Como julgar um poema infantil?
De uns tempos pra cá, meus amigos, acabou acontecendo: bloqueio de escrita. Assistir videoaulas e ler textos explicando se é possível a concessão de anistia, em nível estadual, para os 700 policiais indiciados por revolta no Espírito Santo, terminou por achatar minha força de vontade em pegar uma ou outra madrugada pra escrever sobre poesia. Resultado, por óbvio, de quando as penas começam a cair e você, ao contemplar seu reflexo numa poça d'água, se reconhece como mais um espécime do gênero Concurseiropublicus.
Ocorre que o camarada Pedro, já conhecido do leitor, veio me contar que ele vai fazer parte do júri de um concurso de poesia. Especificamente, com poemas de alunos do Ensino Médio e Ensino Fundamental. Isso lá em Itajubá, onde ele é um imortal da Academia de Letras da cidade. É. Sei que não parece fazer muito sentido ser um imortal de uma academia de letras de uma cidade do interior, mas acho que a essa altura do campeonato ninguém realmente leva a sério a alcunha de "imortal" para os membros dessas instituições. Se no período barroco as congregações de escritores se permitiam a brincadeira de se intitularem de coisas como Academia dos Esquecidos, não dá pra querer traduzir a alcunha dada pelas academias de hoje como uma espécie de empáfia. É apenas um modo de fazer com que a franquia machadiana, ou a franquia francesa, se quisermos ser até mais exatos, não se descaracterize. Você não pode chamar um Big Mac de Não-É-Como-Na-Propaganda-Burguer apenas porque investiu uma grana preta no drive thru. Pelo jeito não pode, também, chamar os imortais de outra coisa (algo como É-O-Que-Deu-Pra-Reunir). Esse tipo de academia costuma ser apenas um modo dos escritores criarem um Clube do Bolinha, que, em ambientes com temperatura e pressão ideais, realmente faria algo pela literatura do local. Caso contrário, vão se limitar à aquisição de retroprojetores e medalhas (por favor, medalhas).
Enfim. Uma situação meio interessante, essa em que o Pedro se meteu. Eu disse, há um tempinho, que é claro que o bom crítico é o rigoroso, e isso pelo simples fato de que a tradição literária é algo riquíssimo, capaz de contar com os sonetos de Mallarmé em seu bojo. Entende? O problema não sou eu. Não ponha a culpa em mim. Esse seu soneto de amor com quinze referências a borboletas seria revolucionário se tivesse sido escrito no Mesolítico. Ao mesmo tempo, é dever do crítico ser rigoroso consigo mesmo, no sentido de que ele não pode apenas excretar um embrulho de negatividades e depois sair por aí rebolando a dança da vitória, como se a atividade crítica se resumisse a encontrar um número suficiente de sinônimos para as palavras "lixo" e "porcaria", tudo envolto no embrulho do "as universidades brasileiras" e "os estudos multiculturalistas". Qualquer macaco treinado sabe jogar cascas de banana na cabeça das pessoas, insuflando o peito e dando um ar de sabichão pois, bem, minha terra em palmeiras e de vez em quando eu pulo de um galho pro outro.
Ser rigoroso consigo mesmo envolve o fato de que o crítico terá de aguentar a retranca de que tornou pública uma leitura sua, uma opinião sua. É outro segredinho da crítica que eu também já revelei aqui no bloguinho há um tempo atrás: toda crítica e toda a crítica é criticável. Não se pode pretender que a crítica seja uma ciência exata. Subjetiva é claro que ela é, mas só subjetiva eu não sei não. Gosto de dizer que sou um relativista em matéria crítica, mas isso no fundo é só pra ver meu interlocutor ter um ataque cardíaco. Existem zonas de objetividade consideráveis quando falamos do debate valorativo, algumas dessas zonas independentes de aspectos propriamente estéticos, outras nem tanto e outras decorrentes do fato de que o trabalho da crítica é uma questão de argumentos. Se leio um texto e, vamos supor, o acho bom, então meu próximo passo é argumentar o porquê dele ser bom. Não tenho como chegar a uma prova ou um teorema de que aquele texto é bom, a não ser que eu me valha de um número útil e cômodo de expressões e formas de valoração que são, por si sós, tidas em alta estima pela comunidade de leitores (hoje em dia um dos lados da corda gosta muito de "representatividade" e derivados enquanto o outro fica lustrando a sarcófago do "Belo").
É uma objetividade, essa. E que, pelo fato de que é expressa, pelo fato de que é detalhada, passa a poder ser discutida de maneira muito mais concreta. Agora eu não digo simplesmente que gostei e encastelo toda a discussão por trás de uma muralha de vidro fosco. Se digo que gostei e que gostei por causa disso e disso, então outros leitores poderão me questionar a respeito, precisamente, do "disso e disso". Fatalmente chegará o instante em que iremos perceber que, por mais detalhista que eu seja, meus argumentos possuem falhas e pontos cegos, no sentido de que posso enxergar uma passagem como prolixa e meu leitor, pelo contrário, achar que cada palavra ali possui o peso certo, ou então de elogiar outra passagem pelo fato da linguagem ser revolucionária ao passo que meu leitor julgaria essa mesma linguagem como, no máximo, rala e esquisita, ou então de dizer que aquela passagem ali é muito clichê, no que meu leitor retrucaria que mesmo uma passagem clichê pode ser de particular interesse, e que ser clichê não é prova absoluta da falta de qualidade.
Em última instância, portanto, cada um vai voltar para sua casa do tabuleiro, guardando consigo o pacote de sua opinião pessoal. Dá até mesmo a entender que nada mudou. O que, por óbvio, é uma impressão absolutamente errada, pois que toda essa discussão travada entre nós mudou o fato de que mesmo que eu não use o que a conversa com o outro em ensinou para aquele livro que discutimos, eu posso, daqui a uma semana, ler um outro e me lembrar que, poxa vida, não é que o que ele disse se encaixa aqui? Ou então, melhor ainda, esse quiproquó todo deixou como legado um punhado de argumentos, bem como um esforço de pelo menos duas cabecinhas pensantes em destrinchar a obra e derrubar aquelas muralhas de vidro fosco que mencionei antes, ou então o jardim de flores de plástico das resenhas flácidas de sempre, bem como de outras instâncias que fazem com que um livro seja mais bem recebido apenas porque foi publicado numa casa editorial de renome ou agraciado com uma premiação badalada. A crítica não pode se contentar com aquele esquema meio abobalhado de resumir o enredo e arrematar com um "livro arrebatador". Mesmo que eu concorde que o livro é bem bacana, o simples fato de que eu especifique o que realmente é legal nesse livro é um serviço muito maior do que esse esquema cabalístico de estrelinhas das resenhas flácidas. Pois a partir do instante em que a crítica instiga o diálogo, ela rompe com isso tudo e põe na mão do leitor o controle das engrenagens. Claro que com muita facilidade a crítica pode se tornar num exercício de enxotar os bárbaros do banquete, no que o crítico se sentaria num Trono de Ferro e julgaria com mão dura e muita pouca abertura ao diálogo as obras que se prostrassem em sua frente. Aqui, como o leitor pode ver, o problema é que todo o rigor que se exige do crítico se barateou apenas para um lado, e o que deveria ser uma virtude, pelo fato de que o crítico não sabe se olhar no espelho, se tornou caricatura.
Agora bem se entenda: por rigor crítico eu também me refiro ao fato de que a literatura é uma coisa muito ampla, muito diferente. Uma coisa heterogênea, múltipla. Você não pode querer julgar a literatura inteirinha com base apenas em alguns princípios que você pôs no bolso enquanto espanava os octágonos da Biblioteca de Babel ou, pior ainda, aprendeu dos críticos mais abalizados feito um cordeirinho manso. O crítico não trabalha com um mata-moscas. A carga de leituras do crítico é um equipamento de mergulho que lhe permite captar as sinuosidades próprias da obra, e, ao invés de querer julgar todos os poemas da face da terra como se pretendessem ser a Divina Comédia, ele entende que existem poemas de propostas distintas, e, portanto, ele deve aplicar múltiplos olhares para todos eles.
A partir daqui nós já podemos pousar e desbravar um pouco a selva que aparece à nossa frente. É lícito que eu aplique o mesmo rigor que aplico a poemas adultos quando estou diante de poemas infantis?
A resposta dada, ou pelo menos a resposta que deduzimos depois de todos os contorcionismos do interlocutor, é de que ele deixa a mão mais leve. Como julgar o poema de uma criança e ainda assim segurar o porrete? A pessoa quando é adulta, bem... Ela já teve tempo de ler Diogo Bernardes. Ela tem sua estrutura óssea toda formada. Tomou muito iogurte pra chegar ao que é hoje. Não dá pra querer passar a mão coisíssima nenhuma. Em marmanjo? Ora pois.
Bem. O problema dos concursos literários é que eles sempre dependem muito do espaço amostral. Espaço amostral, leia-se: todos os poemas que foram inscritos e que você tem a missão de julgar. Sei que existem aqueles em que você sai à caça do livro que mais tenha gostado no ano, mas no geral prêmios assim são raríssimos. Digo que é um problema pois mesmo que tenhamos um espaço amostral populoso, ainda assim é bem possível que daqueles, sei lá, mil poemas inscritos, nenhum deles realmente seja bom. Lembro do Guilherme de Almeida julgando aquele livro de poemas do Guimarães Rosa, Magma, onde, salvo engano, ele disse que se dependesse dele premiaria só o livro do Rosa em primeiro lugar, sem colocar ninguém no segundo e no terceiro, tamanho era o desnível. Pois veja você que o questionamento pode adquirir uma versão até mais angustiosa: e se, dos poemas inscritos, eu julgar que nenhum merece a glória de um primeiro lugar?
Dificilmente um concurso literário aceitará a previsão, em seu edital, de nenhum primeiro lugar para aquele concurso. É preciso que exista um, mesmo porque o propósito de um prêmio literário é o de estimular as pessoas a participarem e, assim, criar um clima um pouquinho mais amistoso, nem que uma única noite no ano. E a saída já é esperada: eu vou pegar o espaço amostral ali e vou julgar o poema que me pareceu o menos pior. Tem algum segredo? Organizei durante dois anos um evento literário na faculdade onde estudo e sei do que estou dizendo: a maior parte dos textos é bem ruim, e dos dois anos que organizei, eu não vi um só texto que eu realmente chamaria de bom. Se dependesse de mim eu faria um origami com a nota de cem dos vencedores. Mas, como o propósito do evento era o de fazer com que protótipos de juristas brincassem de escrever contos e poemas, então era necessário colocar alguém no pódio. Para tanto, eu apenas fazia a pré-seleção dos textos que me parecessem os menos piores (pois o concurso contava com duas fases, a segunda com a participação de um crítico de fora). Trauma nenhum, nenhum embuste.
Claro que quando nós transportamos essa ideia para um concurso literário maior, ela pode parecer um pouco decepcionante. E se, vamos supor, no âmbito de um Jabuti, que envolve o mecanismo das inscrições e do espaço amostral limitado, nenhum daqueles livros ali realmente agradar? Claro que existe um mecanismo de pré-seleção também, de modo que não é que o crítico leia tudo o que foi inscrito. Mas vamos supor que, sei lá, o crítico se veja incumbido de ler dez finalistas. E se, desses dez, nenhum o agradar? Isso aconteceu mais ou menos assim alguns anos atrás com um tal de Jurado C. (que mais tarde se revelaria como sendo o Rodrigo Gurgel). Ele deu notas baixíssimas para alguns dos romances ali (coisa na casa do zero) e deu nota máxima para outro romance. O resultado é que aquele romance que era o favorito para vencer, por causa das notas baixíssimas dadas pelo jurado C, perdeu a dianteira e foi ultrapassado pelo outro romance. Um bafafá que só. Já dei minha opinião sobre o assunto aqui no bloguinho: não acho que houve dolo na conduta do Gurgel, no sentido de que ele quis, de forma consciente, manipular o resultado. Acho que houve culpa, entendida aqui no sentido jurídico: imperícia. Ou, se quiser usar um termo até mais adequado, excesso, despautério. Não acredito que se possa dar nota zero a um livro com tanta facilidade, no sentido de é só dar nota zero e pronto, ou, pior ainda, é só dar nota zero e se valer de uns textos mequetrefes dizendo do proselitismo e do panfletarismo da obra. É muito pouco. Tenho a plena convicção de que é preciso um comentário consistente que sirva para justificar uma nota máxima assim como é necessário um para justificar uma mínima. Mostra falta de rigor consigo próprio, algo que, bem se entenda, se observarmos a obra crítica que Gurgel desenvolveria depois (salvo engano já desenvolvia a essa época também), é algo estranho de se pensar até mesmo pra ele. Mas, em última instância, é um crime contra a incolumidade literária julgar que as obras inscritas num determinado concurso são todas ruins? Não. (O que, para repisar o que foi dito, não nos leva à comodidade iconoclasta de uma nota zero.)
No caso de uma premiação infantil bastaria fazer o mesmo. Podemos esperar, afinal de contas, um número muito grande de poemas ruins. Que fazer? Escolher o menos pior. Ou, quem sabe, escolher o menos pior e ainda assim dar uma afagada na cabeça dos pimpolhos, afinal de contas são crianças e não possuem a obrigação de, pelo menos agora, escreverem algo que rivalize com As horas de Katharina.
Bem. Quanto a isso do afago, não sei. Não acho que uma criança, por definição, sempre escreverá um poema que seja pior que o de um adulto. Acho perfeitamente possível que uma criança escreva um poema que seja muito melhor que o maremoto de versos cancerígenos que muitos adultos estão neste exato instante escrevendo, compelidos que são, apenas, pela situação amorosa. Até mesmo um poema lírico pode sair da pena de uma criança e ainda assim surpreender, como se existissem, portanto, gêneros poéticos onde o gênio infantil pudesse até mesmo chegar a resultados que rivalizassem com os dos mestres consumados. Penso por exemplo num haikai. O que impede uma criança de escrever um haikai que seja tão bom quanto um haikai de Buson? O haikai é um tipo de poema, ao que dizem, muito praticado no Japão (ou que pelo menos já o foi), a ponto de até mesmo populares escreverem haikais. O que impede que da pena de um simpático metalúrgico aposentado saia um bom haikai? Pode ser que saia por sorte. Sei que estou começando a entrar em assuntos que fazem com que o pessoal de carapaça mais rígida dê uns tremeliques, mas não acho nem um pouco implausível que alguém escreva algo que preste meio que ao acaso. Se a pessoa insistir demais nisso de escrever poesia, aliás, se ela passar uma vida toda rabiscando cadernos, é bem implausível que ela nunca escreva nada que seja pelo menos palatável, que ela passe a vida toda sem escrever pelo menos um verso que preste. Como o haikai é um poema muito mais curto e simples, nada impede que ele chegue a um bom resultado. Como disse o Sérgio Rodrigues num texto um tanto quanto instigante, não é que escrever um bom conto seja mais difícil que escrever um bom romance. Eu posso escrever um bom conto por sorte com muito mais facilidade do que escreveria um bom romance por sorte. O motivo? O tamanho, ora pois. O tamanho.
Não quero dizer com isso que a partir de hoje a regra do jogo, Galvão, é sair por aí escrevendo a esmo até que algo de bom saia. Disse que é implausível que nunca saia, e sustento que o seja, mas não se pode ignorar que ter uma miudíssima centelha de luz em toda uma obra caudalosa é pouco demais. Nenhum escritor que sequer queira sentir o aroma do adjetivo "bom" antes de seu nome pode esperar obter alguma coisa com um golpe de sorte. Mesmo porque pode muito bem ser que esse tal golpe de sorte passe despercebido, ou seja, que, como a esmagadora maioria do que ele escreveu é ruim, leitor nenhum vai se aventurar naquele oceano de merda só pra encontrar um fiapo de ouro que, dizem os boatos, pede socorro ali no meio. É o paradoxo Glauco Mattoso: quem não garante que, no meio daqueles milhares de sonetos, não existam alguns sonetos ótimos? O problema é: quem vai se aventurar a ler aquilo tudo? (Claro que aqui existem outras coisas a serem sopesadas, seara na qual não pretendo me adentrar por ora, mesmo porque eu poderia responder a tais questionamentos de modo muito cômodo se dissesse que já encontrei sim sonetos maravilhosos no meio da produção do Glauco.)
Se uma criança for nutrida o suficiente no leite de cabra da poesia infantil, acho bem possível que ela escreva um bom poema infantil. Pode ser que um que funcione como poema infantil de modo muito mais eficiente do que essas coisas que uns marmanjos por aí andam fazendo e apelidando de "infantil", coisas que sempre envolvem uma versão ampliada e sortida da Arca do Vinicius. Claro que nessa discussão toda dos gêneros, o que eu dizia era que se torna implausível imaginarmos que uma criança vá escrever uma epopeia, ou que vá escrever uma paráfrase da pantera do Rilke. O que não quer dizer que, mais uma vez, por definição uma criança esteja impedida de escrever um poema que acrisole um questionamento metafísico digno de nota. A simplicidade das perguntas que o Neruda fez em seu admirável livro (e que pra mim é o melhor de poesia infantil já escrito) consegue, em alguns casos, revelar uma indagação muito profunda, e tenho certeza que se uma criança abrir aquilo ali e tiver o estímulo necessário, ela consegue chegar a questões tão boas quanto. Do mesmo modo, embora seja implausível imaginarmos uma criança começando a partir de Tu ne quaesieris, nada impede que uma criança comece a pensar um universo fantástico cheio de heróis e dragões e espadas cravejadas de ouro, ou que escreva um cordel com intensidade narrativa considerável. Sem contar que se uma criança está distante da epopeia, um adulto também está da poesia infantil, como se a chamada poesia da imaginação infantil permanecesse um verdadeiro mistério a que o adulto só com muito custo lograria alcançar. Não era algo algo por aí o que Picasso dizia: que um dia queria voltar a desenhar como uma criança? Bem: isso não seria um modo de dizer que existem formas de produção artística infantil que também permanecem inacessíveis aos adultos?
Então eu diria que se tivermos uma criança com sagacidade e estímulos bastantes, podemos sim formar um poeta infantil de qualidade. Não é o que se exige para a formação de um poeta: leitura, atenção? Crianças gostam de ler. Ponha isso na cabeça. Pare de achar que são todas umas apalermadas por smartphones. Você já alguma vez já comprou um livro infantil bem bonito para uma criança? Já tentou ler o livrinho do sapo fazendo as vozes? Veja bem: não digo, por gostar de livros, de gostar daquela coisa do cabelos da cor da asa da graúna, mas sim de algo como o voo do mosquito pernilongo. No contexto de um concurso literário escolar, é preciso levar em conta que muitos daqueles alunos vão se inscrever por de algum modo terem sido coagidos pelos professores, que juram de pé junto que chamar todo mundo pra participar sob a promessa de um "vai ser divertido!" (eventualmente um ponto extra na média) é o suficiente, ou vão se inscrever pra ver no que dá; num contexto assim, eu dizia, é claro que muitos poemas ruins surgirão justamente por não virem da pena de quem não tem talento algum ou (caso você seja cético quanto a tese do talento) de quem não teve um mínimo de formação ou estímulo quanto a isto de tornar-se poeta. Sim, normal. Mas acho totalmente possível que coisas legais surjam dessa experiência. O mecanismo crítico será, como dito, o de julgar o poema menos pior, mas nada impede que surja algo realmente bom, ou que uma promessa seja revelada. Quer dizer: você vê aquilo ali, pesa daqui, pesa de lá, vê a maneira com que o moleque errou nessa passagem, com que ele agarrou o lombo do poema no livro escolar naquela outra, e compensa tudo isso com a rima surpreendente, a metáfora curiosa, a sonoridade inusual e pimba: pode ser que com um treino próprio e um estímulo esse pirralho siga a senda da poesia, não é mesmo?
Mas não quero dar a entender que a ideia de passar a mão na cabeça dessas crianças seja de todo odiosa. Acho muito difícil que na prática não se faça algo do tipo, mesmo porque o argumento de que a criança não possui uma formação cognitiva ou mesmo uma formação educacional de acordo com o que, bem ou mal, julgamos como sendo uma, seja um argumento desprovido de razão. Realmente não creio que devamos idiotizar a produção infantil e esperar dela sempre algo bobinho, como se uma criança não pudesse surpreender. O que proponho é um modo de olharmos para a produção infantil que reconheça que, com estímulo e leitura, uma criança pode escrever poemas competentes. Dificilmente poderemos exigir todo o trabalho e consciência que um escritor profissional possuiria, aquele tipo de coisa que envolve horas de trabalho e toda uma vida voltada para o trabalho da escrita. O que não quer dizer que uma criança esteja impossibilitada de se sair com umas coisinhas estupendas.
Ocorre que o camarada Pedro, já conhecido do leitor, veio me contar que ele vai fazer parte do júri de um concurso de poesia. Especificamente, com poemas de alunos do Ensino Médio e Ensino Fundamental. Isso lá em Itajubá, onde ele é um imortal da Academia de Letras da cidade. É. Sei que não parece fazer muito sentido ser um imortal de uma academia de letras de uma cidade do interior, mas acho que a essa altura do campeonato ninguém realmente leva a sério a alcunha de "imortal" para os membros dessas instituições. Se no período barroco as congregações de escritores se permitiam a brincadeira de se intitularem de coisas como Academia dos Esquecidos, não dá pra querer traduzir a alcunha dada pelas academias de hoje como uma espécie de empáfia. É apenas um modo de fazer com que a franquia machadiana, ou a franquia francesa, se quisermos ser até mais exatos, não se descaracterize. Você não pode chamar um Big Mac de Não-É-Como-Na-Propaganda-Burguer apenas porque investiu uma grana preta no drive thru. Pelo jeito não pode, também, chamar os imortais de outra coisa (algo como É-O-Que-Deu-Pra-Reunir). Esse tipo de academia costuma ser apenas um modo dos escritores criarem um Clube do Bolinha, que, em ambientes com temperatura e pressão ideais, realmente faria algo pela literatura do local. Caso contrário, vão se limitar à aquisição de retroprojetores e medalhas (por favor, medalhas).
Enfim. Uma situação meio interessante, essa em que o Pedro se meteu. Eu disse, há um tempinho, que é claro que o bom crítico é o rigoroso, e isso pelo simples fato de que a tradição literária é algo riquíssimo, capaz de contar com os sonetos de Mallarmé em seu bojo. Entende? O problema não sou eu. Não ponha a culpa em mim. Esse seu soneto de amor com quinze referências a borboletas seria revolucionário se tivesse sido escrito no Mesolítico. Ao mesmo tempo, é dever do crítico ser rigoroso consigo mesmo, no sentido de que ele não pode apenas excretar um embrulho de negatividades e depois sair por aí rebolando a dança da vitória, como se a atividade crítica se resumisse a encontrar um número suficiente de sinônimos para as palavras "lixo" e "porcaria", tudo envolto no embrulho do "as universidades brasileiras" e "os estudos multiculturalistas". Qualquer macaco treinado sabe jogar cascas de banana na cabeça das pessoas, insuflando o peito e dando um ar de sabichão pois, bem, minha terra em palmeiras e de vez em quando eu pulo de um galho pro outro.
Ser rigoroso consigo mesmo envolve o fato de que o crítico terá de aguentar a retranca de que tornou pública uma leitura sua, uma opinião sua. É outro segredinho da crítica que eu também já revelei aqui no bloguinho há um tempo atrás: toda crítica e toda a crítica é criticável. Não se pode pretender que a crítica seja uma ciência exata. Subjetiva é claro que ela é, mas só subjetiva eu não sei não. Gosto de dizer que sou um relativista em matéria crítica, mas isso no fundo é só pra ver meu interlocutor ter um ataque cardíaco. Existem zonas de objetividade consideráveis quando falamos do debate valorativo, algumas dessas zonas independentes de aspectos propriamente estéticos, outras nem tanto e outras decorrentes do fato de que o trabalho da crítica é uma questão de argumentos. Se leio um texto e, vamos supor, o acho bom, então meu próximo passo é argumentar o porquê dele ser bom. Não tenho como chegar a uma prova ou um teorema de que aquele texto é bom, a não ser que eu me valha de um número útil e cômodo de expressões e formas de valoração que são, por si sós, tidas em alta estima pela comunidade de leitores (hoje em dia um dos lados da corda gosta muito de "representatividade" e derivados enquanto o outro fica lustrando a sarcófago do "Belo").
É uma objetividade, essa. E que, pelo fato de que é expressa, pelo fato de que é detalhada, passa a poder ser discutida de maneira muito mais concreta. Agora eu não digo simplesmente que gostei e encastelo toda a discussão por trás de uma muralha de vidro fosco. Se digo que gostei e que gostei por causa disso e disso, então outros leitores poderão me questionar a respeito, precisamente, do "disso e disso". Fatalmente chegará o instante em que iremos perceber que, por mais detalhista que eu seja, meus argumentos possuem falhas e pontos cegos, no sentido de que posso enxergar uma passagem como prolixa e meu leitor, pelo contrário, achar que cada palavra ali possui o peso certo, ou então de elogiar outra passagem pelo fato da linguagem ser revolucionária ao passo que meu leitor julgaria essa mesma linguagem como, no máximo, rala e esquisita, ou então de dizer que aquela passagem ali é muito clichê, no que meu leitor retrucaria que mesmo uma passagem clichê pode ser de particular interesse, e que ser clichê não é prova absoluta da falta de qualidade.
Em última instância, portanto, cada um vai voltar para sua casa do tabuleiro, guardando consigo o pacote de sua opinião pessoal. Dá até mesmo a entender que nada mudou. O que, por óbvio, é uma impressão absolutamente errada, pois que toda essa discussão travada entre nós mudou o fato de que mesmo que eu não use o que a conversa com o outro em ensinou para aquele livro que discutimos, eu posso, daqui a uma semana, ler um outro e me lembrar que, poxa vida, não é que o que ele disse se encaixa aqui? Ou então, melhor ainda, esse quiproquó todo deixou como legado um punhado de argumentos, bem como um esforço de pelo menos duas cabecinhas pensantes em destrinchar a obra e derrubar aquelas muralhas de vidro fosco que mencionei antes, ou então o jardim de flores de plástico das resenhas flácidas de sempre, bem como de outras instâncias que fazem com que um livro seja mais bem recebido apenas porque foi publicado numa casa editorial de renome ou agraciado com uma premiação badalada. A crítica não pode se contentar com aquele esquema meio abobalhado de resumir o enredo e arrematar com um "livro arrebatador". Mesmo que eu concorde que o livro é bem bacana, o simples fato de que eu especifique o que realmente é legal nesse livro é um serviço muito maior do que esse esquema cabalístico de estrelinhas das resenhas flácidas. Pois a partir do instante em que a crítica instiga o diálogo, ela rompe com isso tudo e põe na mão do leitor o controle das engrenagens. Claro que com muita facilidade a crítica pode se tornar num exercício de enxotar os bárbaros do banquete, no que o crítico se sentaria num Trono de Ferro e julgaria com mão dura e muita pouca abertura ao diálogo as obras que se prostrassem em sua frente. Aqui, como o leitor pode ver, o problema é que todo o rigor que se exige do crítico se barateou apenas para um lado, e o que deveria ser uma virtude, pelo fato de que o crítico não sabe se olhar no espelho, se tornou caricatura.
Agora bem se entenda: por rigor crítico eu também me refiro ao fato de que a literatura é uma coisa muito ampla, muito diferente. Uma coisa heterogênea, múltipla. Você não pode querer julgar a literatura inteirinha com base apenas em alguns princípios que você pôs no bolso enquanto espanava os octágonos da Biblioteca de Babel ou, pior ainda, aprendeu dos críticos mais abalizados feito um cordeirinho manso. O crítico não trabalha com um mata-moscas. A carga de leituras do crítico é um equipamento de mergulho que lhe permite captar as sinuosidades próprias da obra, e, ao invés de querer julgar todos os poemas da face da terra como se pretendessem ser a Divina Comédia, ele entende que existem poemas de propostas distintas, e, portanto, ele deve aplicar múltiplos olhares para todos eles.
A partir daqui nós já podemos pousar e desbravar um pouco a selva que aparece à nossa frente. É lícito que eu aplique o mesmo rigor que aplico a poemas adultos quando estou diante de poemas infantis?
A resposta dada, ou pelo menos a resposta que deduzimos depois de todos os contorcionismos do interlocutor, é de que ele deixa a mão mais leve. Como julgar o poema de uma criança e ainda assim segurar o porrete? A pessoa quando é adulta, bem... Ela já teve tempo de ler Diogo Bernardes. Ela tem sua estrutura óssea toda formada. Tomou muito iogurte pra chegar ao que é hoje. Não dá pra querer passar a mão coisíssima nenhuma. Em marmanjo? Ora pois.
Bem. O problema dos concursos literários é que eles sempre dependem muito do espaço amostral. Espaço amostral, leia-se: todos os poemas que foram inscritos e que você tem a missão de julgar. Sei que existem aqueles em que você sai à caça do livro que mais tenha gostado no ano, mas no geral prêmios assim são raríssimos. Digo que é um problema pois mesmo que tenhamos um espaço amostral populoso, ainda assim é bem possível que daqueles, sei lá, mil poemas inscritos, nenhum deles realmente seja bom. Lembro do Guilherme de Almeida julgando aquele livro de poemas do Guimarães Rosa, Magma, onde, salvo engano, ele disse que se dependesse dele premiaria só o livro do Rosa em primeiro lugar, sem colocar ninguém no segundo e no terceiro, tamanho era o desnível. Pois veja você que o questionamento pode adquirir uma versão até mais angustiosa: e se, dos poemas inscritos, eu julgar que nenhum merece a glória de um primeiro lugar?
Dificilmente um concurso literário aceitará a previsão, em seu edital, de nenhum primeiro lugar para aquele concurso. É preciso que exista um, mesmo porque o propósito de um prêmio literário é o de estimular as pessoas a participarem e, assim, criar um clima um pouquinho mais amistoso, nem que uma única noite no ano. E a saída já é esperada: eu vou pegar o espaço amostral ali e vou julgar o poema que me pareceu o menos pior. Tem algum segredo? Organizei durante dois anos um evento literário na faculdade onde estudo e sei do que estou dizendo: a maior parte dos textos é bem ruim, e dos dois anos que organizei, eu não vi um só texto que eu realmente chamaria de bom. Se dependesse de mim eu faria um origami com a nota de cem dos vencedores. Mas, como o propósito do evento era o de fazer com que protótipos de juristas brincassem de escrever contos e poemas, então era necessário colocar alguém no pódio. Para tanto, eu apenas fazia a pré-seleção dos textos que me parecessem os menos piores (pois o concurso contava com duas fases, a segunda com a participação de um crítico de fora). Trauma nenhum, nenhum embuste.
Claro que quando nós transportamos essa ideia para um concurso literário maior, ela pode parecer um pouco decepcionante. E se, vamos supor, no âmbito de um Jabuti, que envolve o mecanismo das inscrições e do espaço amostral limitado, nenhum daqueles livros ali realmente agradar? Claro que existe um mecanismo de pré-seleção também, de modo que não é que o crítico leia tudo o que foi inscrito. Mas vamos supor que, sei lá, o crítico se veja incumbido de ler dez finalistas. E se, desses dez, nenhum o agradar? Isso aconteceu mais ou menos assim alguns anos atrás com um tal de Jurado C. (que mais tarde se revelaria como sendo o Rodrigo Gurgel). Ele deu notas baixíssimas para alguns dos romances ali (coisa na casa do zero) e deu nota máxima para outro romance. O resultado é que aquele romance que era o favorito para vencer, por causa das notas baixíssimas dadas pelo jurado C, perdeu a dianteira e foi ultrapassado pelo outro romance. Um bafafá que só. Já dei minha opinião sobre o assunto aqui no bloguinho: não acho que houve dolo na conduta do Gurgel, no sentido de que ele quis, de forma consciente, manipular o resultado. Acho que houve culpa, entendida aqui no sentido jurídico: imperícia. Ou, se quiser usar um termo até mais adequado, excesso, despautério. Não acredito que se possa dar nota zero a um livro com tanta facilidade, no sentido de é só dar nota zero e pronto, ou, pior ainda, é só dar nota zero e se valer de uns textos mequetrefes dizendo do proselitismo e do panfletarismo da obra. É muito pouco. Tenho a plena convicção de que é preciso um comentário consistente que sirva para justificar uma nota máxima assim como é necessário um para justificar uma mínima. Mostra falta de rigor consigo próprio, algo que, bem se entenda, se observarmos a obra crítica que Gurgel desenvolveria depois (salvo engano já desenvolvia a essa época também), é algo estranho de se pensar até mesmo pra ele. Mas, em última instância, é um crime contra a incolumidade literária julgar que as obras inscritas num determinado concurso são todas ruins? Não. (O que, para repisar o que foi dito, não nos leva à comodidade iconoclasta de uma nota zero.)
No caso de uma premiação infantil bastaria fazer o mesmo. Podemos esperar, afinal de contas, um número muito grande de poemas ruins. Que fazer? Escolher o menos pior. Ou, quem sabe, escolher o menos pior e ainda assim dar uma afagada na cabeça dos pimpolhos, afinal de contas são crianças e não possuem a obrigação de, pelo menos agora, escreverem algo que rivalize com As horas de Katharina.
Bem. Quanto a isso do afago, não sei. Não acho que uma criança, por definição, sempre escreverá um poema que seja pior que o de um adulto. Acho perfeitamente possível que uma criança escreva um poema que seja muito melhor que o maremoto de versos cancerígenos que muitos adultos estão neste exato instante escrevendo, compelidos que são, apenas, pela situação amorosa. Até mesmo um poema lírico pode sair da pena de uma criança e ainda assim surpreender, como se existissem, portanto, gêneros poéticos onde o gênio infantil pudesse até mesmo chegar a resultados que rivalizassem com os dos mestres consumados. Penso por exemplo num haikai. O que impede uma criança de escrever um haikai que seja tão bom quanto um haikai de Buson? O haikai é um tipo de poema, ao que dizem, muito praticado no Japão (ou que pelo menos já o foi), a ponto de até mesmo populares escreverem haikais. O que impede que da pena de um simpático metalúrgico aposentado saia um bom haikai? Pode ser que saia por sorte. Sei que estou começando a entrar em assuntos que fazem com que o pessoal de carapaça mais rígida dê uns tremeliques, mas não acho nem um pouco implausível que alguém escreva algo que preste meio que ao acaso. Se a pessoa insistir demais nisso de escrever poesia, aliás, se ela passar uma vida toda rabiscando cadernos, é bem implausível que ela nunca escreva nada que seja pelo menos palatável, que ela passe a vida toda sem escrever pelo menos um verso que preste. Como o haikai é um poema muito mais curto e simples, nada impede que ele chegue a um bom resultado. Como disse o Sérgio Rodrigues num texto um tanto quanto instigante, não é que escrever um bom conto seja mais difícil que escrever um bom romance. Eu posso escrever um bom conto por sorte com muito mais facilidade do que escreveria um bom romance por sorte. O motivo? O tamanho, ora pois. O tamanho.
Não quero dizer com isso que a partir de hoje a regra do jogo, Galvão, é sair por aí escrevendo a esmo até que algo de bom saia. Disse que é implausível que nunca saia, e sustento que o seja, mas não se pode ignorar que ter uma miudíssima centelha de luz em toda uma obra caudalosa é pouco demais. Nenhum escritor que sequer queira sentir o aroma do adjetivo "bom" antes de seu nome pode esperar obter alguma coisa com um golpe de sorte. Mesmo porque pode muito bem ser que esse tal golpe de sorte passe despercebido, ou seja, que, como a esmagadora maioria do que ele escreveu é ruim, leitor nenhum vai se aventurar naquele oceano de merda só pra encontrar um fiapo de ouro que, dizem os boatos, pede socorro ali no meio. É o paradoxo Glauco Mattoso: quem não garante que, no meio daqueles milhares de sonetos, não existam alguns sonetos ótimos? O problema é: quem vai se aventurar a ler aquilo tudo? (Claro que aqui existem outras coisas a serem sopesadas, seara na qual não pretendo me adentrar por ora, mesmo porque eu poderia responder a tais questionamentos de modo muito cômodo se dissesse que já encontrei sim sonetos maravilhosos no meio da produção do Glauco.)
Se uma criança for nutrida o suficiente no leite de cabra da poesia infantil, acho bem possível que ela escreva um bom poema infantil. Pode ser que um que funcione como poema infantil de modo muito mais eficiente do que essas coisas que uns marmanjos por aí andam fazendo e apelidando de "infantil", coisas que sempre envolvem uma versão ampliada e sortida da Arca do Vinicius. Claro que nessa discussão toda dos gêneros, o que eu dizia era que se torna implausível imaginarmos que uma criança vá escrever uma epopeia, ou que vá escrever uma paráfrase da pantera do Rilke. O que não quer dizer que, mais uma vez, por definição uma criança esteja impedida de escrever um poema que acrisole um questionamento metafísico digno de nota. A simplicidade das perguntas que o Neruda fez em seu admirável livro (e que pra mim é o melhor de poesia infantil já escrito) consegue, em alguns casos, revelar uma indagação muito profunda, e tenho certeza que se uma criança abrir aquilo ali e tiver o estímulo necessário, ela consegue chegar a questões tão boas quanto. Do mesmo modo, embora seja implausível imaginarmos uma criança começando a partir de Tu ne quaesieris, nada impede que uma criança comece a pensar um universo fantástico cheio de heróis e dragões e espadas cravejadas de ouro, ou que escreva um cordel com intensidade narrativa considerável. Sem contar que se uma criança está distante da epopeia, um adulto também está da poesia infantil, como se a chamada poesia da imaginação infantil permanecesse um verdadeiro mistério a que o adulto só com muito custo lograria alcançar. Não era algo algo por aí o que Picasso dizia: que um dia queria voltar a desenhar como uma criança? Bem: isso não seria um modo de dizer que existem formas de produção artística infantil que também permanecem inacessíveis aos adultos?
Então eu diria que se tivermos uma criança com sagacidade e estímulos bastantes, podemos sim formar um poeta infantil de qualidade. Não é o que se exige para a formação de um poeta: leitura, atenção? Crianças gostam de ler. Ponha isso na cabeça. Pare de achar que são todas umas apalermadas por smartphones. Você já alguma vez já comprou um livro infantil bem bonito para uma criança? Já tentou ler o livrinho do sapo fazendo as vozes? Veja bem: não digo, por gostar de livros, de gostar daquela coisa do cabelos da cor da asa da graúna, mas sim de algo como o voo do mosquito pernilongo. No contexto de um concurso literário escolar, é preciso levar em conta que muitos daqueles alunos vão se inscrever por de algum modo terem sido coagidos pelos professores, que juram de pé junto que chamar todo mundo pra participar sob a promessa de um "vai ser divertido!" (eventualmente um ponto extra na média) é o suficiente, ou vão se inscrever pra ver no que dá; num contexto assim, eu dizia, é claro que muitos poemas ruins surgirão justamente por não virem da pena de quem não tem talento algum ou (caso você seja cético quanto a tese do talento) de quem não teve um mínimo de formação ou estímulo quanto a isto de tornar-se poeta. Sim, normal. Mas acho totalmente possível que coisas legais surjam dessa experiência. O mecanismo crítico será, como dito, o de julgar o poema menos pior, mas nada impede que surja algo realmente bom, ou que uma promessa seja revelada. Quer dizer: você vê aquilo ali, pesa daqui, pesa de lá, vê a maneira com que o moleque errou nessa passagem, com que ele agarrou o lombo do poema no livro escolar naquela outra, e compensa tudo isso com a rima surpreendente, a metáfora curiosa, a sonoridade inusual e pimba: pode ser que com um treino próprio e um estímulo esse pirralho siga a senda da poesia, não é mesmo?
Mas não quero dar a entender que a ideia de passar a mão na cabeça dessas crianças seja de todo odiosa. Acho muito difícil que na prática não se faça algo do tipo, mesmo porque o argumento de que a criança não possui uma formação cognitiva ou mesmo uma formação educacional de acordo com o que, bem ou mal, julgamos como sendo uma, seja um argumento desprovido de razão. Realmente não creio que devamos idiotizar a produção infantil e esperar dela sempre algo bobinho, como se uma criança não pudesse surpreender. O que proponho é um modo de olharmos para a produção infantil que reconheça que, com estímulo e leitura, uma criança pode escrever poemas competentes. Dificilmente poderemos exigir todo o trabalho e consciência que um escritor profissional possuiria, aquele tipo de coisa que envolve horas de trabalho e toda uma vida voltada para o trabalho da escrita. O que não quer dizer que uma criança esteja impossibilitada de se sair com umas coisinhas estupendas.