Agonia métrica num soneto de Augusto dos Anjos.
O contexto foi uma dessas discussões entediantes num grupo de facebook para poetas. Que tenha girado a respeito da métrica já demonstra um pouco a espessa camada de poeira que cobre as espáduas dos integrantes do grupo. Não me lembro exatamente se alguma vez já cheguei a dizê-lo aqui no bloguinho, mas acho que no final das contas os únicos que possuem direito legítimo de discutirem a métrica de um poema por si só, ou seja, como um fim em si mesmo sem que um cheiro de mofo invada as narinas dos presentes, são os tradutores. Eventualmente os críticos também, desde que com isso eles não aborreçam ainda mais do que o normal.
Os poetas eu já não sei. Dentro de uma sala de aula, quem sabe? Digo: muitos cursos de escrita criativa passam uma parte considerável de seu tempo ensinando os aluninhos a metrificar, o que é algo absolutamente desejável se considerarmos que historicamente a poesia fez foi isso mesmo: metrificou. Então é possível que aí também tenhamos espaço. Agora num grupo de facebook para poetas... Meio estranho que a essa altura do campeonato uma discussão destas seja suscitada, não te parece, amigo leitor?
Mais ou menos, mais ou menos. Não quero dizer que os poetas estão proibidos de discutir algo do tipo (quem sou eu na fila do pão, não é mesmo?), ou que, diante de um soneto que se pretenda clássico ("clássico", no contexto da discussão entediante, não entendido como um soneto que reproduza, sei lá, a escansão do português camoniano, mas simplesmente algo que de algum modo equivalha a "marmóreo"), se façam algumas reprovações. Falar da métrica de um poema é uma ferramenta como qualquer outra, e na prática todo bom leitor de poesia precisa estar capacitado pra falar algo a respeito. Sei que traduzimos (como eu mesmo sugeri no início do texto) discussão sobre métrica com uma espécie de dialeto praticamente extinto, mas se faz necessário considerar que a métrica, afinal de contas, é um componente de sentido da poesia como qualquer outro elemento (ouso dizer que um componente privilegiado), e que eventualmente repreender deslizes métricos num poema que ostente a métrica, justamente, como uma espécie de medalha de latão, não é algo absurdo. Enfim. Havia muita galhofa envolvida ali, e no frigir dos ovos os poetas falam do que bem entenderem entre si, desde que disso tudo (e aqui é uma exigência minha enquanto leitor) resultem poemas melhores ou poetas mais capacitados.
Não vem ao caso. O fato é que havia o questionamento quando à escansão de um verso determinado, que havia aplicado sinérese no interior de uma palavra ("destruo", salvo engano), e a justificativa desmiolada do poeta autor do soneto (não preciso nem dizer que um soneto horrível) foi de que Augusto dos Anjos usava algo parecido. Na verdade o questionamento, que tinha muita base, também falava a respeito de elisões forçadas no interior do verso, e, diante da resposta de que este era um procedimento comum na poesia de Augusto dos Anjos, envolveu, numa tréplica, a consideração de que Augusto estava atento à prosódia paraibana. Creio que não preciso mencionar que a pessoa que fez o comentário e deu a tréplica (camarada Pedro Mohallem, caso queira nome aos bois) o fez com muito consciência e justeza, além, claro, da boa e velha implicância que sempre vale a pena ser feita quando você sabe que a pessoa do outro lado vai entrar em parafuso quando resolvem meter o bedelho na sacrossanta métrica de seus poemas esfarrapados.
Só sei que citaram uma hora ali o soneto Agonia de um filósofo, e gostaria de falar dele um pouquinho:
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nêle tolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!
No hierático areópago heterogêneo
Das idéas, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
O título do meu texto é sobre a agonia métrica num soneto de Augusto do Anjos. O que acabo de citar, no caso. Não será um comentário muito extenso. Escansão poética é uma coisa muito menos rígida do que se costuma pensar. Nós achamos que existem regras fixadas em algum lugar do mural da poesia universal, e que essas regras são claras e de uso comunitário. Na verdade não é bem por aí. No fundo existe uma variabilidade muito grande na hora de se aplicar mecanismos de escansão poética dentro de um verso, em específico referentes às sinéreses, hiatos e elisões (a rigor existem termos mais específicos do que esses, mas, pra voltar ao que já disse, acho que aí eu passaria a aborrecer mais do que o normal). Os românticos, por exemplo, pareciam fazer uma verdadeira bagunça (a depender de quão enrustido o leitor seja), e em alguns versos eles chegavam a considerar como sílaba poética uma simples pausa dentro da frase, por exemplo uma exclamação ou reticências.
Os parnasianos eram mais diretos: baniram o hiato e faziam elisões com um grau de compactação, digamos assim, um pouco mais intenso. A situação pode ser equacionada no sentido de: não é porque você tem, sei lá, quatro, cinco vogais seguidas dentro de um verso ("Fulana, eu a amo") que você necessariamente irá fazer elisão e sinéreses entre todas elas. E isto mesmo que estejamos falando de vogais mais fracas ou menos pausadas, posto sabermos que o contrário delas, segundo Bilac e Guimaraens Passos no seu Tratado de Versificação, "só se elidem violentamente". Existe um limite, podemos dizer em suma, visto que, embora exista um espaço muito grande para arbitrariedades no âmbito da escansão poética, daí não se segue que estejamos num terreno onde se deva desconsiderar possibilidades prosódicas da língua. Ou seja: se nós pronunciamos as palavras de determinada maneira, de acordo com o português corrente, então não se pode querer passar por cima disso tudo apenas sob o aval de um mecanismo de escansão poética que apenas teoricamente iria permiti-lo.
Claro que a escansão poética pode ser regida por convenções que não necessariamente sigam tal e qual a prosódia da fala. Até que ponto, por exemplo, a escansão parnasiana de fato seguia a prosódia das ruas ou mesmo da conversa entre dois gentis-homens? É uma indagação a meu ver interessante e a qual, por óbvio, não tenho condições de responder nem neste texto e imagino que nem em outros vinte. Demandaria uma pesquisa com bases, ferramentas e materiais aos quais não tenho o mais remoto acesso. De modo análogo, quando declamo um poema é comum que eu remodele a sua escansão interna, às vezes dando uma ênfase tônica em palavras longe das posições consagradas do decassílabo ou às vezes transformando o que era uma sinérese num hiato, por exemplo. É algo muito mais comum do que se imagina, mesmo porque o ritmo de um poema, por mais que se queira demarcado, ainda assim não é de uma marcação total, no sentido de que mesmo uma leitura silenciosa que dele fazemos mais cedo ou mais tarde deslocará os acentos, sem implicar, com isto, que sejamos leitores menos preparados de poesia. Uma coisa é que se peça, para que alguém que vai declamar um soneto do Bardo, que o declame lembrando-se do fato de que aquilo é um pentâmetro jâmbico; outra totalmente distinta é que essa pessoa dê uma ênfase exagerada a cada sílaba tônica, transformando um verso que se pautava na fluência e marcação rítmica em elevações de voz cronometradas. Ora: o ditame da fluência é, justamente, o que faz com que nossa declamação ou leitura silenciosa de um poema seja uma maneira de nós, leitores, incorporarmos aquele texto, de modo muito análogo à maneira com que os cavalgamentos ou finais de verso nem sempre são lidos ou declamados como possuindo toda a força que formalmente sabemos que possuem.
Desta maneira, então, eu diria que a estrutura rítmica de um poema, sua métrica, não é uma coisa que deve ser interpretada de modo tão castiço quando o assunto é ler o poema. São coordenadas importantes e das quais não se pode ignorar na hora da análise, mas quando o assunto é estender a interpretação para o âmbito em que a voz humana se faz presente, então é muito comum que se aplique uma maneira de leitura que mais cedo ou mais tarde se valerá de liberdades diante daquela disposição de acentos e ênfases do original. Parece-me, mais uma vez, algo muito mais corrente do que se pode imaginar. No soneto que citei de Augusto dos Anjos, por exemplo, tomemos o primeiro verso do primeiro terceto:
No hierático areópago heterogêneo
Os poetas eu já não sei. Dentro de uma sala de aula, quem sabe? Digo: muitos cursos de escrita criativa passam uma parte considerável de seu tempo ensinando os aluninhos a metrificar, o que é algo absolutamente desejável se considerarmos que historicamente a poesia fez foi isso mesmo: metrificou. Então é possível que aí também tenhamos espaço. Agora num grupo de facebook para poetas... Meio estranho que a essa altura do campeonato uma discussão destas seja suscitada, não te parece, amigo leitor?
Mais ou menos, mais ou menos. Não quero dizer que os poetas estão proibidos de discutir algo do tipo (quem sou eu na fila do pão, não é mesmo?), ou que, diante de um soneto que se pretenda clássico ("clássico", no contexto da discussão entediante, não entendido como um soneto que reproduza, sei lá, a escansão do português camoniano, mas simplesmente algo que de algum modo equivalha a "marmóreo"), se façam algumas reprovações. Falar da métrica de um poema é uma ferramenta como qualquer outra, e na prática todo bom leitor de poesia precisa estar capacitado pra falar algo a respeito. Sei que traduzimos (como eu mesmo sugeri no início do texto) discussão sobre métrica com uma espécie de dialeto praticamente extinto, mas se faz necessário considerar que a métrica, afinal de contas, é um componente de sentido da poesia como qualquer outro elemento (ouso dizer que um componente privilegiado), e que eventualmente repreender deslizes métricos num poema que ostente a métrica, justamente, como uma espécie de medalha de latão, não é algo absurdo. Enfim. Havia muita galhofa envolvida ali, e no frigir dos ovos os poetas falam do que bem entenderem entre si, desde que disso tudo (e aqui é uma exigência minha enquanto leitor) resultem poemas melhores ou poetas mais capacitados.
Não vem ao caso. O fato é que havia o questionamento quando à escansão de um verso determinado, que havia aplicado sinérese no interior de uma palavra ("destruo", salvo engano), e a justificativa desmiolada do poeta autor do soneto (não preciso nem dizer que um soneto horrível) foi de que Augusto dos Anjos usava algo parecido. Na verdade o questionamento, que tinha muita base, também falava a respeito de elisões forçadas no interior do verso, e, diante da resposta de que este era um procedimento comum na poesia de Augusto dos Anjos, envolveu, numa tréplica, a consideração de que Augusto estava atento à prosódia paraibana. Creio que não preciso mencionar que a pessoa que fez o comentário e deu a tréplica (camarada Pedro Mohallem, caso queira nome aos bois) o fez com muito consciência e justeza, além, claro, da boa e velha implicância que sempre vale a pena ser feita quando você sabe que a pessoa do outro lado vai entrar em parafuso quando resolvem meter o bedelho na sacrossanta métrica de seus poemas esfarrapados.
Só sei que citaram uma hora ali o soneto Agonia de um filósofo, e gostaria de falar dele um pouquinho:
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nêle tolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!
No hierático areópago heterogêneo
Das idéas, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
O título do meu texto é sobre a agonia métrica num soneto de Augusto do Anjos. O que acabo de citar, no caso. Não será um comentário muito extenso. Escansão poética é uma coisa muito menos rígida do que se costuma pensar. Nós achamos que existem regras fixadas em algum lugar do mural da poesia universal, e que essas regras são claras e de uso comunitário. Na verdade não é bem por aí. No fundo existe uma variabilidade muito grande na hora de se aplicar mecanismos de escansão poética dentro de um verso, em específico referentes às sinéreses, hiatos e elisões (a rigor existem termos mais específicos do que esses, mas, pra voltar ao que já disse, acho que aí eu passaria a aborrecer mais do que o normal). Os românticos, por exemplo, pareciam fazer uma verdadeira bagunça (a depender de quão enrustido o leitor seja), e em alguns versos eles chegavam a considerar como sílaba poética uma simples pausa dentro da frase, por exemplo uma exclamação ou reticências.
Os parnasianos eram mais diretos: baniram o hiato e faziam elisões com um grau de compactação, digamos assim, um pouco mais intenso. A situação pode ser equacionada no sentido de: não é porque você tem, sei lá, quatro, cinco vogais seguidas dentro de um verso ("Fulana, eu a amo") que você necessariamente irá fazer elisão e sinéreses entre todas elas. E isto mesmo que estejamos falando de vogais mais fracas ou menos pausadas, posto sabermos que o contrário delas, segundo Bilac e Guimaraens Passos no seu Tratado de Versificação, "só se elidem violentamente". Existe um limite, podemos dizer em suma, visto que, embora exista um espaço muito grande para arbitrariedades no âmbito da escansão poética, daí não se segue que estejamos num terreno onde se deva desconsiderar possibilidades prosódicas da língua. Ou seja: se nós pronunciamos as palavras de determinada maneira, de acordo com o português corrente, então não se pode querer passar por cima disso tudo apenas sob o aval de um mecanismo de escansão poética que apenas teoricamente iria permiti-lo.
Claro que a escansão poética pode ser regida por convenções que não necessariamente sigam tal e qual a prosódia da fala. Até que ponto, por exemplo, a escansão parnasiana de fato seguia a prosódia das ruas ou mesmo da conversa entre dois gentis-homens? É uma indagação a meu ver interessante e a qual, por óbvio, não tenho condições de responder nem neste texto e imagino que nem em outros vinte. Demandaria uma pesquisa com bases, ferramentas e materiais aos quais não tenho o mais remoto acesso. De modo análogo, quando declamo um poema é comum que eu remodele a sua escansão interna, às vezes dando uma ênfase tônica em palavras longe das posições consagradas do decassílabo ou às vezes transformando o que era uma sinérese num hiato, por exemplo. É algo muito mais comum do que se imagina, mesmo porque o ritmo de um poema, por mais que se queira demarcado, ainda assim não é de uma marcação total, no sentido de que mesmo uma leitura silenciosa que dele fazemos mais cedo ou mais tarde deslocará os acentos, sem implicar, com isto, que sejamos leitores menos preparados de poesia. Uma coisa é que se peça, para que alguém que vai declamar um soneto do Bardo, que o declame lembrando-se do fato de que aquilo é um pentâmetro jâmbico; outra totalmente distinta é que essa pessoa dê uma ênfase exagerada a cada sílaba tônica, transformando um verso que se pautava na fluência e marcação rítmica em elevações de voz cronometradas. Ora: o ditame da fluência é, justamente, o que faz com que nossa declamação ou leitura silenciosa de um poema seja uma maneira de nós, leitores, incorporarmos aquele texto, de modo muito análogo à maneira com que os cavalgamentos ou finais de verso nem sempre são lidos ou declamados como possuindo toda a força que formalmente sabemos que possuem.
Desta maneira, então, eu diria que a estrutura rítmica de um poema, sua métrica, não é uma coisa que deve ser interpretada de modo tão castiço quando o assunto é ler o poema. São coordenadas importantes e das quais não se pode ignorar na hora da análise, mas quando o assunto é estender a interpretação para o âmbito em que a voz humana se faz presente, então é muito comum que se aplique uma maneira de leitura que mais cedo ou mais tarde se valerá de liberdades diante daquela disposição de acentos e ênfases do original. Parece-me, mais uma vez, algo muito mais corrente do que se pode imaginar. No soneto que citei de Augusto dos Anjos, por exemplo, tomemos o primeiro verso do primeiro terceto:
No hierático areópago heterogêneo
Verso a meu ver excelente, pois consegue traduzir de maneira admirável o modo como essa linguagem certo modo cifrada do Augusto, peculiaríssima, ganha uma eficácia poética que aclimata o leitor. Ou seja: é razoável dizer que o leitor não sabe, de antemão, o que é um "aerópago", ou mesmo qual seja o sentido de "hierático". Mas, graças à assonância tão poderosa que o verso apresenta, graças à sua sonoridade tão privilegiada, o mistério do verso parece que chama o leitor para que se aventure em seus obscuros sentidos.
Ora: como escandir um verso desses?
No hie / rá / ti / co a/reó/pa/go he/te/ro/gê/(neo)
O número de elisões e sinéreses aqui é muito intenso, fazendo com que a leitura de um versos desses possua uma compactação alta a ponto de virar coisa até meio atropelada, impressão que se justifica ainda mais quando observamos o firme nó que Augusto estabelece, fonicamente, entre as palavras. Não será a primeira vez, no poema, em que ele chegará a um nível de compactação dessas:
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Com a eó/li/ca/ fú/ria/ do har/ma/tã/ in/quie/(to!)
A escansão aqui é problemática. O início é uma coisa que possui uma elisão muito violenta: "Com + a + eó-", ou seja, até o "Com + a" temos algo absolutamente corriqueiro em matéria poética (tanto que muitos poetas usam "Co'a"), mas a partir do momento em que fazemos uma sinérese em "éo-" e o incluímos, tal qual, na elisão... É problemático. Augusto dos Anjos exige uma compactação imensa. Claro que se poderia ler "Com + a" e depois "éo-", ou seja, os separando, no que se requereria do leitor, depois, uma elisão entre "-tã + in-". O inconveniente de uma leitura assim é que perderíamos o decassílabo heroico...
O leitor pode optar pela leitura que bem entender? O leitor é livre. Na hora de ler e declamar, então, nem se fala. O problema é que o poema possui uma marcação rítmica, ainda mais quando vem no embrulho da loja "Sonetos & Amor". Esse verso não existe à solta no espaço. Todo verso num poema é ele, os que vieram antes e os que virão depois. Se a turma toda diz pro verso que ele tem que seguir um ritmo determinado, então a escansão tenderá para fechar essa conta, muito embora, claro, critérios dos mais variados que vão do "porque sim" ao "mas faz parte da minha poética, ora pinhões!" possam no mínimo gerar uma tensão localizada.
O leitor pode optar pela leitura que bem entender? O leitor é livre. Na hora de ler e declamar, então, nem se fala. O problema é que o poema possui uma marcação rítmica, ainda mais quando vem no embrulho da loja "Sonetos & Amor". Esse verso não existe à solta no espaço. Todo verso num poema é ele, os que vieram antes e os que virão depois. Se a turma toda diz pro verso que ele tem que seguir um ritmo determinado, então a escansão tenderá para fechar essa conta, muito embora, claro, critérios dos mais variados que vão do "porque sim" ao "mas faz parte da minha poética, ora pinhões!" possam no mínimo gerar uma tensão localizada.
Em outros existe uma fluidez maior, sem se valer de sinéreses combinadas com elisões. É o caso de:
Assisto agora à morte de um inseto!...
Ou seja, temos elisões absolutamente comuns ao longo de exatamente metade do verso, fazendo com que "Assisto agora à" se una num único fluxo enunciativo.
Ocorre, todavia, que uma elisão tão forçada como "Com a éo-" não é seguida de maneira lógica ao longo do poema, ou seja, se o poeta chegou às raias de uma elisão assim, parece lógico pressupor que em todos os outros casos ele fará algo parecido. Lembra do que eu falei da "marcação rítmica", disso dos versos todos, de mãos dadas, encurralarem a ovelhinha negra e o apertarem até que ele excrete um decassílabo sáfico? Pois bem. Paulo Henriques Britto, neste sentido, possui um termo muito útil para falar da métrica de um poema: ao invés, justamente, de falar "métrica", ele prefere usar "contrato métrico", o que implica dizer que o leitor vai se acostumando a um mecanismo rítmico determinado do poema e vai se postando diante daquele mecanismo rítmico, que necessitaria de uma certa coerência para funcionar. É uma postura a meu ver muito mais realista de tratar a métrica do que se valer, tão somente, de um termo como "métrica". Claro que tem todo o problema de você ter sido doutrinado por parnasianos-marxistas-bolcheviques-tomistas, mas é a vida. "Contrato métrico" engloba até a englobar a concepção, também desenvolvida pelo Britto, de "contraponto métrico", e que seria uma maneira de analisar a métrica dentro da métrica, ou seja: embora um verso como "Com a eólica fúria do harmatã inquieto!" se encaixe na métrica decassilábica, pois este é o contrato métrico do soneto, ele parece ser um verso mais extenso, parece ter um poder de compactação que só formalmente faz com que o encaixemos na noção de decassílabo. Afinal de contas, poderíamos ler o verso como um alexandrino com muita facilidade, bastando, para tanto, que se transformasse o início em "Com/ a e/ó-". Ou então, se ele é um verso que gera esse grau de compactação, então ele parece indicar que a métrica interna do poema é menor que a métrica externa, e um verso que até então era um plácido decassílabo na verdade tem umas sílabas a menos. Ou então, terceira alternativa... Ah, leitor. Eu sou danado mesmo. Uma agonia métrica. Pode acreditar em mim. Eu sei escandir, sou confiável.
Explico melhor. O primeiro verso diz:
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Con/sul/to o/ Phtah-/Ho/tep./ Lei/o o o/bso/le/(to)
Não existe nada forçado na sílaba 8, que envolve a elisão de três vogais "o" (na verdade, um termo mais específico para o que ocorre aqui é "crase"; mas, como dito, não aborreçamos). Afinal de contas, na hora da leitura nós podemos apenas estender o "o" de "Leio" para, com muita facilidade, abarcarmos as outras duas vogais subsequentes. (Ou então pode-se ler "Leio" como uma sílaba só e, depois, fazer elisão entre os dois outros o's.) Ocorre, todavia, que com a mesma intensidade que o poeta chega a "Com a éo-", nós poderíamos então ter chegado a "Leio o o-", unindo as sílabas 7 e 8 da escansão que fiz numa só. É, sendo assim, como se o poeta fosse aquecendo os motores da escansão poética até o momento em que a tampa estourasse e uma elisão tão violenta quanto a do verso 4 voasse pelos ares. No segundo verso, por exemplo, encontraremos um trecho como "Veda. E, ante obras", onde temos elisões envolvendo pelo menos duas sílabas fortes ("an-" e o "o" de "obras"), e no terceiro teremos uma sinérese em "Inconsciente" e uma elisão só em "assombra e eu".
Na segunda estrofe o processo é análogo. Da admirável fluência da metade do primeiro verso temos o segundo, que não apresenta nenhuma elisão interna, dando-se, inclusive, ao luxo de demarcar muitíssimo bem todas as sílabas de "fenômenos", algo que antes já estava sendo possibilitado pela metade do verso anterior. O terceiro também apresenta uma estrutura sem nada de mais, que não uma sinérese em "realizar", absolutamente corriqueira, o mesmo quanto ao quarto, que traz "O ideal". Tudo, podemos pensar, como maneiras de se preparar terreno para o advento da maneira abrupta com que o primeiro verso do primeiro terceto surge.
Deve-se, contudo, observar que o poema, que traz consigo a mensagem de um eu lírico que é oprimido (!) diante de uma realidade metafísica muito maior do que ele, faz com que a estrutura métrica interna revele este embate pelo modo como períodos de paz métrica, digamos assim, se fazem suceder de pontos de explosão. Na primeira estrofe, por exemplo, temos um início que traz duas frases curtas e pacatas, denotando ações simples, logo depois seguidas de uma terceira que, como vimos, traz consigo duas elisões seguidas envolvendo vogais fortes ("E ante obras"), uma maneira de representar a inquietação, a falta de consolo que o eu lírico sentia, até o erupção de "Com a eólica fúria do harmatã inquieto!" Na segunda estrofe nós temos basicamente um crescendo que começa com o definhamento de um inseto, animal mínimo, miúdo, e passa para "todos os fenômenos do solo" (como se a possibilidade de que uma palavra como "fenômenos" se espraie, tal qual visto, de maneira totalmente precisa e calma, figurasse justamente a amplidão que o eu lírico contempla, bastando que se a contraste com o inseto do verso anterior) considerados de "pólo a polo" e à luz d"O ideal de Anaximandro de Mileto". Mais uma vez, note como uma palavra como "Anaximandro" é deixada ser lida de maneira pausada. O ideal de Anaximandro de Mileto é o de descobrir a matéria de todas as coisas, uma espécie de matéria infinita que vai sendo cortada e gerando todas as outras. O mundo, para o filósofo grego, é feito de contrários que se excluem o tempo todo. No único fragmento seu que restou ele dirá, no início (tradução de Emmanuel Carneiro Leão):
De onde pro-vêm as realizações, re-tornam também as de-realizações:
Se o poeta chegou, de maneira pausada, saindo da leitura de livros sagrados das religiões egípcia e hindu, passando pelo inseto, por todos os fenômenos de pólo a polo até o ideal de Anaximandro, então é como se ele abrisse espaço a fim de permitir o irrompimento de um verso de escansão tão intensa quando "No hierático areópago heterogêneo". Hierático: relativo às coisas sagradas ou religiosas. Areópago: local, situado num cimo rochoso, onde o conselho se reunia em Atenas. A um verso intenso deste se seguirá um que se dá até ao luxo de dispensar uma sinérese em "idéas":
Das idéas, percorro como um gênio
E, depois:
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Des/de a al/ma/ de Hae/ckel/ à al/ma/ ce/no/bial!...
Mais uma vez temos um verso de poder de compactação imenso, visto não só em passagens como "-de a al-", mas, também e principalmente, em "de Hae-". É, todavia, a última vez que um ímpeto assim irá ocorrer. Na próxima estrofe o poeta, após rasgar "dos mundos o velário espesso", reconhecerá, igual a Goethe (poeta que simboliza a placidez, a sabedoria, o ter rasgado justamente esse velário espesso e não ter se desesperado ― lembre-se da segunda canção noturna do andarilho), "O império da substância universal!" Descoberta, bem se vê pela estrutura métrica do poema, feita não sem um embate interior intenso.
Das idéas, percorro como um gênio
E, depois:
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Des/de a al/ma/ de Hae/ckel/ à al/ma/ ce/no/bial!...
Mais uma vez temos um verso de poder de compactação imenso, visto não só em passagens como "-de a al-", mas, também e principalmente, em "de Hae-". É, todavia, a última vez que um ímpeto assim irá ocorrer. Na próxima estrofe o poeta, após rasgar "dos mundos o velário espesso", reconhecerá, igual a Goethe (poeta que simboliza a placidez, a sabedoria, o ter rasgado justamente esse velário espesso e não ter se desesperado ― lembre-se da segunda canção noturna do andarilho), "O império da substância universal!" Descoberta, bem se vê pela estrutura métrica do poema, feita não sem um embate interior intenso.