Bienal.

DIDI ― A Bienal está aí, e o que tem causado rebuliço é esse tanto de livro de youtuber no meio da jogada.


GOGÔ ― Salvo engano estão dando mais ênfase neles do que nos escritores literários, né?


D ― Pelo menos é o que ouvimos.


G ― A reação já era meio esperada: a literatura contemporânea está em crise.


D ― Por quê meio esperada?


G ― Porque dizer que a literatura está em crise é a coqueluche de boa parte das análises superficiais sobre a própria literatura contemporânea. A pessoa mal se digna a despender alguns minutinhos que sejam acessando algum catálogo que pronto, já vai compartilhar esse tipo de notícia como se de algum modo possuísse conhecimento de causa, como se de fato fosse um leitor minimamente sério de literatura contemporânea.


D ― E o que seria esse "ser um leitor minimamente sério de ―"


G ― Um leitor que pelo menos arregace as mangas e saia do seu quadrado, fugindo do delírio de mensurar a qualidade de um período literário com base na vitrine de uma livraria. Porque vamos convir que se a pessoa realmente acha que os youtubers de algum modo representam a literatura contemporânea... ou a literatura, de um modo geral; bem, vamos combinar que essa pessoa não sabe muito sobre literatura, em primeiro lugar. Se brincar, ela acha que se calhar à Bienal der ênfase a livros de culinária, isso, de algum modo cabalístico, dirá a respeito à literatura contemporânea.


D ― Acho que entendi seu ponto, mas especifique.


G ― Veja: a maior parte desses livros de youtubers não é publicado como literatura. Salvo engano, são computados, na lista de mais vendidos, como não ficção. E é isso mesmo. Não existe nem uma pretensão ficcional nem uma pretensão a uma escrita mais elaborada que seja. Aliás, outro rebuliço que tem sido causado é a suspeita de ghostwriters no meio da jogada, o que, considerando que a pessoa que compra o livro desse youtuber quer ver esse mesmo youtuber abrindo seu coração, acaba sendo uma coisa bem decepcionante...


D ― Eu imagino. Embora, no fundo, suponha que pelo menos a mão mais pesada de um editor deva existir, pois o que deve ter de gente nesse meio que escreve de forma imprestável...


G ― É, tem isso também.


D ― Pois, pra ser sincero, não sei como esses caras formulam algo que dê pra ser vendido como livro daquele youtuber, isto é, dando a ideia de ter saído da cabecinha dele, com um estilo aceitável. Estudando a linguagem empregadas nos vídeos, quem sabe? Ou adotando um tom coloquial-neutro?


G ― "Coloquial-neutro". Acho que entendi...


D ― É... Assim: um texto não tão formal, mas com marcas de oralidade simples. Ao invés de usar um "nós fomos", um "a gente foi". Nada de rasgo coloquial intenso à maneira de um regionalista ou um urbanista; uma estilização simples, suficiente pra fazer com que o leitor ouça aquilo sendo dito no pé do ouvido. Acredite: bons editores e revisores, assim como bons tradutores, sabem muito bem como fazer isso.


G ― Compreendo. Um celeuma, vamos resumir. Como se o consumidor estivesse sendo ludibriado... Mas não ficção. E é preciso pontuar isso muito bem. Não ficção, cultura de massas, livro de celebridade... Veja: é um setor específico de livros. A dinâmica de concepção e vendagem deles é muito distinta da dinâmica envolvida na publicação literária e, em muitos sentidos, na da publicação de muitos outros tipos de livro ― por exemplo textos de história, crítica literária ou cursos de direito falimentar.


D ― Especifique.


G ― Não é difícil. O que é o livro de um youtuber? Digo... Que tipo de público ele visa alcançar?


D ― As pessoas que gostam do youtuber.


G ― Correto. Acha razoável, prosseguindo, dizermos que as pessoas que gostam de um bom livro, ou simplesmente os que gostam de uma história contada... Acha razoável dizermos que o livro é pra essas pessoas?


D ― Não me parece.


G ― Então é um livro atrelado à figura do autor.


D ― Um típico best seller, quem sabe?


G ― Não necessariamente. As pessoas compram livros da saga Harry Potter mais pela história em si, por aquele universo, do que pela figura da J. K. Rowling.


D ― Continue.


G ― Quer dizer, assim sendo, que na prática esses livros de youtubers são uma espécie de souvenir. Se o famoso da vez resolve lançar uma linha de cuecas, as pessoas vão comprar aquilo porque está associado a esse nome. A vendagem, todo o planejamento, a divulgação... Tudo, tudo está atrelado, entende?


D ― Compreendo. No caso dos youtubers seria o mesmo? Se um deles lança uma linha de cuecas...


G ― Acho que tem potencial. Não sei. O público também não é massa de manobra. Não de forma absoluta, pra aceitar coisas que destoem de forma completa. Acho isso um exagero. Mas tem potencial, sim. A coisa com o youtuber é que ele tem uma tendência a participar da vida cultural ou do entretenimento muito mais forte. E não só isso: um livro é um souvenir interessante. Ele faz com que a gente fique mais próximos daquele youtuber, que a gente como que compartilhe alguns segredinhos. Os livros desses youtubers, aliás, costuma ser sempre sobre isso: esquetes não publicadas, ou esboços, ou causos... Precisa ter um algo a mais, um passo além da relação no geral muito próxima que eles estabelecem conosco. Afinal de contas, a Kéfera fala sobre coisas íntimas como peidos. Ela participa da dinâmica que embasa a figura da celebridade, mas de um modo um pouco diferente.


D ― Que modo seria esse?


G ― Uma celebridade, por exemplo, do futebol, é célebre justamente por suas habilidades futebolísticas. Mas essa celebridade é vendida com fins a criar uma proximidade entre nós e ela, pois, assim, nós conseguimos comprar com mais autenticidade essa mesma figura e, por conseguinte, toda a linha de quinquilharias que empurram pra gente. A questão é que essa proximidade, ela nem sempre se dá apenas no campo do futebol. Claro que existem pessoas que compram e consomem o que aquele cara faz a partir de uma relação direta com o futebol, por exemplo se ele gosta do esporte, se vai no estádio e, diante de uma bola de futebol da marca Fulano-De-Tal, mete a mão no bolso. Não raro, todavia, pessoas que não possuem tanta proximidade assim com o esporte podem comprar, podem consumir essa mesma celebridade. Se o cara for bonitinho, ele pode estrelar uma campanha de xampu. Ou, em casos ainda mais acentuados da fama, estrela só por ser quem é. Não é, digamos, o âmbito originário daquela celebridade, mas alguns vão lá, consomem. Do mesmo modo, essa celebridade pode estreitar a proximidade com seu público criando vídeos ou postando fotos com a família num domingo de mesa farta. Ele está intumescendo sua popularidade, mas a partir de algo que não está ligado ao que de fato ele faz e, bem ou não, é o que serve de sementinha para sua constituição enquanto celebridade. Com um youtuber é diferente pois se ele trabalha com o entretenimento, então ele já expõe sua vida, e publicar um livro é apenas uma extensão daquilo. Abrir sua vida, publicar fotos, vídeos... Isso é justamente o que o faz famoso.


D ― Então o livro de um youtuber tem mais potencial de venda ainda?


G ― Não necessariamente. A questão do objeto livro é que, mais uma vez, ele é um ótimo atrativo. A pessoa pode ter ficado famosa por ter sido uma prostituta de luxo, ou por ter coordenado um massacre há décadas atrás. Não interessa. O livro é um modo de estreitar essa relação, que é fundamental pra cultura de celebridade. Um objeto propício. A palavra é essa: propício. Claro que é uma proximidade falsa. Lembra daquele episódio do Chaves envolvendo o Hector Bonilha?


D ― Lembro.


G ― Todos da vila tinham as falas do Bonilha decoradas. Eram próximos. Mas é só ele surgir na frente deles que o estranhamento ocorre. Uma revista de fofocas coloca na primeira capa que a Giovanna Lancellotti foi flagrada com o dedo no nariz, coisa que qualquer um de nós faz. Ou então atravessando a rua. O simples fato de que isto seja noticiado cria um choque instigante ― quer dizer, atravessar a rua e tirar melequinha do nariz são coisas que nós todos fazemos, de modo que a revista apenas embasaria uma obviedade. Mas aquela pessoa é uma celebridade, ela está num mundo totalmente distinto, totalmente artificial (coisa que, aliás, muitas celebridades depois da fama o atestam muitíssimo bem). O serviço é simples: criar uma muralha de vidro translúcido, para que vejamos e devassemos a vida desse povo com muito mais minúcia do que a vida do nosso próprio vizinho, sem, entretanto, que necessariamente estejamos próximos.


D ― Muito bem. O livro é realmente um objeto interessante, ou propício, como você diz, e, pelo que pude entender do que você está dizendo, é claro que ele possui uma boa vendagem.


G ― Ele tem potencial para tanto. E que ótimo que o explorem. O Brasil é um país que não gosta de ler. Temos pesquisas que reiteradamente confirmam que uma média de 70% dos brasileiros não lê um livrozinho sequer no ano todo. É alarmante. Sem nem contar a economia aos frangalhos... Se os caras não contarem com isso, a vaca vai pro brejo. Não há uma dependência total a respeito do assunto, mas se grandes editoras vão bem, pequenas editoras acabam pegando a rebarba, pequenas editoras também se aproveitam. Repito: nem sempre e também não de forma lógica; mas se eu leio um romance de Henry James publicado pela Cia das Letras e gosto, eu posso querer ler outras coisas do autor, e, aí, cair numa editora pequena que lançou um volume de cartas do romancista. Por maior que seja a editora, seu catálogo não é total, não consegue suprir todas as necessidades do mercado.


D ― Mas veja: nem todas as editoras têm como contar com essa útil bengala de um grande best seller. Claro que best sellers envolvem sempre um fator imponderável forte demais, dificílimo de ser sequer antevisto. Mas no geral...


G ― Sim, claro. Grandes celebridades vão pra grandes editoras, e o trabalho tem sido facílimo pras editoras, pelo menos neste estágio da situação: pegue canais com muitos seguidores e pronto. O que eu peço é que você observe também o catálogo dessas editoras. É a vendagem de um livro desses youtubers que possibilitará a publicação de uma antologia de poesia mélica grega, sei lá...


D ― Será mesmo? Porque as editoras não querem prejuízos ou fracassos, então penso que o trabalho não é tão simples como vender muito um livro pra poder lançar uns elefantes brancos lá do outro lado.


G ― Tem razão. É trabalhar e olhar cada caso, afinal de contas existem coisas que não possuem procura. Seria ótimo publicar aquilo ali, obscurantíssimo. Mas pra quem? Vinte e cinco interessados?


D ― Pois então. Mas não só isso: a editora possui uma identidade. Os leitores também compram essa identidade. Ser um balaio de gato que atira pra tudo quanto é lado não fica meio estranho?


G ― Será que fica? Porque a Globo e a Record possuem um catálogo que é uma verdadeira loucura, sem fazer, sempre, uma distinção entre isso e aquilo numa coleção ou sub-editora. Então não sei. Mas a princípio eu diria que sim. A Cia das Letras, por exemplo, não publica os livros de youtubers que eles publicam com o selo Companhia das Letras. Eles colocam numa outra cumbuca separada. Aliás, eles separam bem as coisas. As publicações da Cia das Letras são uma coisa ― as da Penguin são outra ― e até mesmo as da Alfaguara. O Grupo a que eles pertencem é eclético, resultado, claro, das compras caríssimas que geraram aquele verdadeiro conglomerado.


D ― Tem razão, embora o livro da Jout Jout, como notou bem a Tatiana Feltrin, foi publicado com o selo Companhia das Letras.


G ― Uma exceção, quem sabe... A Cia das Letras tem apostado muito em crônicas, por exemplo as de Paulo Mendes Campos e as de Drummond (se bem que Drummond eles estão lançando mais pelo quesito da obra completa). E o livro da Jout Jout é isso: crônicas, não? De todo modo, eles de certo modo apostaram naquele livro dela. Digo apostaram num sentido a mais: apostaram trazendo pra... hum... ala da frente? Não sei se é o termo correto, mas vamos dizer que trouxeram pro coração da editora: praquela área em que eles também publicam Elizabeth Bishop e Joyce. Porque de certo modo parece que as editoras não levam tão a sério um livro desses, de youtuber. É um livro de entretenimento, uma diversão.


D ― Mas será que algum dia esses leitores de youtubers, hoje, não lerão coisas mais refinadas?


G ― Sinceramente? Não sei. A esperança costuma ser essa, mas acho que é bom manter um certo ceticismo. Esses caras compram livros de youtubers pois, como eu disse, é um souvenir privilegiado. Poderiam estar comprando uma linha de cuecas do Felipe Neto. Mas vão lá e compram o livro dele. Não compram, assim sendo, o livro; é a figura estampada na capa. Muito diferente de quem compra um livro da saga Harry Potter: aí, compra-se pela história, pelo conteúdo ficcional, pela fruição artística. Vejo muito mais potencial nesse segundo tipo de leitura.


D ― Entendo. Embora, ao mesmo tempo, eu ache que muitos desses consumidores de livros de youtubers também consomem outros livros de ficção, propriamente falando.


G ― Quanto a isso, não faço a mínima ideia. Você diz tipo consumir um Guerra dos Tronos, por exemplo? Porque se for... Bem, acho que muitos leitores de Guerra dos Tronos, ou qualquer outro best seller que seja, entretanto, literatura, não vê com olhos tão bons assim esses livros de youtubers.


D ― É, é. Não dá pra sabermos. Mas diz aí: a literatura contemporânea vai mal?


G ― Como eu disse, não acho sensato que pensemos a qualidade da produção literária contemporânea com base na publicação desses youtubers. Eles não são feitos para serem livros de literatura. Demonstram uma penúria do nosso país enquanto leitor? Não necessariamente. Poderíamos viver no melhor dos mundos; mas, ainda assim, eu consumo entretenimento de massas, e vai continuar sendo comum que eu tope com o livro desse pessoal. Se eu sou um leitor de literatura há algum tempo, por mais que minhas referências sejam apenas aqueles livros com capa cheia de glitter ― glitter! ―, pode ser que eu compre aquele livro ainda assim, pode ser que eu me divirta lendo, não sei. É razoável, num nível médio, supormos essa linha reta entre o consumo de livros de youtubers e a penúria da nossa vida literária. Os dois existem de forma concomitante, mas não acho que um seja obrigatoriamente causa do outro.


D ― E de que modo poderíamos pensar a produção contemporânea?


G ― Isso daria um outro debate totalmente distinto. Podemos pensar tanto pelos momentos mais altos, e por uma constância ou uma frequência de resultados altos ao longo da produção de um certo tempo, ou então podemos pensar a qualidade da produção média. Agora, mesmo se supuséssemos que os livros de youtubers fossem vendidos como literatura, e como tais quisessem ser reconhecidos, eles seriam, quando muito, literatura ruim. Oras: você vai mesmo analisar a qualidade de um período literário pelo nível de baixo?


D ― Geralmente o que fazem é: pegamos o nível de baixo e vemos em até que escala ele é difundido. Se os livros de youtubers são muito vendidos, então é de se pressupor que...


G ― Bobagem. Literatura ruim sempre existiu e não raro ocupou o pódio. Uma resposta sobre a qualidade da produção contemporânea deve sair dessa zona de conforto, que praticamente não exige nada do leitor: ou seja, se o raciocínio a for seguido é apenas esse, então nós só precisaríamos de alguém que reconhecesse um punhadinho de livros ruins e, logo depois, analisasse sua vendagem. É muito, muito pouco. Os dois outros caminhos que apontei, mais lúcidos e realistas, envolvem um trabalho árduo. Livros de youtubers não são feitos nem vendidos para ser literatura, e seus leitores nem sempre são leitores de literatura, ou, ao menos, enquanto leem tais obras, não o estão sendo. Além disso, não é porque eles recebem destaque na Bienal que isso represente a literatura contemporânea. A Bienal não possui essa força. Ela é apenas um evento que possui seus mecanismos de cooptação de público, tal como a Flip possui os seus. Aliás, a Bienal é apenas a Bienal do Livro ― o que pode incluir até mesmo um livro de receitas do padre Marcelo Rossi. A Flip, por seu lado, é um Festival Literário. Muita diferença em jogo, aí.


D ― Pois muito bem. Isso basta, por hora.