A atividade crítica de Rodrigo Gurgel.



O maior, o único crítico literário brasileiro ― ou o salvador da pátria? A mediocridade nacional. A esquerda. A academia. O hermetismo. As vanguardas. A hipocrisia. Você há de convir que existe uma narrativa um tanto quanto heroica por trás das alvíssaras lançadas pelos admiradores de Gurgel. Uma coisa até comovente. Messiânica, quem sabe. Gurgel mantém viva a chama da crítica literária ― sua coragem ― sua franqueza ― sua sinceridade ― sua erudição ― seu conhecimento. E, do outro lado do ringue, o clamor de desmiolados abortistas (é preciso que sejam abortistas pois assim a gente não confunde com os daqui) empunhando cartazes, censurando obras, fiados na linguagem da tribo e em chavões incomunicáveis. Podemos repetir essa cantilena até o infinito ― ou até nos chamarem pra prefaciar um livro de Rodrigo Gurgel, no que faríamos uma simples repetição do que os três prefaciadores até agora fizeram: proclamar o apocalipse das Letras nacionais para, depois, anunciar a aurora dos novos tempos (ouvi dizer que a capa do próximo livro trará Gurgel rodeado de criancinhas declamando Sailing to Byzantium), só que mudando pouca coisa aqui e acolá ― a coloração do estofo, o baile de citações, as farpas retiradas da ordem do dia, a distância entre as palavrinhas chave ("Bom dia. São oito horas da manhã e você está 120 palavras sem usar 'decadência'. Bip bip."), as colheradas de maiúsculas (Mal, Bem, Belo, Feio, É O Tchan).

Não me entendam mal. Eu só queria que os prefácios daqui do Pindorama não fossem indolentes em abraçar com essa criatividade ligada no piloto automático a mesma narrativa de sempre, a narrativa de vendedor de panela inox que precisa porque precisa dizer que a panela da concorrência, ô de casa!, não tem o que a minha tem: estampas do Sergio Moro nas laterais. É só um desabafo inicial mesmo. Passa. Quer ver só?

Passou. Porque quanto a Rodrigo Gurgel, crítico, suas ideias, seu jeito de ler, de gostar, de desgostar ― que tal eu tentar te convencer sem precisar estender toda aquela lona de circo servindo de pano de fundo e mostra da mediocridade nacional? Já pensou se, por algum milagre que seja, eu consigo fazer isso? Acho que eu mereço um biscoito, no mínimo.





Não sei se você acompanha as coisas que acontecem no meio literário, ou seja, suas brigas esporádicas, ferrenhas e todavia sempre hilárias; mas, caso acompanhe, então você deve se lembrar disso: C. Hmm? Sabe? ― Não? Outra dica: Jabuti. ― Ainda não? Oh céus. Jurado C. Compreende? Aquele, da nota dez pra uns, de zero e alguns quebrados pra outro. Na época eu achei aquilo uma verdadeira irresponsabilidade por parte do crítico, o típico azedume gratuito. Não sei dizer o que penso hoje. Acho que a mesma coisa: o descompasso tão gritante das notas (nota zero é nota zero, afinal de contas, é ausência total, é muito mais do que enxergar defeitos em excesso) e a justificativa de que a nota zero se deu graças ao proselitismo da obra (em outras entrevistas fala-se de panfletarismo ideológico) não me convenceram nem um tiquinho. Teve manipulação? A título de dolo, não, mas a título de culpa eu acho que sim. Se bem que o ponto não é nem esse. É que: pose. Pra mim foi o que aconteceu: pose. De crítico severo, com livros no fundo, bengala na mão, cara de mau e princípios rígidos como um mourão já meio troncho. A questão é: muda alguma coisa? Acho que não. Jurado C, entenda-se: Rodrigo Gurgel.

É uma maneira meio torta de ser apresentado à figura. Mas ele tem lá seu jeito de surpreender. A ideia que fica, quando tiramos a máscara do Jurado C e ele resmunga algo como "Se não fossem vocês!...", é que se Rodrigo Gurgel encontra um cheirinho de esquerda no livro, ele só falta dar um tiro de escopeta na tal da brochura, de tão colérico que fica. Ou que, se quisermos dar um pouco mais de azo à imaginação, se lê um personagem com um rosário no pescoço, ele ajoelha e oferta libações às Musas. A questão é que não é nada disso, e esse furdunço envolvendo seu nome não foi só estranho pela irresponsabilidade adotada, mas também pelo fato de que destoa do que Rodrigo Gurgel, como crítico, tem a apresentar. Compreende? A forma mais infalível já inventada pelo ser humano pra saber se um crítico é bom ou quá é observar de maneira atenta como ele se acasala com a obra: se, diante do primeiro deslize (ou de quantos forem), ele a joga de pés e mãos atados do alto do barranco, ou se ele compara todos os poetas da face da terra àqueles que constam na cartelinha, então esse cara é ruim. Ele não sabe enxergar que a literatura é complexa, e que, entre a nota 10 e a nota 0, existem coisas como por exemplo a nota 6, ou mesmo uma tal de nota 7, nota 4, nota 3. Nota 5,5, veja só que coisa mais admirável.

Caso você seja daqueles que não aguentam um preâmbulo arrastado (o que é uma pena, pois eu tinha tantos planos!), então vamos direto ao ponto: o cara é bom. Possui princípios e ideias a respeito da crítica bem assentadas, e apresenta uma independência, um rigor, uma franqueza e uma propensão crítica a algo maior ― algo que envolva pelo menos duas pessoas conversando e mordiscando um biscoito de polvilho ― que são de tirar o chapéu. E não digo no sentido de que concordo com o que ele diz, pois isso de concordar ou discordar me parece secundário demais quando vamos falar de um crítico. Assim: eu como leitor não preciso de críticos de estimação que façam o útil trabalho de traduzir em palavras as razões de minha paixão por aquela obra. Pra quê depender deles se mais cedo ou mais tarde o Google vai acabar criando uma máquina que fará o mesmo (uma espécie de Star-Review-Generator-2000)? O que admiro num crítico é sua acuidade de análise, a firmeza de seus juízos, a qualidade de seus argumentos e a independência que ele exala tão logo adentra no recinto.

Você consegue notar isso muito bem em qualquer um dos três livros que for comprar do autor. Meio que tanto faz. Os dois primeiros são uma espécie de bate-volta: o romance brasileiro do século XIX; o terceiro tem uma estrutura um pouco mais ampla, abarcando, na primeira sessão, textos de cunho memorialístico e um texto de metacrítica interessante, na segunda e na quarta resenhas de autores de outras línguas, na terceira um interlúdio sobre Chesterton e na última resenhas de contemporâneos brasileiros. É bem provável que do ponto de vista do custo benefício esse seja o melhor. Mas, de minha parte, o frescor representado pelo primeiro, abordando alguns dos nossos autores canonizados com uma isenção e sem nenhum rabo preso, preocupado apenas em seguir a baliza do próprio gosto e expor uma opinião da maneira mais firme possível nem tanto para que te convença, mas, no mínimo, para que prove que alguém ali no meio dessa balbúrdia resolveu responder por suas próprias convicções; bem, isso é bom, bom demais. O segundo livro também é ótimo, em específico nisso de sopesar autores que segundo Rodrigo Gurgel seriam superestimados com autores injustamente esquecidos (dentre os últimos, numa inclusão que como goiano muito me orgulha, Hugo de Carvalho Ramos).

O combustível da nave crítica de Rodrigo Gurgel é o enfastio para com a retórica. Nossa literatura sempre teve muito blablablá desnecessário, muitos sapateado pra dar meia volta e só. Hoje o termo "retórica" está totalmente afastado de suas origens iniciais, de modo que basta que você pegue a palavra, coloque-a à luz de seu uso corriqueiro e analise todas as acepções degradantes que ela projetou na parede. Retórica é essa cara de nojo que você fez. Retórica é excesso, excrescência, uma forma de você tapear o leitor ao mesmo tempo em que busca encantá-lo com ouro falso. Isso para Rodrigo Gurgel é inaceitável. O escritor deve encarar a realidade e descrevê-la de forma objetiva, o que não quer dizer, é claro, de maneira lacônica. Pode ser que sim, pode ser que não. É perfeitamente possível que uma máquina narrativa lacônica ainda assim padeça de retórica, se por trás de seus procedimentos houver um todo artístico que se demonstre insuficiente no quesito de representar a realidade, e, como maneira de sustentar essa insuficiência, houver toda uma retórica por trás. Nada impede que um romance de 50 páginas contenha mais retórica do que um de 300. Parece esquisito esse tipo de coisa, mas, acredite, é comum que se preencha defeitos de uma obra com elucubrações vazias, com estofo puro e simples.

A história da literatura brasileira sempre foi permeada de livros cheios de retórica e de pouca narrativa. O que acontece é previsível: essa retórica afeta outras áreas da vida literária e aos poucos se metamorfoseia, por exemplo, no romance experimental que parece ter uma espécie de fobia de contar uma boa história. É como se os experimentos narrativos e linguísticos fossem o suficiente (abre parêntesis ― bem; eu particularmente acho que podem ser, mas vamos deixar minha opinião de lado pra ouvir a do crítico ― fecha parêntesis). Daí o termo cunhado por Rodrigo Gurgel: narratofobia. Mas não é só. A crítica também pega esse sebo retórico e transforma num sebo crítico, cheio de toda uma linguagem cifrada que não redunda em lugar algum e muitas vezes parece estar falando mais de si mesma, dos labirintos que construiu, do que da obra literária, da literatura em si. É uma postura retórica também, em tudo o que "retórica" implica de pose e distanciamento dos conflitos mais íntimos da realidade.

Rodrigo Gurgel põe toda essa vertente crítica sob a imprecisa alcunha de "estruturalismo". É bem provável que Rodrigo Gurgel tenha em mente aquele texto que José Guilherme Merquior escreveu em 75, denominado "O estruturalismo dos pobres" (em certa passagem chega até mesmo a citá-lo). No texto de Merquior encontramos coisas como:

A estruturalice nacional se proclama revolucionária. Como certos vanguardismos paranóicos, que, por mais que se digam ferozmente antiacadêmicos, jamais conseguiram disfarçar sua natureza de subversõezinhas tão vazias quanto ritualísticas, sempre consentidas, quando não programadas, pelo establishment cultural, o estruturalismo corteja a fraseologia da ruptura.

Tudo aqui é de um impacto demolidor. Os heróis de Gurgel ― mas também sua linhagem ― são gente como Wilson Martins ou Álvaro Lins, embora, na prática, Gurgel dialogue de maneira franca com gente como Antonio Candido, Alfredo Bosi ou Massaud Moisés. Mas, como toda crítica aos paradigmas teóricos acadêmicos, antes mesmo de enxergar na posição das estrelas uma foice e um martelo, é preciso cuidado. Merquior foi um estudioso atento do estruturalismo, e a postura que ele critica nesse texto é muito menos o estruturalismo em si do que, como o próprio título o demonstra, o estruturalismo dos pobres, esse estruturalismo fetichista que trata conceitos como se fossem uma espécie de ouro de aluvião ("o abuso agressivo da terminologia superfluamente hermética em lugar do real trabalho de análise"). Não se trata, assim sendo, de criticar de maneira um tanto quanto genérica a postura estruturalista: "dos estruturalismos europeus, a variante verde e amarela tende decididamente a desconhecer o que têm de positivo, e a agravar o que trazem de mau." É claro que ler um livro do Riffaterre ou do Greimas é uma atividade muito penosa, é claro que depois de um tempo você começa a soluçar "semas" e "sememas" de forma involuntária e é claro que você precisa de um cuidado tremendo pra que não exagere as afirmações ali expostas e transforme, no fim, a literatura numa aventura misantrópica que nega a realidade em prol de um tal de "mosaico de textos" que você leu numa xérox de baixa qualidade. A maneira mais fácil de ler um texto teórico complexo, ainda mais textos estruturalistas ou pós-estruturalistas, que partem do princípio que você já tem uma leitura boa no básico de linguística e semiologia, é pegar aquilo ali ao pé da letra e seguir passeio.

Em seus cursos de escrita criativa (ao que me consta excelentes, aliás), Gurgel recomenda ao escritor que boceje diante de Barthes, Propp e dos manuais de semiótica. É uma dica válida, naturalmente. Teoria demais pode embaralhar a percepção da realidade e o manejo dos materiais narrativos: quando o escritor abaixa a guarda um pouquinho que seja, ele está botando o pobre do personagem pra problematizar um jingle natalino. Não minto que a sensação que tenho por vezes é de que o próprio Gurgel boceja diante de tais autores, acusando-os de retórica pura e simples sem uma argumentação consistente, dissolvendo seus argumentos por trás de uma alcunha que com muita facilidade se torna imprecisa, ou que, sem a exposição clara do conceito realmente defendido por tais autores (às vezes sem sequer dar nomes aos bois), se revela uma crítica que aparece triunfal e depois desaparece no ralo da pia. Do mesmo modo, não minto que me pareceram críticas que, embora na maior parte dos casos en passant, ou servem como justo ataque ao uso viciado de posturas teóricas em voga ou, então, servem tão somente de pano de fundo, e, se realmente for assim, então o leitor deve pelo menos ter a decência de se atentar aos meandros daquilo que ele folheia, isto é, ele não pode comprar com tanta facilidade a estrutura argumentativa que Gurgel lhe apresenta e, uma vez fechado o livro, resolver matraquear a crise do ensino humanístico no Pindorama sem sequer saber o que é a tal da morte do autor (reflexo, quiçá!, do instinto vândalo-mortífero dos malditos comunistas).

Implico com este jogo de alfinetadas e com as narrativas messiânicas pois, a médio prazo, o que fazem é baratear a figura do crítico, transformando-o num cabide de palavras prontas que serão usadas de maneira impensada do mesmíssimo jeito que os espólios da semiologia hoje são. Quer dizer, noutros termos, que ao invés de afastar os móveis e deixar que o leitor contemple o crítico dissecando a obra, o apego a esse tipo de estrutura argumentativa solta uns fogos de artifício e sem querer enche de fumaça o céu, nessa insistência toda de demandar um contraponto esfarrapado que realce o texto, ignorando o fato de que Rodrigo Gurgel simplesmente não precisa de um cenário em chamas para que reconheçamos sua qualidade enquanto crítico, nem muito menos de resenhas que abram ou fechem com "mas hoje, no Brasil".

Para o intelectual, encaixar uma crítica no final dos parágrafos ímpares, ou mesmo dedicar um texto ao assunto, à maneira de um desabafo, é um enfastio que o leitor releva e, claro, muitas vezes se atenta ou até mesmo aprende. Tais momentos podem ter ou não destaque de acordo com a maneira minuciosa e direta com que o assunto criticado é trazido à baila, o que, na prática, quer dizer que terá destaque na exata medida em que termos como "as pessoas", "os professores" ou "os estudiosos" diminuírem. Com Rodrigo Gurgel, você pode até concordar com ele que a pátria amada está ruim das pernas, e pode concordar que todo seu arsenal crítico possui um propósito maior (este último argumento, reconheço, importantíssimo), mas se isso tudo só servir de esteio pra que se rebobine a parte polêmica dos textos do cara, aí já não dá mais pra te defender, amigo, mesmo porque o que essa parte polêmica tem a oferecer de substancial é pouquinho demais.

Num texto intitulado Como nasce o personagem?, por exemplo, Gurgel rebate a afirmação estruturalista de que o autor é só uma instância da escrita dizendo que, se assim fosse, então que se imprimissem os livros sem designação de autor, até mesmo o desses tais teóricos. Parece uma ótima resposta, conquanto você imagine, por trás de um termo como "estruturalistas", um clubinho de pedantes bebendo café às custas do cofre público. De minha parte, não faço a mínima ideia do que Gurgel quer dizer aqui. Tenho a vaga noção de que ele começou confundindo a postura estruturalista com a pós-estruturalista, e de que ele fez uma mistureba um tanto quanto literal de conceitos como "autor", "escritura" ou "obra aberta" na hora de formular sua crítica arrasadora. O mesmo tipo de estratégia, digamos, poderia ser aplicada se eu pegasse a tal da narratofobia e inventasse um Projeto de Lei que estabelecesse uma quota de peripécias, clímax e menções à Transcendência nos livros nacionais. Qual o ganho prático disso, você me pergunta? Indiretas que se perdem no caminho, arestas mal aparadas que se confundem com farpas.





Mas é preciso entender que estamos falando de um crítico. Um do calibre de Lúcia Miguel-Pereira, em específico pelo trabalho considerável que Gurgel fez com a ficção brasileira do século XIX. Isso não quer dizer ― e está assinalado nos prefácios ― que tenha sido seu objetivo a escrita de uma história do romance brasileiro do século XIX, mais ou menos à maneira do que Lúcia Miguel-Pereira fizera partindo de 1870 até 1920. Se Gurgel quisesse algo do tipo, não tenho dúvidas de que ele conseguiria com muita felicidade, tendo em vista não só o fato de que ele já leu muita coisa (e acredite: ir lá e ler é de longe a coisa mais importante a ser feita) como também o fato de que possui consideráveis conhecimentos em História.

O que Gurgel pretende fazer, pelo menos de modo mais patente nos dois primeiros livros de sua lavra, é, quem sabe, o que se poderia chamar de uma história sincrônica de nossa literatura, seguindo o que Haroldo de Campos havia proposto para o âmbito da poesia ou o que a própria Lúcia Miguel-Pereira, no prefácio de sua análise, diz: "O critério relativista, imprescindível na apreciação da nossa vida literária, só um ponto de vista mais marcadamente histórico no-lo fornece." Quer dizer: se tomarmos como base apenas as obras que obtiveram um sucesso e uma glória relativa, por exemplo relativa ao era a situação literária de determinado instante, então esse ponto de vista crítico (diacrônico, bem se entenda) dá "apreço excessivo a livros que só valem como documentos, pelas informações que encerram", quando, na verdade, o propósito sincrônico de Lúcia Miguel-Pereira é o de "estudar os sucessos literários, isto é, as obras que por si mesmas ou pela repercussão que tiveram significam alguma coisa." É bem o que Gurgel faz: pensar as obras que, pelo seu grau de realização artística, pela grandeza humana que oferecem, permanecem relevantes hoje em dia, partindo, para tanto, do cânone de nossa literatura, o que é um modo corajoso de ir direto ao xis da questão e cravar a estaca no coração da besta. Um empreendimento, é bom que se reforce, necessário, e aqui os motivos de chamá-lo "necessário" são muito próximos do que Olavo de Carvalho diz: muitas das obras que trazemos a nossos alunos são obras que cumprem uma função estética e pedagógica pobre (e Gurgel argumenta com brio quanto a isto de serem "pobres"), o que, no frigir dos ovos, afasta mesmo o incauto aluninho das sendas floridas das letras. Pode-se entender que para o crítico arregimentado a leitura das obras, desvinculadas de um juízo de valor, possa servir a um desígnio histórico muitas vezes respeitável, mas daí não se segue que devamos regurgitar no bico de nossos estudantes uma História da Literatura nua e crua, como, de resto, infelizmente acaba sendo feito nas aulas (isto é, não se capacita o aluno a ler literatura, mas, apenas, a pôr o Chapéu Seletor em cima do cabeçote das obras). O crítico arregimentado já leu Troilus and Cressida. Se quiser estudar A Moreninha, pode estudar até sair uma tese disso daí (e que Deus o abençoe). Já o pobre do estudante tem que esperar a Tropicália pras aulas ficarem mais interessantes e o professor passar música.

As resenhas escritas por Rodrigo Gurgel seguem uma certa coreografia. Ele começa com os famigerados parágrafos introdutórios, que sempre servem pra fisgar sua atenção e dar uma contextualizada básica, e depois pincela virtudes e defeitos de uma obra, convidando um leitor para um verdadeiro tour pelos aspectos de um livro: personagens, descrições, diálogos... É um crítico completo, sem dúvidas, e capaz de escrever numa linguagem elegante. Eu repito: o cara é bom. E já pegando o bonde dessa repetição, veja você que não vou nem cair naquela platitude de dizer que não concordo com tudo. Gurgel sempre lembra que o trabalho do artista e o trabalho do crítico na cadeia alimentar da vida literária são papéis distintos, e, relembrando a rusga existente entre Sílvio Romero e Machado Assis no final do século XIX, nota que, independente de Sílvio Romero ter se provado errado para nós hoje (o que não quer dizer necessariamente que daqui a duzentos anos ele continue errado, no todo ou em parte), ambos cumpriram seus papéis com galhardia e com independência. E é isso o que importa. A mesmíssima coisa aqui: você lê as opiniões de Gurgel e não fica obrigado a concordar com elas. Eu imagino que muitos dos alunos e seguidores de Gurgel ― pois sempre chega aquele estágio em que o crítico, ainda que de forma involuntária, dá azo para que asseclas e cupinchas brotem ao redor de sua túnica ― acabam tomando a palavra de Gurgel como se fosse uma espécie de palavra sagrada, um escudo contra a ignomínia nacional ― e tcharã, voltamos às narrativas messiânicas. Mas o que não imaginam é que, procedendo assim, estão indo contra o que as resenhas de Gurgel representam. Elas não são provas de que a inteligência nacional está errada. Elas são simplesmente a prova de que um, pelo menos um leitor põe os miolos pra funcionar e responde por suas opiniões. Essa é a maior resistência que existe, e é a única, e é a maior prova de respeito e de admiração que podemos nutrir para com o trabalho de Gurgel. Porque nesse sentido eu concordo, mas sem necessitar de um cômodo pano de fundo: eis, senhoras e senhores, um crítico in natura.

Um exemplo. Gurgel pega o seguinte parágrafo de O Ateneu, de Raul Pompéia ― autor que ele caracteriza como "enfermo de retórica", o que não o impede de elogiar a abertura do romance, a seu ver uma das melhores de nossa literatura (e o fato de que ele empreenda um elogio tão grande desses e uma repreensão tão grande dessas, para a mesma obra, demonstra que para Gurgel uma obra literária é algo a ser estudado com cautela e minúcia) ―; mas, eu dizia, ele pega o seguinte parágrafo:

Vizinhos ao dormitório, eu, deitado, esperava que ele dormisse para vê-lo dormir e acordava mais cedo para vê-lo acordar. Tudo que nos pertencia, era comum. Eu por mim positivamente adorava-o e o julgava perfeito. Era elegante, destro, trabalhador, generoso. Eu admirava-o, desde o coração, até a cor da pele e à correção das formas. Nadava como as toninhas. A água azul fugia-lhe diante em marulho, ou subia-lhe aos ombros banhando de um lustre de marfim polido a brancura do corpo.

e comenta:

Esse homossexualismo, descrito com os piores clichês, é justificado de maneira ridícula, por meio de uma tese tão tresloucada quanto reveladora do caráter mórbido do narrador: "[...] Certa efeminação pode existir como um período de constituição moral".

O uso do termo "homossexualismo" é de uma infelicidade tremenda. Mas estou certo que se viermos a criticar seu uso, é bem provável que pedras, vindas do bosque encantado do politicamente incorreto, arrebentem nossa vidraça. Enfim. Sublimemos. Ele diz: "descrito com os piores clichês". Está se referindo a coisas como "Era elegante, destro, trabalhador, generoso." O príncipe encantado de pau grande, se é que me entendem. E então a ideia de uma tese tresloucada, que na verdade não é tão tresloucada assim pois estamos diante de um romance que se passa num internato onde, segundo noutra passagem o narrador relata, havia uma "efeminação mórbida". Só ligar os pontos: noutra, caracteriza o Ateneu como um microcosmo. Oras: um monte de meninos juntos, cheios até a tampa de hormônios. Não considero tresloucado que o narrador, que já possui uma inclinação pra coisa toda, considere realmente a tese. É como se Rodrigo Gurgel a tomasse de maneira literal. Pois não é que a tese seja tresloucada e reveladora do caráter mórbido; a descrição que temos do Ateneu, que, é claro, muito provavelmente é sim exagerada (sem prejuízo das verdades que existam no relato), nos permite imaginar esse clima de efeminação mórbida que o próprio narrador antes menciona. É verossímil o raciocínio. Mas isso sem contar que esse parágrafo que Gurgel pincela e exemplifica como um parágrafo ridículo, um parágrafo horrível, ainda assim consegue ostentar uma bela frase: "A água azul fugia-lhe diante em marulho, ou subia-lhe aos ombros banhando de um lustre de marfim polido a brancura do corpo." Quer dizer: toda a sonoridade dá um tom poético à descrição, fazendo com que o leitor possa imaginar de maneira mais viva a cena do amado dando aquele mergulho esperto. "de um lustre de marfim polido a brancura do corpo"... A colcha de consoantes bilabiais e consoantes líquidas, a assonância em pêndulo da vogal U e da vogal I ao longo da frase toda, nossos lábios e nossa língua nessa coreografia erótica. A maneira com que a sonoridade escorreita e espaçada sugere a comparação do corpo do rapaz com o marfim polido e com a pele lisa do golfinho ("toninha"). Isso aqui não é retórica de jeito nenhum.

É um exemplo que dou de discordância que tenho com o autor. Na maior parte da obra o que o leitor provavelmente faz é se postar diante de um monte de livros que ele não leu, de modo que, na prática, o leitor possui a tarefa de enxergar méritos e defeitos da obra conforme apontados pelo crítico e, é claro, convencer-se ou não de pular igual uma onça pro Estante Virtual à caça de parcelamento sem juros. Não vou ficar cabriolando demais nos exemplos e nem nos elogios nebulosos. Vamos tentar ser um pouquinho mais concretos. A resenha que Gurgel escreveu para o romance Dona Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva, escrito no final do século XIX mas só publicado em 1945 (você consegue lê-la online aqui), é pra mim uma boa resenha, eu digo até mesmo exemplar. E falo isso sem nunca nem ter lido a obra (você a encontra a preço de banana em qualquer sebo, podendo até mesmo escolher pela capa que julgar mais ridícula), o que, considerando que o objetivo é ver de que modo o crítico consegue dar conta do recado (nisso de falar sobre uma obra pra pessoas que provavelmente não a leram), me deixa numa posição até confortável. Se serei capaz de economizar o dinheiro do lanche pra comprar o livro só porque li a resenha, presumo que você também será. Mas como meu sistema operacional meio que travou, fazendo com que eu esteja aqui, escrevendo uma resenha sobre um livro de resenhas, é de bom tom que eu seja um pouco mais específico e tente chegar a uma conclusão sobre o porquê do texto de Rodrigo Gurgel ter sido convincente, o porquê de ter sido bom, exemplar.

Não pretendo falar de tudo. Irei só até onde ver que dá pra manipular os argumentos a meu favor. Ela abre assim:

Dona Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva, foi redescoberto, em 1945, por Lúcia Miguel-Pereira. Em artigo publicado no Correio da Manhã (hoje presente no volume Escritos da maturidade), no dia onze de março daquele ano, a crítica literária faz um apelo aos herdeiros do autor, ou de José Veríssimo ― editor da Revista Brasileira, que publicara, em 1899, parte da obra ―, no sentido de localizarem o original completo. A solicitação era justa: o romance, escrito provavelmente no início da década de 1890, é marco do regionalismo que, a partir da Semana de 22, se tornaria uma das principais características da literatura brasileira.

So far, so good. Sem precisar de uma nota de rodapé que seja, Gurgel consegue nos passar um bom número de informações com fluidez. Observe a maneira orgânica com que, na segunda frase, um parêntesis e travessões surgem, no momento exato e com o tamanho exato. Informações que estão aí pra te guiar. O parêntesis pra te dizer que esse artigo está ao alcance da mão, e os travessões pra informar quando a obra saíra e onde saíra e quem foi seu patrono. Tudo no seu lugar correto, seguindo o compasso (parêntesis e travessão fechados no mesmo instante em que a vírgula dá as caras e muda o sentido da observação sulcada no seio da frase), sem mostras de falsa erudição. Aliás, em verdade vos digo: parece existir um certo tom triunfal na maneira com que Gurgel pontua até mesmo a data do artigo de Lúcia Miguel Pereira: "no dia onze de março daquele ano". Claro que, como estamos falando de um artigo de jornal, a indicação da data é importante (assim temos como pesquisar exatamente onde), mas, tendo em vista que ela é reforçada pela indicação de que no livro Escritos da maturidade esse mesmo artigo também se encontra, creio que a ênfase dada por Gurgel pode nos revelar algo além.

A introdução foi essa. Ela cumpre bem o seu papel. No geral introdução de resenha é algo chato, mas essa daqui até que está curta, e consegue, graças a um pequeno detalhe, apresentar um clima de descoberta interessante. A próxima parte da resenha se chama "Hesitações". Vejamos:

O livro, quando comparado às demais obras da nossa literatura, surge como um pequeno deleite, promessa do que o autor ofereceria se não tivesse morrido tão cedo, aos 31 anos, em 1892. Ao mesmo tempo, trata-se de obra contraditória: almeja o realismo, mas apresenta resquícios naturalistas e românticos. Digamos de maneira objetiva: o autor tentava cruzar a ponte que Machado de Assis havia deixado para trás em 1881, ao publicar Memórias póstumas de Brás Cubas.

Gosto da expressão "pequeno deleite". Acho que se eu tivesse escrito um livro e alguém o elogiasse assim, eu acharia muito fofo. Mas até aqui a resenha só está se aquecendo. A obra como uma obra contraditória é algo que nos faz ficar interessados. Cruzar a fronteira estabelecida por Machado, então!... Basta você ligar os pontos: estamos diante de uma obra que tem seu peso. No parágrafo anterior ela foi caracterizada como marco do regionalismo, e, aqui, diz mesclar realismo, naturalismo e romantismo. Uma obra póstuma, descoberta em 1945, quando os padrões estéticos eram outros ― mas uma obra que foi descoberta apenas de maneira parcial, ou seja, não foi lida de maneira integral. Que diabos de livro é esse que estamos lidando? Gurgel ordena os fatores com o único propósito de nos fisgar. E ele consegue. Ah, se consegue. Começar dizendo que a obra só foi redescoberta em 1945 é algo que todos fariam. Caracterizá-la, logo depois, como pequeno deleite, idem (não digo a expressão em si; falo o espaço em branco para que um elogio deslize). Mas dizer dela como obra contraditória, e esmiuçar suas pretensões... Bem. Isso move algumas peças de xadrez que armam o terreno de forma hábil.

Para o narrador de Dona Guidinha do Poço, "a natureza incerta [...] arrasta o homem para precisar de uma Providência divina e outra humana, e o impele noite e dia para o amor, esse ócio, em incessante desequilíbrio com as outras necessidades. Daí, numa tendência monoteísta e monárquica, Deus e o vigário, o rei e o presidente." Esses resíduos deterministas fazem-no concluir que o "faro" do coração humano "toca a sensualidade genésica" ― e produzem comentários deste tipo:

Gurgel está exemplificando pra gente aquela confluência doida. Já estamos na resenha propriamente dita. E ele pega precisamente o calcanhar de Aquiles do naturalismo: o determinismo, sem contar, claro, a segunda citação, ainda mais bem pincelada pois traz consigo um termo como "genésico", de sabor cientificista muito apreciado pelos escritores da estética. O trecho citado é:

Todos, até os vaquianos, gente como que arrebentada daquele próprio chão, sentiam-se tomados por sensações de gozo indefinido, um sentimento religioso, alheio à existência da sociedade, nesse pasmo, nesse delíquio que infligem à pobre espécie humana os grandes aspectos soleníssimos da natureza em ser, com a diferença, porém de que, como no gado, a impressão nos vaqueiros, os arrastavam à vida, ao exercício, a espojar-se a correr, a movimentar-se violenta e brutalmente, a desembestar prados em fora.

E comenta:

Período não só naturalista, mas no qual a ânsia por dizer tudo engolfa o texto em confusão e retórica

Releiam: "não só". A escolha do trecho é bem pensada. Aqui nós realmente encontramos resquícios naturalistas, em específico nessa coisa de definir os tais dos vaquianos e todo aquele ressaibo determinista que qualquer vestibulando sabe de cor. Mas também quando os vaquianos desembestam prado afora (ou o fato de que parecem arrebentar do chão, bem como na comparação do gado com os vaqueiros): a animalização do elemento humano é comum na literatura naturalista. Todavia, observe que aqui nós conseguimos observar um sabor romântico no meio da coisa: "nesse delíquio que infligem à pobre espécie humana os aspectos soleníssimos da natureza em ser". Delíquio. Pobre espécie humana. Uma pomposidade e um pathos que só. É algo parecido com o sentimento religioso mesclado ao gozo indefinido. Substratos realistas eu concordo que não aparecem de maneira nítida, mas se o autor chegou à crueza da expressão, qualquer abrandamento que seja já nos faz cair na estética realista, de todo modo.

Confusão: coisas como "os aspectos soleníssimos da natureza em ser". O que seria isso? Difícil dizer. Parece mesmo retórica pura e simples, uma necessidade de elevar a linguagem de forma exagerada. Rodrigo Gurgel consegue nos convencer. Ele cita mais um pedacinho, como que pra fixar melhor a imagem dos momentos ruins da obra, mas vamos pulá-lo. Vamos observar melhor isso daqui:

Não bastassem esses trechos, que de tão empolados lembram Os sertões, encontramos nódoas alencarianas. Eulália, jovem cujo apelido é Lalinha, vive em “perene abstração de amante visionária”; acordada pelos sinos da igreja, levanta-se da rede “meio vestida na camisa de talho de rendas”, mas esse traje íntimo, pasmem, serve para “festejar em si mesma todos os imensos e imateriais desejos de todo aquele corpozinho”. Depois de mordida por uma pulga, calça “a meia do pé esquerdo” e aperta “o atilho, acima do joelho”, não em uma simples coxa, como o leitor espera, mas “naquela delicada coluna de carne, que lhe sustentava o corpo, tabernáculo onde Amor acendia lâmpada sacramental a um coração”. Minutos depois, ajoelhada na igreja, o que entra “pela porta do lado” não é a luz do sol, mas “a eterna mocidade do amanhecer”; ao longe, uma juriti, ao invés de cantar, “fazia ressoar de vez em quando a frescura daquela embalsamada atmosfera de junho com sua belíssima nota de inimitável diapasão”.

Acima de tudo, é divertido. Ele não está criticando apenas com base na mistura de estéticas distintas, nem, exatamente, apenas com base na confusão pura e simples do período. Aqui ele joga com nossas expectativas enquanto leitores e com o que a realidade é capaz de demonstrar. Por exemplo:

ao longe, uma juriti, ao invés de cantar, “fazia ressoar de vez em quando a frescura daquela embalsamada atmosfera de junho com sua belíssima nota de inimitável diapasão”.

Rodrigo Gurgel fornece a imagem em sua notação mais simples: uma juriti que canta ao longe. Podemos aceitar uma estilização aqui e acolá, dependendo das necessidades do texto (por exemplo ditames sonoros ou ditames que necessitem explicitar algo de específico naquela juriti). O problema não é esse. Não se trata de propugnar por versões lacônicas de descrições. Não. O que se critica aqui é a retórica de falar da atmosfera de junho como "embalsamada", ou de se usar uma palavra como "diapasão" escudada de um superlativo e de um "inimitável", totalmente sem sabor algum.

Mas tá lembrado do que o crítico disse a respeito das contradições da obra? O título desta parte é "Hesitações". Rodrigo Gurgel dará um exemplo disto comparando um caso de contenção que, segundo ele, é quase perfeita:

O calor subira despropositadamente. A roupa vinha da lavadeira grudada do sabão. A gente bebia água de todas as cores; era antes uma mistura de não sei que sais ou não sei de quê. O vento era quente como a rocha nua dos serrotes. A paisagem tinha um aspecto de pêlo de leão, no confuso da galharia despida e empoeirada, a perder de vista sobre as ondulações ásperas de um chão negro de detritos vegetais tostados pela morte e pelo ardor da atmosfera. As serras levantavam-se abruptamente, sem as doces transições dos contrafortes afofados de verdura.

Se compararmos com os exemplos do trecho anterior, que, como eu apontei, estão estruturados de modo a fazer com que o leitor possa contrapor expectativas e realidade a uma descrição enferma de retórica, o elogio de Rodrigo Gurgel é cabido. Ele vem no momento certo do texto, e consegue ilustrar seu ponto com precisão. Uma frase como "A roupa da lavadeira vinha grudada do sabão" parece, pra ser bem franco, incompatível com alguém que mencionava "inimitável diapasão" frases antes. Do mesmo, isso de "uma mistura de não sei que sais ou não sei de quê" possui um sabor muito bom, adiciona uma ideia de indecisão num parágrafo que no geral é bastante preciso em seus apontamentos: basta nos lembrarmos da roupa grudada do sabão ou, na frase logo depois, do vento quente "como a rocha nua dos serrotes".

E assim a parte segue, pincelando exemplos que conseguem ir direto ao ponto e defender o que o crítico afirma. É útil esse exercício, e, o que é importante, mostra que o crítico sabe reconhecer virtudes e defeitos na obra, ao invés de querer mergulhá-la num pélago de negatividades. Se digo que Gurgel traz bons argumentos, não é porque ele prova alguma coisa, no sentido de que um prodígio da matemática prova alguma coisa perante um círculo de idosos pasmos. Esse tipo de coisa não existe quando o assunto é crítica, por mais que desejemos com todas as forças que um esclarecido de plantão dizime, por nós, os livros que odiamos. É no sentido de que compensa você parar o que está fazendo para prestar atenção no que o cara disse, tendo a certeza de que não lerá argumentos de autoridade e sim uma análise detida, paciente, calma, sempre precedida de um "vamos dar uma olhadinha nisso daqui". E tão franca e clara é a maneira com que Gurgel o faz, que o que ele fez no verão passado, aquela estranha polêmica em que se envolveu, parecem coisa de outra pessoa, quem sabe do mesmo crítico fora de si. É verdade que a tentação de provocar a literatura contemporânea surge mesmo quando se trata de uma resenha de um livro do século XIX, como nesta passagem:

Trata-se do preço que alguns regionalismos pagam — certamente não tão alto quanto o do vanguardismo que barbariza a língua ou pretende recriar, eternamente, o Finnegans Wake.

Mas um trecho desses, de todo modo, é o menor dos problemas, a tal ponto que enxergar qualquer problema nele não passaria de picuinha, mesmo porque o crítico consegue um ponto consistente ao afirmar, no início da seção, que:

Essa instabilidade não é, contudo, o único problema. Seja descrevendo cenas, seja reproduzindo falas e pensamentos dos personagens — por meio do discurso indireto livre ou não —, o narrador utiliza linguagem carregada de termos regionais ou corruptelas. Partamos de um exemplo simples. Ao descrever o marido de Dona Guidinha, major Joaquim Damião de Barros, o Quinquim, ele diz: “Tinha o preto-do-olho amarelo, com a menina esverdeada, semelhando um tapuru”. Muito bem. E o que é um tapuru? Você, leitor, alguma vez viu um tapuru? Depois de pesquisarmos, descobre-se que ele se refere, provavelmente, a uma bicheira, uma larva. Mas estamos certos? Há pelo menos mais duas acepções possíveis para o vocábulo…

Puxar o leitor prum canto e bater um papo reto com ele ("Muito bem. E o que é um tapuru?") é um negócio muito bom. Rodrigo Gurgel não cria aquela espécie de monólogo a que a crítica às vezes incorre, como que exagerando a seriedade excessiva de seu outro ponto de partida; na verdade, nós continuamos olhando para a obra, mas como dois leitores.

E é isso mesmo. Podemos ir muito longe nas definições, mas não conseguiremos ir tão longe quanto Pound ao definir que crítica é conversa entre homens inteligentes. Gurgel não barateia. Sei que dentro do contexto das narrativas messiânicas que ungem seu nome é bem provável que o leitor dê um jeito de ligar os pontos e concluir, pelo fato de que Gurgel fez uma leitura crítica do nosso cânone, que estamos num maléfico contexto doutrinador. De minha parte eu não chego com tanta facilidade e pés descalços a uma conclusão dessas, mas, caso seja de sua preferência, amigo freguês, então tudo bem. Seja muito bem vindo ao reino encantado das problematizações, onde as pessoas confeccionam cartazes de tinta guache criticando o falocentrismo no Romantismo europeu. Esse é o pórtico, e sim, você está precisamente aqui, abafado pelo alto clamor de uma horda de esclarecidxs. Tudo o que precisa fazer para subir um degrau e se posicionar em salões mais arejados, onde uma troca de opiniões encontra condições de temperatura e pressão habitáveis, é que leia os livros e formule você mesmo uma crítica. Qualquer um dos três livros de Gurgel pode ser visto como sendo isso mesmo: você pega o livro, desmonta, corta algumas arestas, dobra outras, monta uma caixa bem bonitinha e usa aquilo ali de inspiração. Dói só no começo.