Carlos Alberto Nunes, transcriador.

Uma rápida nota que me ocorreu foi a respeito da relação entre o conceito de transcriação, de Haroldo de Campos, e a prática tradutória de Carlos Alberto Nunes. Sei que é meio complicado falar do conceito de transcriação uma vez que ele costuma ser mal lido até as tripas, entendido (e assim o expressam de modo manifesto, do youtuber ao venerável acadêmico) como uma proposta de tradução em que o dito cujo quer ficar fazendo estripulias em cima do original, inventando moda, quer ser melhor, aliás, do que o próprio original. Não vamos nem entrar no mérito do "no que você se baseia para ―?". Isso é um disse-me-disse sem fim, todo mundo dando uma de sabichão. Mas, supondo que encontrássemos algum filho de Deus que o explicitasse, então chegaríamos a seu texto sobre a transluciferação mefistofáustica, publicado como último ensaio em seu livro com traduções de passagens da segunda parte do Fausto de Goethe. Assim ele encerra:

Flamejada pelo rastro coruscante de seu Anjo instigador, a tradução criativa, possuída de demonismo [note: possuída ― noutras palavras, mefistofáustica], não é piedosa nem memorial: ela intenta, no limite [note: no limite], a rasura da origem: a obliteração do original. A esta desmemória parricida chamarei "transluciferação".

Das coisas mais fáceis do mundo, fácil do fácil é interpretar de maneira precipitada uma passagem assim. "seu Anjo instigador" (o leitor mais perspicaz já enxergou Walter Benjamin aí no meio, mas vamos na presunção de inocência): parágrafos antes Haroldo mencionará o Anjo da Tradução, "AGESILAUS SANTANDER", que, "em sua Hýbris, é lampadóforo", isto é, "portador da luz". Que luz seria esta? Um pouco mais à frente:

Por essa deflexão [deformação, afastamento], a tradução radical libera a forma semiótica oculta no original [note: libera; forma semiótica oculta ― no início do ensaio, traduzir é uma "Pulsão dionisíaca" que "põe a cristalografia em reebulição de lava"], no mesmo gesto [note a ideia de simultaneidade] em que se dessolidariza, aparentemente [note as implicações de solidarizar-se, note o aparentemente], de sua superfície comunicativa.

Estamos no terreno de uma reflexão tradutória profundamente marcada pelas ideias de Walter Benjamin e Roman Jakobson, duas estrelas-guia no pensamento de Haroldo. Aquilo que ele chamará de da metafísica à física tradutória, ou seja, acoplar a concepção de tradução benjaminiana, dona de um lastro messiânico que vê na tradução um ato capaz de incutir uma fagulha, ainda que mínima, que sugira o instante original, o instante primordial em que as línguas todas eram uma só; acoplar tal concepção à ideia jakobsiana de que, diante de tantos aspectos funcionais e fundantes do texto poético (o famoso "tudo está te dizendo alguma coisa"), a tradução em absoluto não é possível, salvo se o que fizermos for recriar o texto, o que envolve, portanto, um ato mais completo e simultâneo de composição de um corpo paramórfico (ou de um processo de cristalização para―antes "iso"―mórfica, para remeter o leitor aos termos especificamente usados por Haroldo).

Não é simples entender isto. O ideal de tradução benjaminiana advém de uma frase célebre de Pannwitz, segundo o qual, ao se traduzir um texto, não se deve buscar, por exemplo, aportuguesar o grego, e sim helenizar o português. Traduzir, é certo, mas sem diluir aquilo tudo numa naturalização excessiva, mantendo uma centelha da diferença fundamental entre as línguas, pois só assim essas mesmas línguas podem ir além de si próprias e manifestar aquela tal fagulha que mencionei antes, ou seja, um instante que relembre o estado de união primordial-hipotético das línguas. Uma tarefa, assim sendo, maior e de cunho metafísico, que, no pensamento tradutório de Haroldo, se encontra com as ideias de Jakobson: se você considera tudo o que existe num poema, você vai chegar à conclusão de que qualquer coisinha que seja mudada, ali, fará com que o castelinho de cartas do Soneto de fidelidade rua por completo, o que, noutras palavras, é dizer que a mensagem estética é, conforme Max Bense (lembrado por Haroldo em seu texto inaugural sobre teoria tradutória, de 62), o tipo mais frágil de mensagem, pois pode quebrar e se romper com o mínimo suprimir-se de uma vírgula. A título de exemplo, pense numa sentença judicial. Se é verdade que existem partes ali que simplesmente não podem ser mudadas um mínimo que seja, por exemplo o dispositivo (pois se adiciono um zero a mais na pena imposta eu terei, no mínimo, desgraçado a vida de alguém), existem outras, todavia, que podem ser substituídas por um sem-fim de maneiras. Ao invés de "Compulsando os autos", posso muito bem colocar "A leitura do processo". O que muda? Em essência, nada, a não ser, claro, o impacto do texto em seu público: clareza, por exemplo. Com a mensagem estética é tudo muito distinto. Uma palavra a menos num poema de João Cabral é o fim da linha. Uma fonte distinta usada num poema de Augusto de Campos é a treva.

Logo, a única saída possível para se traduzir o que não pode ser traduzido é recriando, o que envolve, assim sendo, um trabalho, como eu disse, simultâneo de consideração de uma gama muito ampla de possibilidades. A expressão usada por Haroldo de Campos é feliz: no início ele fala de cristalização isomórfica, quer dizer, você cria um texto que se cristaliza de maneira isomórfica ao original; depois, contudo, tendo o cuidado de manter o espaço diferencial em seu conceito, uma vez que "iso-" traz consigo a ideia de igualdade, Haroldo usará cristalização paramórfica. Paralela. É um conceito complexo, eu repito, mas que não é nenhum absurdo ou nenhuma viagem teórica disparatada. Ivo Barroso diz que teve de fazer cerca de 60 versões do primeiro verso do primeiro soneto de Shakespeare a fim de manter a métrica, a aliteração e a rima: From fairest creatures we desire increase. Numas versões ele conseguia a métrica e a aliteração, mas não a rima. Noutras, a rima e a métrica, mas não a aliteração. Ou seja: é preciso manter tudo ao mesmo tempo.

Mas, claro, durante esse processo é comum que o tradutor ganhe uma margem de manobra em relação ao plano semântico do texto. Isso não é nenhuma invencionice das teorias de Haroldo. Quando Dryden, no século XVII, dividia as possibilidades de se verter um texto em três (metáfrase, paráfrase e imitação), e, entre a metáfrase, que era a manutenção máxima, e a paráfrase, que era a manutenção com liberdades, por assim dizer, dizia preferir justamente a paráfrase, ele basicamente estava dizendo a mesma coisa. (Um parêntesis, pois que o argumento de Dryden é interessantíssimo: ele diz que, mesmo supondo que alguém conseguisse uma metáfrase perfeita, isso seria a mesma coisa de andar na corda bamba com os braços amarrados: a pessoa pode até conseguir, mas ela não faria um espetáculo, o que implica dizer que a beleza, o desempenho, o garbo contam muito.) Pois paráfrase, para Dryden, era tradução com latitude. Você traduzia, sim, mas não perdia nunca o original de vista, à maneira de um horizonte a ser seguido. Estabelecer quais são essas latitudes, quais são os pontos que servirão de baliza para sua empreitada, envolve uma análise detida do original, um conhecimento que lança mão não só do que o dicionário canhestramente usado tem a oferecer, mas, também, do que a poética daquele autor, a poética de seu tempo, a poética daquela fase de sua obra etc etc têm a oferecer.

Oras: já em seu texto inaugural de 62, Haroldo dizia que o plano semântico servia tão só de baliza demarcatória. Alípio Correia Neto observa, com muita propriedade, que se o plano semântico é baliza, ele não pode ser "tão só", o que faz da formulação de Haroldo algo contraditório. Sim, correto, mas note, todavia, que ela é muito mais rígida do que se pensa: temos aqui uma baliza que demarca. A baliza guia, e o que demarca estabelece fronteiras. Isso é muito mais respeitoso com o plano semântico do que as leituras rasas da transcriação haroldiana com frequência repetem!... Existe, sim, uma margem de manobra que possibilite o garbo na execução, o que, mais cedo no ensaio sobre a transluciferação mefistofáustica, Haroldo expõe como:

O tradutor de poesia é um coreógrafo da dança interna das línguas, tendo o sentido (o conteúdo, assim chamado didaticamente [pois sabemos que a forma do conteúdo e o conteúdo da forma são também semântica textual]) não como meta linear de uma corrida termo-a-termo, sineta pavloviana de retroalimentação condicionada, mas como bastidor semântico ou cenário pluridesdobrável dessa coreografia móvel.

O que se segue é a passagem a respeito da pulsão dionisíaca do traduzir, citada de passagem anteriormente, que "dissolve a diamantização apolínea do texto original já pré-formado numa nova festa sígnica". A ideia aqui já é menos rígida graças à troca de baliza demarcatória por "bastidor semântico" ou então por "cenário pluridesdobrável", ou, mesmo, pelo advento da ideia de uma "coreografia móvel". Oras: cada passagem do texto traduzido exige um arsenal distinto por parte do tradutor, o que (ainda mais na segunda parte do Fausto, tão rica em registros e poéticas!) explicará os amplos recursos trocadilhescos e paranomásicos na famosa fala do Grifo que Haroldo verte ou, então, no caso do Coro dos Lêmures, sua opção por traduzir de um modo que remeta o leitor ao Morte e vida severina. Cada passagem, portanto, equivale a uma exigência, o que explica o fato da coreografia ser móvel e o fato do cenário ser plurisdesdobrável (leia-se: não é algo fixo, meta linear de uma corrida, mas sim uma escritura, uma máquina geradora de significados). Chegar a um objeto textual que corresponda esteticamente a tal objeto originário é a grande questão, e por isso Haroldo se esforça em fornecer, aqui, metáforas que remetam ao aspecto espetacular e cênico da tradução: "bastidor", por exemplo, é muito mais no sentido teatral de caixilhos móveis em que se pregam painéis e cenas laterais dos cenários. Peça, portanto, importante para a performance tradutória: a poesia precisa ser mantida, a festa precisa vir à tona.

Isto posto, creio que já somos capazes de entender a razão do uso de Haroldo de um termo barroquizante como transluciferação mefistofáustica. Aqui não temos só a ideia de transcendência, de tradução e de transposição, como, também, a de luz, a de Lúcifer (anjo rebelde, anjo caído), a de Mefisto e a de Fausto (plano da tentação e da possessão, plano demoníaco e plano da aspiração humana desmedida). Como dirá Boris Schnaiderman no título de um belíssimo livro, tradução: ato desmedido. Oras: a tradução é a criação de um novo texto. Este é um ponto sólido e evidente. A diferença é que se trata de um novo texto que estabelece uma relação de similaridade com o original a tal ponto que representa o original na cultura de chegada. Porta, assim sendo, a luz. Se a tradução criativa advém de uma cristalização paramórfica, então estamos diante de um texto que cristalizou por conta própria mas, ainda assim, carregando a luz do original e, mais ainda, estabelecendo um alargamento de fronteiras linguísticas que aponta para um instante messiânico, edênico, primordial. Por isso que no limite a tradução oblitera o original, segundo este trecho provocador de Haroldo de Campos. Não é uma questão de traduzir de qualquer modo. Eu até entendo a razão das pessoas pensarem tanto nisto, presas que são aos exemplos com frequência arrolados pelos irmãos Campos de Pound como um caso de excelência, em específico o Pound de suas personas e o Pound de Cathay (digo "em específico" pois o espectro tradutório poundiano é muito mais vasto). Pound teria, por assim dizer, desrespeitado essas fronteiras a ponto de romper, até mesmo, com a relação de similaridade entre os textos (parricídio, portanto), e, embora tenha sido elogiado por Eliot como o inventor da poesia chinesa em língua inglesa, isso não quer dizer que ele tenha sido o reinventor daqueles textos vertidos, daqueles autores em língua inglesa.

Sim, entendo-o. Mas aqui é preciso incutirmos outra distinção fundamental: a teoria tradutória dos irmãos Campos é uma coisa. Sua prática é outra. Jorge Wanderley o notara na década de 80 e, hoje, Paulo Henriques Britto tem batido sempre nessa tecla. Não que haja uma distinção enorme (justamente porque a teoria tradutória deles não é esse oba-oba que alegam), mas as possibilidades de interpretarmos instantes ousados das formulações haroldianas (e o ensaio sobre a transluciferação mefistofáustica chega a casos máximos, bastando que se cite o parricídio do original) são muito distintas da microscopia e da busca laboriosa por um saldo máximo de transposição. Afinal de contas, não podemos ler a teoria tradutória de Haroldo fora de suas análises e de sua própria prática tradutória. Quem lê o restante do ensaio do Haroldo vai perceber que a minuciosa análise e a maneira obsessiva com que ele busca manter um sem-fim de peculiaridades do original vai muito longe do que uma leitura desatenta ou mesmo do que possibilidades perniciosas de leitura de passagens de seu texto podem nos dizer. E é justamente essa percepção do que é o original é, em seu coração semiótico, e a mobilização de recursos variados para recriar todas essas características mínimas num texto de vida e efetividade estética própria, que faz com que tenhamos uma percepção mais nítida do que exatamente Haroldo tinha em mente. A possibilidade de obliteração do original se dá no limite, e esse limite aludido por Haroldo com muita facilidade se confunde numa proposta messiânica à maneira de Walter Benjamin, isto é, como sendo apenas um átimo, uma sensação, uma presença, um sussurro muito mais do que uma realidade de fato ou uma meta a ser, propriamente, alcançada. Mas, aspecto importante, essa obliteração não se dá de forma displicente, dando-se, antes, por meio de uma tradução que busque abarcar o original como um todo, eclipsando-o, em sua aspiração mefistofáustica, sem baratear absolutamente nada.

Portanto, transcriação: trans-criação: transcender a criação do original, criando um texto que consiga manter uma complexa relação com o original, de modo a manter essa luz, de modo a fazer com que a tradução criativa crie um texto que carregue consigo uma vida estética. Meschonnic dirá tradução-texto, quer dizer, uma tradução que funcione do mesmo modo que um texto, um poema. Não é nada lá muito absurdo, eu repito. O termo "transcriação", cunhado por Haroldo, é simplesmente uma maneira teoricamente complexa (e que fique bem claro que tal complexidade não é gratuita; ela é necessária para que certas facetas do fenômeno sejam abordadas), como diz Paulo Henriques Britto, de falarmos de traduções de alto nível de competência. Guilherme de Almeida, já na aurora do movimento modernista, preferia chamar suas traduções francesas de transfusões, e outra não é a impressão que temos ao ler aqueles instantes em que, comentando suas próprias traduções, diz ter exagerado de propósito ou se compraz de ter achado uma versão antiga do verso mais próxima de sua solução. Num último exemplo eu poderia me lembrar de Ivo Barroso, tradutor a priori distante das propostas de Haroldo de Campos mas que, em entrevistas, fala de transposição poética mais do que simplesmente transpor o conteúdo nu e cru, destituído de beleza. Oras: traduzir e manter a poesia é algo que vem sido pretendido desde que a tradução de poesia se intenta enquanto tal... A transcriação é em essência isso. Walter Benjamin já dizia: a tradução não pode se prestar a transpor um conteúdo inessencial. Para se transpor a essência de um conteúdo poético, é necessário chegar-se à poesia, e, para se chegar à poesia, você tem que considerar o conjunto indissociável forma e conteúdo, de modo que, na hora de transpor, faça-se aquela transposição poética que Ivo Barroso alude, ou a cristalização paramórfica de Haroldo, a metáfrase de Dryden etc etc.

E aqui chegamos a Carlos Alberto Nunes. Haroldo sempre se referiu de modo respeitoso às versões de Nunes para Homero. Diz, no livro em que dava à lume sua versão para o primeiro canto da Ilíada (o início antes publicado numa revista da USP): "estamos diante de uma empreitada incomum, que merece, como tal, respeito e admiração." Respeito e admiração, bem se entenda, pelo esforço de verter ambos os poemas e, "Num outro plano, o prosódico, pela interessante solução (louvada por Mário Faustino, se bem me lembro) de buscar num verso de dezesseis sílabas o equivalente, em métrica vernácula, do hexâmetro (o verso de seis pés) homérico." No que se segue um comentário sobre o modo como a empreitada de Nunes refuta afirmações de Mattoso Câmara Jr., e, no fim:

A prática de Carlos Alberto Nunes, sustentada com brio, por centenas de verso, essa medida [dezesseis sílabas, ritmo datílico], contesta eloquentemente aquela restrição normativa. No que se refere à linguagem, todavia, não é um empreendimento voltado para soluções novas, com a estampa da modernidade. Trata-se, antes, de uma tradução acadêmica, de pendor "classicizante" [note as aspas], que retroage estilisticamente no tempo.

O que seria uma versão voltada para soluções novas? A resposta acha guarida no projeto de Odorico Mendes, e assim se desenvolve:

com o escopo de dar uma nova vitalidade ao verso traduzido, mobilizo todos os recursos do arsenal da moderna poética nesse sentido (...). Estou persuadido, pelo caminho até aqui percorrido, de que o "transcriador" da rapsódia homérica se requer, no plano da fatura poética, uma atenção micrológica à elaboração poética de cada verso (paranomásias, aliterações, ecos, onomatopéias), aliada a uma precisa técnica de cortes, remessas e encadeamentos frásicos (o tradutor, no caso, deverá comportar-se como um "coreógrafo" ou "diagramador" sintático).

Em suma, valendo-me de uma expressão que Haroldo usa em posfácio à sua tradução do Canto II da Ilíada, publicada também em edição separada: "a vivacidade rítmico-melódica do original", sem, todavia, descuidar o "lado microtonal do texto: os jogos anagramáticos, o entre-responder das figuras fônicas, onde o som faz sentido, a acústia se deixa irisar da semântica ad hoc." Os exemplos de no que exatamente constituiria isso na prática são variados. Não desejo entrar muito neste mérito. Quero aqui, na verdade, apontar que a ressalva de que a tradução de Nunes seria uma espécie de prosa ritmada, e que a ela não se poderia aplicar a noção de uma tradução criativa, é infundada. Uma vez exposto o que de fato é a transcriação, ainda que de forma rudimentar, não vejo como o procedimento de Nunes poderia  não ser tratado como tal, negando-lhe uma força atual e atuante, como Haroldo chamará sua pretensão noutra passagem.

Atual e atuante o trabalho de Nunes é por um simples motivo, que não precisa encontrar guarida nas reedições de suas traduções (à época Haroldo reclamava pois se tratavam de edições infelizmente esgotadas): ele fecundou o projeto tradutório de nomes variados, por exemplo Érico Nogueira para Teócrito, Leonardo Nunes para poesia antiga, com enfoque na lírica (cito em especial Píndaro e os Hinos homéricos), ou então Adriano Scandolara para Shelley (este último demonstrando, pela simples distância entre as poéticas, a fecundidade do projeto de Nunes). Na verdade, vou com muita facilidade além: o projeto de cada um desses três nomes é um projeto que busca justamente captar com mais vivacidade a força melódico-rítmica do original. Scandolara tem como pretensão conservar os pés do original sempre que Shelley escreve na forma de canções, o que, por seu cantabile próprio, explica o esforço, explica sua razão de ser. Oras: o projeto de Nunes pode parecer prosa ritmada, mas dependerá muito de como a leremos. É uma tradução que busca reconstituir a base performática essencial do original, de um modo que talvez possua até mesmo mais radicalidade que o projeto de Haroldo, que, embora criando uma polifonia de recursos avançadíssimos para transpor essa micro-tonalidade do original de Homero, ainda assim se vale de um dodecassílabo que nem sempre mantém esse andamento rítmico tão cadenciado quanto o original de Homero exige (e o que é interessante, conforme notado por Leonardo Antunes em ótima resenha, é que Trajano Vieira, que assessorou Haroldo em sua tradução para a Ilíada e anos depois publicaria uma versão sua da Odisseia, deu mais ênfase na cadência de sua tradução que o próprio Haroldo).

            Palas Atena a donzela de Zeus em Diomedes infunde
            [ U ― ― ]  [ U ― ― ] [ U ― ― ] [ U ― ― ] [ U ― ― ] [ U (X) ]

Primeiro verso do Canto V da Ilíada. Esplendidamente sonoro, não só pelo andamento datílico perfeito (aqui sem nem precisar de acentos secundários), mais até que o próprio cerne homérico (que, como sabemos, exigia, na prática, apenas um espondeu no final e de preferência um dátilo no quinto pé): digo também pois temos um conjuntinho aliteração em L, depois em Z e, percorrendo o verso, um em D, amarrados por uma assonância em E. Mas repito: não só: se lemos um verso desses de modo mecânico, é possível que cheguemos à conclusão de ser prosa ritmada, mas, quando acentuamos com especial atenção a cadência, então chegamos a resultado muito distinto, que, diga-se de passagem, ganha, e muito, quando posto em performance. O que não chega nem mesmo a espantar, pois mesmo Odorico Mendes, até então tido como autor de versões bestialógicas ou, no mínimo, dificílimas, ganhou um outro nível de compreensibilidade quando posto sobre a ribalta graças ao recente projeto teatral Iliadahomero. Exemplos simples de como o procedimento de Nunes possui uma semente transcriativa incrivelmente fértil, em todas as acepções que discuti antes, podem ser vistos nos tradutores que se beneficiaram de seu legado, antes citados, ou então nesta versão de Leonardo Antunes para um trecho da tradução de Nunes:


Assim sendo, reputo injustas as ressalvas que Haroldo de Campos sempre apontava ao mencionar o trabalho de Nunes, apesar de seu respeito enorme e até mesmo de seu débito reconhecido. Cabe a Carlos Alberto Nunes, com perfeição, a ideia de uma tradução criativa, sem que seja necessário cairmos em ressalvas que, a bem da verdade, se demonstram como sendo uma bela duma armadilha. Prosa ritmada se não soubermos ler, se não soubermos extrair todo o potencial que possuem...