De novo sobre apropriação cultural,
só que agora partindo do caso da menina que tinha câncer, usou um turbante, foi incomodada por uma ativista, fez relato numa rede social e deu no que deu. É só dar uma pesquisada rápida a partir dos termos certos ("apropriação cultural", "turbante", "câncer") que você chega na notícia. Há quem questione a veracidade do relato, e o problema não é saber que aquilo ali é falso ― é conviver com o fato de que poderia ter sido verdade. Já tratei do tema uma vez aqui no bloguinho. De um modo geral não estou muito preocupado em ficar apontando para o fato de que existem ativistas que fazem o favor de descarregar um cartucho de balas no dedo mindinho do movimento, mesmo porque gente destrambelhada se reproduz por geração espontânea.
Também não estou muito preocupado em ficar fazendo aquele tipo de texto entediante que especifica tintim por tintim de que país vem cada fiapo de tecido de um turbante, no que, unidos todos, temos um verdadeiro hino de paz mundial, algo que faria o nosso amigo Friedman se perguntar se um lápis foi realmente a melhor escolha. Estou mais preocupado em olhar para o que de fato é o conceito de apropriação cultural, se enunciado por pessoas com um pouco de siso que seja, e ver até que ponto a ideia realmente parece legal ou não. Não digo que os outros problemas, por exemplo o do ativismo histriônico, sejam menores. O movimento precisa fazer uma Internacional pra discutir o assunto. Já passou da hora. Essa galera aí vai acabar afundando o barco, vai vendo. É só que, pra mim, no cercado exíguo dos caracteres deste texto, não é algo que me interessa.
Não adianta refutar a apropriação cultural dizendo que as coisas num mundo globalizado passam pelas mãos de inúmeras culturas antes de chegarem à gôndola. Parece-me uma premissa muito equivocada essa de detalhar que o processo de fabricação de um turbante é um processo que envolve pólos industriais das mais variadas partes do mundo ― como se isto fosse uma espécie de refutação da ideia da apropriação cultural. Afinal de contas, apropriação cultural não é só você pegar no pé de quem, dentro do raio que o parta de um ônibus, está usando turbante e não é negro. É, sei que foi o que o pessoal lá fez com a menina no caso em tela, mas daí não se segue que seja uma maneira honesta, mesmo por parte das ativistas envolvidas, de abordar o conceito. Não é porque alguém defende o capitalismo de livre mercado dizendo que é válido esquartejar defuntos e vender sua carne no mercadão municipal que, por conseguinte, esta seja a melhor defesa do capitalismo de livre mercado, e o fato de que tenhamos conseguido afastar uma ideia dessas como esdrúxula não significa que afastamos a ideia, por si só, de um capitalismo de livre mercado.
Apropriação cultural, eu disse no meu texto passado valendo-me de um vídeo muito útil de um camarada aí, envolve pelo menos dois movimentos: o primeiro de estigmatização e o segundo de invisibilização (ou apagamento). Você marca uma etnia com o ferro em brasa dos preconceitos e, logo depois, você parece que varre esse pessoal pra debaixo do carpete. O que se questiona com a apropriação cultural não é nem tanto o fato de que pessoas usem artefatos da cultura do outro, mas que, pelo contrário, só pessoas fora daquela etnia estigmatizada possam usar esses artefatos e ainda assim serem bem vistas em sociedade, ao passo que se a própria etnia usa aqueles mesmos artefatos, então ela é tratada de maneira jocosa e discriminatória. O caso de um turbante parece ser muito eloquente: não parece ser fora de cogitação a ideia de que, se uma mulher branca usa um turbante, ela vai ser muito mais bem vista do que uma mulher negra que também resolva sair pelas ruas com um turbante.
A Djamila Ribeiro, num texto publicado no site do AzMina, parece chegar a uma observação interessante a respeito do assunto: querer concentrar as energias do debate a respeito da apropriação cultural no nível individual não parece ser uma boa estratégia, mesmo porque, segundo ela, o problema é estrutural. A apropriação cultural é um problema "Porque esvazia de sentido uma cultura com o propósito de mercantilização ao mesmo tempo em que exclui e invisibiliza quem produz." Prossegue: "Mulheres negras não passaram a ser tratadas com dignidade, por exemplo, porque o samba ganhou o status de símbolo nacional. E é extremamente importante apontar isso: falar sobre apropriação cultural significa apontar uma questão que envolve um apagamento de quem sempre foi inferiorizado e vê sua cultura ganhando proporções maiores, mas com outro protagonista." Acho que as coisas estão bem claras da forma como foram colocadas. Transcrevo também: "Uma coisa é a troca, o intercâmbio de culturas, o que é muito positivo. Outra coisa é a apropriação. No nosso país, as culturas foram hierarquizadas, sendo a negra colocada como inferior, exótica. Dentro desse contexto é possível falar em troca?"
Se é assim, então porque a apropriação cultural é visto como algo tão ridículo? Claro que faço essa pergunta mas já sei a resposta: é porque tem gente, como as ativistas citadas, que vão lá e fazem a cagada que fizeram. Sim, concordo. Mas voltamos ao que já indaguei: é o bastante para que a ideia da apropriação cultural se torne por conseguinte ridícula? Eu não acho que seja. Apropriação cultural me parece uma crítica que tem sim sua pertinência. Disse, no texto passado, que a apropriação cultural não é a estaca zero, mesmo porque se o Capetalismo (vamos usar por enquanto esse tipo de designação mefistofélica para o coletivo taxonômico de burgueses de fraque fumando charuto) decide lucrar com a cultura negra, ainda que estigmatizando e fazendo toda aquela patacoada, isso pelo menos é um passo, muito tímido e longe, bem se entenda, de um mínimo aceitável, além do apagamento total. Agora as pessoas sabem que a etnia negra também produz... turbantes. Ou então aqueles brincos lindos que parecem a presa de um tigre dente de sabre, e que posso usar combinando com aquela minha blusa de oncinha e minha calça jeans meio rasgada. Repito: é o bastante? Óbvio que não. Seria bem interessante que entendêssemos os significados daquilo, posto que entendê-los é um modo direto de espatifarmos os estigmas e darmos ênfase a uma cultura que possui sua importância. Por óbvio não é o único: posso usar sem fazer a mínima ideia de onde surgiu aquilo ou se é um artefato de certo valor para sua etnia. Isso não nos leva à conclusão de que a estigmatizo. Posso ser simplesmente um ignorante ou um desinteressado.
Agora eu não sei se a crítica deve ser feita em relação às indústrias que lucram com isso, como a própria Djamila fecha seu texto dizendo. Pelo menos não quanto ao princípio mercadológico, a essência capetalista da coisa. Entretanto, serei justo e tentarei ver o argumento dela da maneira como foi trazido: quando a Djamila fala das indústrias, ela está falando de mais uma engrenagem desse balaio de gato a que chamamos Sistema. Dos conceitos e noções mais vagos que a inteligência humana já concebeu, o tal do Sistema é um dos mais rarefeitos. Não se pode simplesmente colocar a culpa, grosso modo, no tal do capetalista, mesmo porque esse cara busca apenas o lucro. E o que é buscar o lucro? É vender o que as pessoas querem. E o que as pessoas querem? É difícil dizer, e se você tiver uma resposta para isso, guarde-a com muito carinho, pois tem gente que já matou por muito menos ao buscá-la. O público, diz-se, pode ser manipulado, ele pode sentar pra assistir televisão e sair de lá com a cabeça toda perturbada pelas propagandas hipnotizantes de cortadores de grama com comando de voz. Ao mesmo tempo, esse público nutre consigo alguns preconceitos, e esses preconceitos não precisam apenas do aparato de comercialização para que sejam instigados à reprodução. Esse povo acha engraçado, esquisito, escroto e com um forte cheiro de macumba quando uma mulher negra resolve sair de casa usando um turbante, em especial se essa mulher negra deixar o cabelo crescer ou se tiver uma gordurinha sobrando, ou mesmo, enfim, se ela não se encaixar no padrão da mulata de cintura fina e glúteos esféricos.
Isso tudo seria o sistema. Os dentes de uma engrenagem parece que vão se encaixando nos da outra e o que deveria ser, a princípio, a luz no fim do túnel, se revelou como sendo na verdade o próprio trem vindo em sua direção. Quer dizer: se o povo acha isso da cultura negra quando usada pelos próprios negros, então que a indústria resolva pegar essa mesma cultura e colocá-la na vitrine parece ser uma coisa bacana, pois assim, pressupomos, o povo vai deixar de olhar com desdém para o caso da mulher negra que resolveu sair de turbante na rua. Ele não está comprando turbantes? Se eu compro turbantes é porque eu dou um valor positivo praquilo, tão positivo que eu até meto a mão no bolso. Ou vai dizer que não é assim?
Mais ou menos. A crítica é feita no sentido de que o processo de tornar um artefato cultural num produto é um processo de esvaziamento. Você pega todos os significados daquilo, joga fora e coloca o que restou numa embalagem toda brilhosa e a um preço promocional. Os alicerces culturais daquele artefato são apagados, portanto. O problema é que a priori não parece haver problema nenhum, mesmo porque quando um produto nos é vendido, eu não sou obrigado a comprar todos os significados que em algum ponto perdido da história ele ostentou. Eu compro porque achei bonito ou porque de algum modo aquilo ali supre minhas necessidades no momento. Uma camisa de um festival de rock alternativo também pode ser esvaziada se a empresa resolver adaptar a capa do disco para uma versão cômica com o Homer dedilhando uma guitarra. Isso também é esvaziamento.
Só que o mecanismo da apropriação cultural, dizem, não é o de tratar a cultura negra de maneira melhor apenas porque seus artefatos estão conseguindo tirar a empresa do vermelho. O satanás da apropriação cultural pode manter inalterado seu funcionamento mesmo pegando um artefato da cultura estigmatizada. Por isso é que o pessoal diz que é apropriação cultural: ele pega e continua com essa cara lerda. Só que, agora, a mulher negra parece se ver espoliada até mesmo daquele artefato cultural que, ora essa, era da sua cultura. Não se trata de um sentimento de pertença que, embora nas mãos histriônicas se transforme nuns tremeliques puristas, implique que a pessoa julgue que sua cultura não pode entrar em contato com outras. O problema não é esse. Para voltarmos à indagação da Djamila, como chamar de troca ou de contato entre culturas se uma dela põe a bota na cabeça da outra?
Mais ou menos. A crítica é feita no sentido de que o processo de tornar um artefato cultural num produto é um processo de esvaziamento. Você pega todos os significados daquilo, joga fora e coloca o que restou numa embalagem toda brilhosa e a um preço promocional. Os alicerces culturais daquele artefato são apagados, portanto. O problema é que a priori não parece haver problema nenhum, mesmo porque quando um produto nos é vendido, eu não sou obrigado a comprar todos os significados que em algum ponto perdido da história ele ostentou. Eu compro porque achei bonito ou porque de algum modo aquilo ali supre minhas necessidades no momento. Uma camisa de um festival de rock alternativo também pode ser esvaziada se a empresa resolver adaptar a capa do disco para uma versão cômica com o Homer dedilhando uma guitarra. Isso também é esvaziamento.
Só que o mecanismo da apropriação cultural, dizem, não é o de tratar a cultura negra de maneira melhor apenas porque seus artefatos estão conseguindo tirar a empresa do vermelho. O satanás da apropriação cultural pode manter inalterado seu funcionamento mesmo pegando um artefato da cultura estigmatizada. Por isso é que o pessoal diz que é apropriação cultural: ele pega e continua com essa cara lerda. Só que, agora, a mulher negra parece se ver espoliada até mesmo daquele artefato cultural que, ora essa, era da sua cultura. Não se trata de um sentimento de pertença que, embora nas mãos histriônicas se transforme nuns tremeliques puristas, implique que a pessoa julgue que sua cultura não pode entrar em contato com outras. O problema não é esse. Para voltarmos à indagação da Djamila, como chamar de troca ou de contato entre culturas se uma dela põe a bota na cabeça da outra?
Eu repito: a ideia não parece ruim. Mas sabem como é. Vocês me conhecem. Há o que ser indagado. Disse, também no texto passado, que as pessoas brancas podem muito bem deixar de se apropriar da cultura negra, o que não quer dizer que os mecanismos de segregação e estigmatização serão deixados de lado. Dá pra simplesmente voltar à estaca zero, por exemplo. Do mesmo modo, pode ser que se crie um pequeno espaço de valorização daquela cultura, mas esse espaço também pode ser, por seu turno, estigmatizado. Quando se diz que o racismo é estrutural (e de novo eu sigo o que disse no outro texto), o que se quer dizer é que soluções paliativas são insuficientes. Criar um Centro de Estudos de Cultura Negra numa universidade não parece ser a solução ideal se, na porta ao lado, o doutorando negro que resolver estudar a filosofia tomista se ver diante de um preconceito paleolítico por ter resolvido sair do parquinho de diversões que comodamente criamos para ele.
Além do mais, o exemplo que dei da mulher que sai de casa usando um turbante revela alguns pontos interessantes. O padrão de beleza humano não é uma construção social pura e simples. Ele possui bases biológicas. É um quesito de atratividade sexual. Não quer dizer que as pessoas vão se relacionar umas com as outras e se tornar confidentes e se amar até que a morte os separe apenas com base no critério da atratividade sexual. Mas o fator da beleza humana possui bases biológicas, e não se pode dizer que a indústria tira esse tipo de coisa da cartola quando contrata modelos com uma cintura de determinados centímetros ou um rosto de determinado formato.
Ora: uma modelo negra que se encaixe no padrão corpóreo de beleza humana, se resolver usar um turbante, dificilmente será estigmatizada com a mesma intensidade. Pode ser ainda assim que ela o seja, visto que o preconceito é tão nojento que mesmo que um negro ocupe o topo seja lá do que for (ele pode ser o cientista chefe, pode ser o âncora ou pode ser o presidente de uma nação), ainda assim ele estará sujeito a comentários maldosos que possuirão um grau acentuado de gratuidade. Claro que todos nós estamos sujeitos a algo do tipo, mesmo porque não se pode subestimar a criatividade da maledicência: a pessoa, se não puder implicar com a cor da sua pele e com seu fenótipo, vai implicar com seu jeito de andar ou com sua pronúncia de certas palavras. Enfim. A questão é que essa mulher negra dentro dos padrões, digamos, sofrerá preconceito em grau muito menor que a mulher negra fora dos padrões. Ora: isso não quer dizer que toda mulher branca vá deixar de sofrer preconceito ou de ser alvo de comentários maldosos se sair usando um turbante. Se ela também estiver fora dos padrões e se for gorda, por exemplo, acho bem improvável que ela deixe de sofrer comentários maldosos.
Claro que aqui seria necessário ver o teor desses comentários também. Quando uma pessoa negra usa um artefato de sua cultura e ainda assim recebe um comentário maldoso, não é implausível que um comentário desses denigra outros aspectos da cultura negra. Dizer, sei lá, que parece macumbeira com um turbante desses. Só não sei até que ponto coisas assim ocorrem com toda a frequência que a militância alega. Parto do princípio que é razoável sim dizer que os comentários maldosos feitos a uma mulher negra, fora dos padrões, usando um turbante, são comentários que tendem a denegrir, de lambuja, a cultura negra e não apenas a aparência daquela mulher, caso contrário de uma mulher branca também fora dos padrões e também usando um turbante, visto que, para esta última, as pessoas quando muito diriam que ficou horrorosa e mais parece uma jubarte com touca de natação. O turbante para ela será quando muito a cereja do bolo e nem sempre será o foco das críticas. Que para a mulher negra exista esta outra possibilidade de comentário maldoso é um modo de dizer que as pessoas associam certas características e imagens da cultura negra e incorporam tais características a seu arsenal de insultos. Afinal de contas me parece que a maioria das pessoas vê o candomblé ou umbanda, por exemplo, como coisas ruins, demoníacas. E esse é o problema. É a esse tipo de estigmatização que se deve combater, visto que ela é a raiz de todos os problemas. Mesmo se supormos que a mulher branca que usa o turbante seja uma modelo de passarela, se alguém vier criticá-la por usar o turbante, dizendo, sei lá, que é coisa de macumbeiro, ela pode se defender dizendo que comprou apenas porque achou bonito, e não me parece implausível que, voltando pra casa e pensando naquele comentário, ela perceba o quão artificial é que se estigmatize um turbante e uma cultura.
Como dito, a vendagem de artefatos de uma outra cultura por si só não é um problema. Trata-se, na verdade, de um aspecto neutro. Podemos, claro, pressupor que a vendagem nunca vem desacompanhada, e se imaginarmos que a vendagem de turbantes está intimamente relacionada à indústria da moda, onde o círculo se fecha e modelos negras, mesmo que esbeltas corporalmente, são chutadas pra escanteio pelo simples fato de serem negras ou pelas desculpas alternativas de que o povo não compra o que é vendido pelo corpo negro (e aqui voltamos à circularidade do tal do Sistema); se imaginarmos, assim sendo, que a vendagem de um turbante se associa à indústria da moda, não se pode querer dizer que a indústria seja neutra em relação a isso, e de fato este não me parece um argumento ruim, embora não implique dizer que todo o circuito de vendagem seja por definição contaminado pelos protozoários do preconceito racial.
Pode-se também dizer que existem artefatos da cultura negra que mesmo que usados por brancos, ainda assim serão estigmatizados. Um rastafari, por exemplo. Aqui se pode redarguir que um rastafari talvez não tenha sido apropriado do mesmo modo que um turbante, e não sei que tipo de resposta poderia ser dada. Quem sabe dizer, como muitos já o fizeram, que na verdade o turbante não é coisa apenas da cultura negra, isto é, não se pode dizer que apenas a cultura negra possui turbantes como aspecto de sua cultura, visto que nessas horas sempre surge um historiador para mostrar que alguém lá naquele quiproquó da Mesopotâmia também usava, ou então uma tribo de índios que mora dentro do tronco de uma sequoia.
Nenhum desses argumentos é ruim (pelo contrário: são de uma notável consistência) e não podem ser tratados com desprezo. Já é de conhecimento geral que a militância, quando quer, tapa os ouvidos e deixa de escutar a voz da razão do mesmo modo que uma criança começa a gritar mais alto quando os pais pedem pra que arrume o quarto. Até que ponto insistir no conceito da apropriação cultural é uma maneira direta e eficiente de combater o problema nuclear da estigmatização? Não seria melhor deixar que as pessoas usassem o que bem entendessem, de modo que, ao invés de ficar implicando com usos individuais, se buscasse ressaltar a importância daquele artefato e de que modo o ricochete estigmatizante é hipócrita? Não quero dizer que a militância não o faça, mas é que às vezes me parece que se cria um número grande demais de conceitos que embaralham a percepção, que confundem e acabam, portanto, por quedarem inúteis. Até que ponto a militância hoje se esforça em se comunicar com as pessoas comuns? Quando rotulam com selo de "vitimismo" alguma reivindicação qualquer, tenho a impressão de que na maior parte dos casos a pessoa pega um problema muito sério e finge que ele não existe, ou então o trata de maneira ridícula só porque a ideologia inimiga abordou primeiro aquele assunto. E este é precisamente o ponto, pois não deixa de ser irônico (pra não descambar em adjetivos como "hipócrita") ver o próprio ativismo aplicando o mesmo rótulo pra garota do turbante. O mínimo que se exige do ativismo é coerência. Se ele não zela por uma coisa tão simples, fica difícil acreditar que ele está preocupado em estabelecer um diálogo ainda que na base do grunhido com o brasileiro médio.
Além do mais, não custa lembrar que a indústria não manipula as pessoas como se fossem fantoches, e essas mesmas pessoas não são um poço profundo de preconceitos. Esse tipo de coisa só funciona nas charges (e das bem ruins, por sinal). Não quero dar a entender, de novo, que a tal da indústria, pra me valer do termo da Djamila, é uma coisa neutra do começo ao fim, mas é preciso reconhecer que ela é pelo menos mais neutra e alheia do que a esquerda tende a aceitar que ela é. Já apresentei os rudimentos: vendo o que o povo compra. Pode-se interpretar como um momento hipócrita ou como mais uma traquinagem desses capetalistas de plantão, mas é preciso reconhecer, ainda, que o combate à estigmatização mais cedo ou mais tarde terá de passar pelas instâncias mercadológicas, e se as pessoas comuns não conseguirem atribuir valor (e quanto a isto sou bem claro: valor de mercado) à cultura negra, acho um tanto difícil que os estigmas parem de agrilhoar.
Não venho, povo da Galileia, dar soluções. Essa não é uma redação do ENEM. O argumento do sistema é muito mais amplo, e que ele mais cedo ou mais tarde vá bater na porta do capetalismo não espanta: enxerga-se que a raiz da estigmatização social estaria na raiz da própria sociedade capetalista. Não me parece um raciocínio lá muito válido, mesmo porque não vejo nada que indique que num regime capetalista (em especial se tomarmos as configurações de livre mercado) a estigmatização deva ser uma peça necessária ao quebra-cabeças. Se considerarmos que o preconceito racial é uma espécie de demônio que se ajusta aos confinamentos que tentamos lhe impôr, não sei porque motivo seria tão adequado assim descartarmos do baralho uma carta que possui como princípio a geração de valor. Claro que, se digo isto, então de algum modo pressuponho que o objetivo de todos os que criticam a apropriação cultural seja a supressão de uma sociedade de classes. Pode ser que o que se reivindique seja, justamente, um modo de permitir que a cultura estigmatizada gere valor por aquilo que ela é e não por ser apenas e tão somente um acessório mais ou menos fashion. Em ser um aviso aos indivíduos que pagaram por aquele artefato, pode ser também um modo de chamar atenção não para o fato de que doravante estão impedidos de usarem aquilo, senão que poderiam, aproveitando-se do fato de que já estão usando mesmo, prestar mais atenção nas estigmatizações com que adoçam o café. Não me parecem maneiras absurdas de se encarar a situação.
Como dito, a vendagem de artefatos de uma outra cultura por si só não é um problema. Trata-se, na verdade, de um aspecto neutro. Podemos, claro, pressupor que a vendagem nunca vem desacompanhada, e se imaginarmos que a vendagem de turbantes está intimamente relacionada à indústria da moda, onde o círculo se fecha e modelos negras, mesmo que esbeltas corporalmente, são chutadas pra escanteio pelo simples fato de serem negras ou pelas desculpas alternativas de que o povo não compra o que é vendido pelo corpo negro (e aqui voltamos à circularidade do tal do Sistema); se imaginarmos, assim sendo, que a vendagem de um turbante se associa à indústria da moda, não se pode querer dizer que a indústria seja neutra em relação a isso, e de fato este não me parece um argumento ruim, embora não implique dizer que todo o circuito de vendagem seja por definição contaminado pelos protozoários do preconceito racial.
Pode-se também dizer que existem artefatos da cultura negra que mesmo que usados por brancos, ainda assim serão estigmatizados. Um rastafari, por exemplo. Aqui se pode redarguir que um rastafari talvez não tenha sido apropriado do mesmo modo que um turbante, e não sei que tipo de resposta poderia ser dada. Quem sabe dizer, como muitos já o fizeram, que na verdade o turbante não é coisa apenas da cultura negra, isto é, não se pode dizer que apenas a cultura negra possui turbantes como aspecto de sua cultura, visto que nessas horas sempre surge um historiador para mostrar que alguém lá naquele quiproquó da Mesopotâmia também usava, ou então uma tribo de índios que mora dentro do tronco de uma sequoia.
Nenhum desses argumentos é ruim (pelo contrário: são de uma notável consistência) e não podem ser tratados com desprezo. Já é de conhecimento geral que a militância, quando quer, tapa os ouvidos e deixa de escutar a voz da razão do mesmo modo que uma criança começa a gritar mais alto quando os pais pedem pra que arrume o quarto. Até que ponto insistir no conceito da apropriação cultural é uma maneira direta e eficiente de combater o problema nuclear da estigmatização? Não seria melhor deixar que as pessoas usassem o que bem entendessem, de modo que, ao invés de ficar implicando com usos individuais, se buscasse ressaltar a importância daquele artefato e de que modo o ricochete estigmatizante é hipócrita? Não quero dizer que a militância não o faça, mas é que às vezes me parece que se cria um número grande demais de conceitos que embaralham a percepção, que confundem e acabam, portanto, por quedarem inúteis. Até que ponto a militância hoje se esforça em se comunicar com as pessoas comuns? Quando rotulam com selo de "vitimismo" alguma reivindicação qualquer, tenho a impressão de que na maior parte dos casos a pessoa pega um problema muito sério e finge que ele não existe, ou então o trata de maneira ridícula só porque a ideologia inimiga abordou primeiro aquele assunto. E este é precisamente o ponto, pois não deixa de ser irônico (pra não descambar em adjetivos como "hipócrita") ver o próprio ativismo aplicando o mesmo rótulo pra garota do turbante. O mínimo que se exige do ativismo é coerência. Se ele não zela por uma coisa tão simples, fica difícil acreditar que ele está preocupado em estabelecer um diálogo ainda que na base do grunhido com o brasileiro médio.
Além do mais, não custa lembrar que a indústria não manipula as pessoas como se fossem fantoches, e essas mesmas pessoas não são um poço profundo de preconceitos. Esse tipo de coisa só funciona nas charges (e das bem ruins, por sinal). Não quero dar a entender, de novo, que a tal da indústria, pra me valer do termo da Djamila, é uma coisa neutra do começo ao fim, mas é preciso reconhecer que ela é pelo menos mais neutra e alheia do que a esquerda tende a aceitar que ela é. Já apresentei os rudimentos: vendo o que o povo compra. Pode-se interpretar como um momento hipócrita ou como mais uma traquinagem desses capetalistas de plantão, mas é preciso reconhecer, ainda, que o combate à estigmatização mais cedo ou mais tarde terá de passar pelas instâncias mercadológicas, e se as pessoas comuns não conseguirem atribuir valor (e quanto a isto sou bem claro: valor de mercado) à cultura negra, acho um tanto difícil que os estigmas parem de agrilhoar.
Não venho, povo da Galileia, dar soluções. Essa não é uma redação do ENEM. O argumento do sistema é muito mais amplo, e que ele mais cedo ou mais tarde vá bater na porta do capetalismo não espanta: enxerga-se que a raiz da estigmatização social estaria na raiz da própria sociedade capetalista. Não me parece um raciocínio lá muito válido, mesmo porque não vejo nada que indique que num regime capetalista (em especial se tomarmos as configurações de livre mercado) a estigmatização deva ser uma peça necessária ao quebra-cabeças. Se considerarmos que o preconceito racial é uma espécie de demônio que se ajusta aos confinamentos que tentamos lhe impôr, não sei porque motivo seria tão adequado assim descartarmos do baralho uma carta que possui como princípio a geração de valor. Claro que, se digo isto, então de algum modo pressuponho que o objetivo de todos os que criticam a apropriação cultural seja a supressão de uma sociedade de classes. Pode ser que o que se reivindique seja, justamente, um modo de permitir que a cultura estigmatizada gere valor por aquilo que ela é e não por ser apenas e tão somente um acessório mais ou menos fashion. Em ser um aviso aos indivíduos que pagaram por aquele artefato, pode ser também um modo de chamar atenção não para o fato de que doravante estão impedidos de usarem aquilo, senão que poderiam, aproveitando-se do fato de que já estão usando mesmo, prestar mais atenção nas estigmatizações com que adoçam o café. Não me parecem maneiras absurdas de se encarar a situação.