Uma belíssima estrofe de Dante.



Uma estrofe, particularmente famosa, do Canto V, Inferno, da Divina Comédia. Não é nem de longe uma compilação digna e nem muito menos uma tradução séria. Li hoje ao acordar esse Canto na tradução do Dante Milano e aí, enquanto pegava as traduções até onde a fadiga permitia, rascunhei-o. Postei no meu facebook, entre um meme e outro, e alguns colegas foram completando a postagem por mim (um deles, o dileto camarada Calib, até mesmo contribuindo com uma versão). Achei linda a atitude, tanto que me animei e cá estou, expandindo a postagem e tentando dar-lhe corpo.

O Canto V é um dos mais célebres de toda a Comédia. E com razão. É um dos mais perfeitos. Fecha, por exemplo, com um verso esplêndido: "E caddi como corpo morto cadde". Dante e Virgílio estão no círculo da luxúria, onde as almas são levadas por um torvelinho dos diabos. Lá eles encontram os espíritos de Paolo e Francesca, que mantiveram uma história picante entre si. Pois é no meio da narração de Francesca, tão pungente que faz com que Dante caia como corpo morto cai (vide verso acima), que ela diz a estrofe que traduzo e compilo abaixo. Ela quer dizer: o amor não isenta ninguém de amar. Você vai amar pra sempre, seja na imprudência terrena, seja no quinto dos infernos. É bonito, claro que é. Ainda mais se você considera que são três estrofes que começam com a mesma fórmula: "Amor... blábláblá". Essa é a segunda. costui, no segundo verso, é pronome demonstrativo que indica alguém próximo. Quer dizer: o Amor prendeu ela, Francesca, a este, Paolo, com um prazer tão poderoso!... que, como Dante bem podia ver, ainda não a abandona. A forma com que a marcação de tempo é usada é significativa: ancor non m'abbandona. Leiamos: ancor: forma apocopada de ancora, advérbio que significa "ainda"; m'abbandona: presente. Não é apenas uma coisa de passado. Ele ainda não a abandonou. Isso é um alívio para os amantes, pois permanecem juntos, mas, claro, ao mesmo tempo é a danação completa, pois passarão a eternidade no Inferno, padecendo desse amor que foi raiz e causa de sua destruição espiritual. O lance óptico que percorre a estrofe, saindo do Amor ("ch'a nullo amato" etc etc), indo pra Paola sendo presa a Paolo com prazer tão forte e chegando, por fim, a uma ênfase no prazer propriamente dito ("ancor non m'abbandona"), é habilíssima (ou seja, passa por tudo), o que não surpreende: no fim do Canto teremos uma maneira ainda mais esplêndida de mesclar a paixão dos dois com o romance que liam (Guinevere e Lancelot) e com seu próprio assassinato: "quel giorno più non vi leggemmo avante."

As traduções são muitas. Não são todas, mas são muitas. Tem pra tudo quanto é gosto, pra tudo quanto é tipo. As rimas no original são praticamente automáticas: persona, perdona, abandona ― pessoa, perdoa... abandona. Fuééém. É muito comum isso acontecer em traduções do italiano. Tudo ia muito bem, muito bom, até que um só verso estraga a brincadeira e lá vai você tendo que arranjar um outro caminho pra chegar aonde tem de chegar. A rima com "agrilhoa", no terceiro verso, é muito provavelmente a forma mais escorreita de se manter a rima em "-oa", correspondente perfeito para o "-ona" do original. O que é interessante, todavia, é que o primeiro a usá-la não foi Italo Eugenio Maro. Ele teve um predecessor um tanto quanto ilustre: Dom Pedro II! Surpreendente, não? Eu pelo menos acho, ainda mais porque a tradução do Imperador consegue responder de maneira mais direta e fluida ao segundo verso do que a versão de Italo Eugenio Maro, sem precisar recorrer ao verbo "tomar" (que não reforça do mesmo modo a ideia de cárcere, ao contrário de "ligar" ou "prender", traduções naturais de prese) ou a esse "pelo seu". Pois é, caro leitor... O Imperador tinha lá suas traduções aqui e acolá... Quem quiser ler mais a respeito do assunto pode conferir a ótima dissertação de mestrado de Romeu Porto Daros, aqui.

Mas fiquemos com a estrofe mágica. Não forneci direitinho a indicação bibliográfica das passagens, mas, caso o leitor deseje com ardor (piacer sì forte), é só pedir nos comentários. Tudo o que fiz foi dispor em ordem cronológica as traduções, e indicar-lhes as datas. Caso o leitor queira um quadro de traduções da Divina Comédia no Brasil, recomendo as páginas 106 a 108 da dissertação de Romeu Porto Daros. Incluo, no fim, uma curta e despretensiosa coletânea de traduções inglesas, sem indicação de data e sem ordem.


Amor, que amar a amados não perdoa,
Deste aos agrados me prendeu tão forte,
Que, como vês, inda comigo voa.
(Vicente De Simoni ― 1843)

A amar induz amor um ente amado:
Ser amada elevou-me de tal sorte,
Que êste encanto me tem acompanhado.
(Domingos Ennes ― 1887)

Amor, que faz que se ame a quem nos ama,
Por elle me inspirou paixão tão forte,
Que ainda, como vês, não me abandona.
(Barão da Villa Barra ― 1888)

Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
Que, bem o vês, eterno me perdura.
(Xavier Pinheiro ― 1888)

Amor, que nunca ao amado amar perdôa,
Ligou-me a este com prazer tão forte
Que, como vês, ainda me agrilhoa.
(Dom Pedro II ― 1889)

Amor, que o ser amado a amar obriga
a êle me uniu, com atração tão forte,
que, como vês, de mim não se desliga.
(Dante Milano ― 1953)

Amor que obriga a amar de amor infindo,
prendeu-me de tal modo a meu amigo,
que inda no inferno nos está unindo.
(João Trentino Ziller ― 1953)

Amor, que exige em pago amor, ternura,
por ele me inspirou paixão tão forte,
que, como vendo estás, ainda dura.
(José V. de Pina Martins ― 1972)

Amor, que a amado algum de amor não priva,
uniu-me a ele também, tão doce e forte,
que, como vês, ainda aqui se aviva.
(Cristiano Martins ― 1976)

Amor, que a amado algum amar perdoa,
me fez nele sentir prazer tão forte
que, como vês, ainda me afeiçoa.
(Augusto de Campos ― 1986)

Amor que a amado algum amar perdoa,
tomou-me a seu prazer assim tão forte,
que como vês ainda se apregoa.
(Vasco Graça Moura ― 1995)

Amor, que a amado algum amar perdoa,
Tomou-me, pelo seu querer, tão forte,
Que como vês ainda me agrilhoa.
(Italo Eugênio Mauro ― 1998)

Amor, que a todo amado a amar obriga,
por este aqui me deu paixão tão forte,
que como vês perdura sem fadiga.
(Jorge Wanderley ― 2004)

Amor, que de amar não exime o amado,
prendeu-me a este com prazer tão forte
que, como vês, não tem me libertado.
(eu, 1ª versão ― 2016)

Amor, que a amado algum amar perdoa,
prendeu minh'alma à deste em prazer forte
que ainda, como vês, não libertou-a.
(eu, 2ª versão ― 2016)

Amor, que a amado algum de amar isenta,
Prendeu-me ao seu prazer, tão firme e forte,
Que inda os grilhões, bem vês, não me arrebenta.
(Calib ― 2016)

Amor, que a todo amado amar obriga
me aprisionou por um prazer tão forte,
que, como podem ver, não se desliga.
(Guilherme Gontijo Flores ― 2016)

Amor, que a nenhum amante amar perdoa,
deste me fez presa de prazer tão forte,
que, como vedes, inda me agrilhoa.
(Robert de Brose ― 2021)

Amor, ch’a nullo amato amar perdona,
mi prese del costui piacer sì forte,
che, come vedi, ancor non m’abbandona.



Love, that exempts no one beloved from loving,
Seized me with pleasure of this man so strongly,
That, as thou seest, it doth not yet desert me;
(Longfellow)

Love, that denial takes from none beloved,   
Caught me with pleasing him so passing well,   
That, as thou seest, he yet deserts me not.

(Henry F. Cary)

Love, that permits no loved one not to love,
So ravish'd me to think of pleasing him,
That, as thou see'st, its influence still I prove.
(Ichabord Charles Wright)

Love, which permits no loved one not to love,
Took me so strongly with delight in him
That we are one in Hell, as we were above.

(John Ciardi)

Love pardons no one loved from Love, and I
Was drawn to him with what force you can see:
It still holds me beside him as we fly.

(Clive James)

Love ― which none who is loved from love frees ―
so rapturously  seized me from this friend,
that even now you see it unappeased.
(Robert M. Torrance)

Love, that excuses no one loved from loving,
seized me so strongly with delight in him
that, as you see, he never leaves my side.
(Mark Musa)