mas é possível que, pelo fato de que você é gay, saber que no passado existiu um autor, seja ele grande ou não, que também foi gay, é algo que se reveste de uma importância particular. Você passa a saber que não está sozinho.
TICO ― E isso, então, nos levaria a considerar que o fato de que eu descubra que existiram poetas gays no passado é o suficiente para que um liame de influências seja estabelecido?
TECO ― Olha, eu até diria que sim, mas com uma certa cautela. Mais uma vez, não se trata de determinismos, mas sim de enxergar como sendo mais um fator em atuação. Se de maior relevância ou não, a questão é complexa, e eu tentaria colocá-la nos seguintes termos: até que ponto o critério extraliterário da geografia é um critério mais relevante, na hora da criação artística, da gestação do escritor, que o critério da opção sexual?
TICO ― Eu realmente não sei dizer, e acho que nem é possível que se chegue a uma resposta satisfatória para uma questão assim. Cada um, cada um. Pois, embora dois poetas que tenham nascido no mesmo local acabem se vendo ou trocando ideias, ou mesmo sabendo da existência física do outro a ponto de, por exemplo, saber de fofocas particulares (algo como "fiquei sabendo que ele bebeu até cair no último sarau"), isso não quer dizer que ele vai ficar preso só a este contexto, como já enfatizamos. Quando alguém mexe com literatura, mexer com a literatura produzida pelo pessoal da sua região é, quando muito, só metade do caminho. Eu posso ir numa reunião de poetas do bairro onde se vai discutir o romance de um autor italiano, e todos as referências ali durante a discussão serem de autores russos. Enfim. É algo que me parece evidente demais. O fato é que os dois podem inclusive ser pessoas que se encontram com frequência, podem ser colegas de trabalho e ainda assim, se um deles for gay, a proximidade que ele sentirá com um outro poeta morto há dois séculos, que também era gay, será maior. Ou, ainda, pode ser que ele sinta mais proximidade com um poeta de outra região do país, só que, agora, um que não seja gay.
TECO ― Muito bem. Como dito, parece razoável supormos a ideia de que um fator extraliterário como a opção sexual possua influxos e crie liames entre os poetas.
TICO ― Pode ser também que os poetas ali contidos na antologia não apresentem liame interno ou liame estético algum.
TECO ― Então a antologia seria montada com poetas que são gays e só?
TICO ― É.
TECO ― Qual a utilidade de algo assim?
TICO ― Representatividade.
TECO ― Representatividade?
TICO ― É.
TECO ― Explique.
TICO ― Mostrar que existem poetas que são gays em atividade, ou que já estiveram em atividade. A antologia pode ter este simples critério. Dentro da antologia você poderia encontrar um número enorme de poéticas, da erótica à metafísica. Mas a ideia seria simplesmente essa: representatividade.
TECO ― Mas não parece pouco? Você não estaria colocando a opção sexual em detrimento da qualidade artística?
TICO ― E por que eu estaria? Não acho que estaria. Eu posso selecionar apenas grandes poetas gays, ué. O que te faz pensar que, pelo fato de que eu tenha montado uma antologia só com poetas gays, eles por conseguinte devam ser ruins, ou que eu deva estar sendo condescendente com um ou outro? Muitas vezes nós pensamos o fenômeno literário de maneira muito bitolada, tendo como horizonte só os autores que de algum modo são consagrados, no que acabamos excluindo autores negros, por exemplo, sem que achemos isso estranho. Na verdade não é nem que excluímos: nós simplesmente deixamos de perceber, passamos a vista grossa ou, às vezes, não fazemos a mínima ideia de sua existência, no que seria necessário justamente um trabalho crítico para retirar do limbo um autor desses. Do mesmo modo, é possível que leiamos um grande autor e não saibamos de sua opção sexual, e o fato de que ele tenha sido incluso numa antologia de poesia gay pode dar realce a aspectos reveladores de seu texto.
TECO ― Entendi o seu ponto. Mas não seria depender da vida do artista para a análise?
TICO ― Trazer aspectos da biografia do poeta para a análise é um gesto totalmente legítimo. Isso não invalida a análise. Tópicos teóricos consagrados como a falácia intencional ou a morte do autor servem no sentido de que o autor não é a autoridade maior na hermenêutica do texto; todavia, isso não nos impede de olharmos para a biografia do artista como um aspecto de análise importante (e que fique claro que esses tópicos teóricos consagrados não atentaram contra isto!...).
TECO ― Mas se descubro a sexualidade dele e depois corro pra reler a obra e descobrir novas coisas, não seria um modo de dar, justamente, primazia à biografia?
TICO ― Em parte. Dependendo da maneira com que você faz isso de "correr pra reler a obra" pode ser realmente que você fique na ânsia de encaixar ou de tudo fazer sentido, como se o fato do cara ter sido gay implicasse que tudo o que ele escreveu precisa conter a sementinha da compulsão sexual. Enfim. Um dos pontos é: não se pode ostracizar o artista, e é importante deixar isso bem claro. Eu posso ler a obra e não fazer menção à biografia em momento nenhum. É algo totalmente possível. Do mesmo modo, eu não posso, porque descobri que o artista era gay, ler de forma marcada tudo o que ele deixou. Isso é inaceitável. Agora, se eu descubro que ele era gay, então algumas teses defendidas durante uma análise qualquer caem por terra ou, no mínimo, recebem novas possibilidades de ênfase. Se aquele é um poema de amor e o tempo todo eu o interpretei como um poema de amor heterossexual, descobrir que o autor na verdade era gay dá mais este novo sentido. Não quer dizer que, agora, o poema definitivamente virou um poema de amor homossexual. Não é implausível que um poeta gay escreva um poema de amor heterossexual, mesmo porque poemas de amor heterossexuais são o padrão, o standart, o poema de amor homossexual sendo o exótico da coisa toda. Quer dizer, apenas, que este será mais um novo sentido.
TECO ― Correto. Entendi. Mas e com a poesia cristã? Montar uma antologia apenas com poetas que foram cristãos?
TICO ― É possível, embora acho que, montar apenas com esse liame extraliterário... Não sei qual seria a viabilidade de algo assim. Boa parte da poesia ocidental foi feita por cristãos. Eles não são minoria. Quando se faz uma antologia com os medalhões da literatura ocidental, você não chama isso de antologia de poesia cristã, ou de poesia branca, europeia, heterossexual e por aí vai. Este já é o padrão. Como dito, é o standart. Agora pode ser que hoje, ou da modernidade pra cá, quem sabe, quando a crença cristã sofreu um descrédito no campo da reflexão intelectual, crítica e mesmo poética, então aí já me parece uma maneira interessante de se pensar uma antologia.
TECO ― Então pra que uma antologia seja viabilizada, é necessário que fale de minorias ou do que está em descrédito?
TICO ― De novo, não necessariamente. Se o critério for puramente extraliterário, eu defendo que sim. Agora se pensarmos um critério de eficácia estética interna, um critério temático, aí já muda de figura.
TECO ― Não entendi.
TICO ― Veja bem. Montar uma antologia com poetas que foram cristãos, e só, é uma coisa. Isso pode reunir um número muito grande de autores, como dito, e com poéticas muito distintas. O cara pode ter sido cristão mas nunca ter escrito um só poema de louvor, de penitenciamento. Entende? Agora se o critério for o de poemas que falaram de temas próprios da crença cristã, isso já muda muito a ordem dos fatores. Aí já não depende mais do quesito das minorias, pois, como dito, muitos poetas que foram cristãos em vida não escreveram textos direta ou tematicamente ligados ao cristianismo. Podem ter escrito algo que tenha se embasado na cosmologia cristã, na sua visão de mundo religiosa, mas aí já é outra coisa.
TECO ― Mas o que serviria de medidor para o fato de que aquele é um poema de temática cristã, ou de temática gay?
TICO ― O antologista é que vai dizer, ué. Temos, claro, preconceitos que podem fazer com que, antes da antologia, se imagine mais ou menos o que seria um poema de temática cristã. Algo que envolva o Senhor ali no meio, um terço, um genuflexório, uma água benta, sei lá. Ou então um de temática gay, que envolveria um pênis, uma cena de sexo. Ocorre que esse tipo de preconceito é útil só até determinado ponto (um ponto muito que não vai muito longe, fique bem claro). Posso escrever um poema falando do convívio com a pessoa que amo e ainda assim aquilo ali ser um poema gay. Ou então contemplar uma paisagem com ovelhas pastando e elevar meu espírito para uma paz maior: poema cristão, portanto. Enfim. Isso é com o antologista.
TECO ― A divisão que você fez, entre poetas cristãos que foram cristãos e só, e poetas cristãos que falaram de temas cristãos, também se aplica, portanto, a uma antologia de poetas gays?
TICO ― Isso mesmo, Teco.
TECO ― Me parece que antologias que busquem unir os dois, ou seja, poetas que por exemplo foram cristãos e trataram de temas cristãos, é o mais comum, não acha?
TICO ― Tenho essa impressão também. Afinal de contas não me parece implausível que um poeta não cristão escreva um bom poema que retrate a cosmovisão cristã. Não vejo nenhum óbice a algo do tipo, ainda mais se pensarmos no poeta como um fingidor... Penso por exemplo em Drummond, que tinha alguns ranços homofóbicos enquanto pessoa mas que escreveu o Rapto, um dos mais belos poemas de temática homossexual de nossa literatura. Agora é importante notar que tratar da temática cristã, ou mesmo da temática gay, é sempre num sentido construtivo. Rimbaud em seus momentos mais iconoclastas atacou de maneira veemente a religião cristã. Ou seja: o tema dele foi um tema cristão. E no entanto ele não é colocado.
TECO ― Não sei. Foi um tema cristão? Não, não acho. Foi outra coisa: por exemplo a hipocrisia e a camisa de força que a religião cristã incute nos seus devotos. Seria algo parecido quanto à inclusão de um poema homofóbico numa antologia de poesia homossexual. Tratou de um tema gay? Não. Tratou, na verdade, sei lá, da degradação moral, da corrupção dos costumes, da decadência cultural etc etc.
TICO ― Compreendo.
TECO ― Agora uma outra picuinha: muito bem, o quesito temático é bacana de ser considerado. Mas, ora, isso não faria com que ambos os tipos de antologia que estamos levando em consideração fossem a mesma coisa que, sei lá, uma antologia de poemas sobre bichos?
TICO ― O problema é que na maior parte dos casos uma antologia de poemas sobre bichos é apenas uma curiosidade, ao passo que uma antologia de poetas cristãos ou de poetas gays refrataria uma visão de mundo, ou no mínimo a afirmação de que são temas que merecem e mereceram um trabalho instigante por parte dos artistas. Eu dou um valor implícito àquela reunião que vai além da coleção de exemplos ou do lúdico puro e simples.
TECO ― Isso basta, por hora. Creio que retornaremos a este assunto.