Breve ciclo de postagens sobre Ana C. Parte quatro.



Já sobre a confissão propriamente dita, o assunto da sinceridade, quem sabe se terminando de citar aquele relativamente célebre soneto nós podemos revisar algo. Quer dizer: algum grito da habitante das grades poéticas, vazado num soneto que, a bem da verdade, não apresenta um compasso e mesmo uma sonoridade que consigam fazer jus ao que em alto relevo está expresso neste último terceto de um outro:

           Vai-se o inútil salmo, o inútil amor
           Em cada começo o fio e a agulha
           Em cada som um nome só: fim

Nos dois primeiros versos desta estrofe temos uma dosagem altamente equilibrada de assonâncias em I, em U e em O, do mesmo modo que temos uma aliteração também equilibrada em M e em S. São versos bem montados, som por som encontrando um porto seguro, do mesmo modo que a maneira com que "só" se repristina em "som", graças à aliteração mais uma vez em M dos versos, é digna de nota, fazendo, de resto, com que as pontas da frase se unam e, assim, como que afuniladas, cheguem com mais força ao tal do fim.

Mas o resto creio que já pude debater de maneira suficiente. O soneto relativamente célebre: seus quartetos são:

           Pergunto aqui se sou louca
           Quem quem saberá dizer
           Pergunto mais, se sou sã
           E ainda mais, se sou eu

Meio esquisito, pensamos. Parece que ela realmente é doida. Meio patética essa repetição do "Quem", por exemplo. Esquisita demais essa coisa de "se sou eu".

           Que uso o viés pra amar
           E finjo fingir que finjo
           Adorar o fingimento
           Fingindo que sou fingida

Uma espécie de Fernando-Pessoa-caseiro. Não é, como também mostrei, a primeira vez que ela usa de algo do tipo. Um modo de dar uma espécie de blecaute na ideia do fingimento, uma vez que seria bastante que ela confirmasse que é ela mesma, que "sou eu", que "sou sã" ao invés de "louca", do que dizer isso de "finjo fingir que finjo". Oras: é como se ela se visse diante de um labirinto. Porque não escolher a estrada mais fácil de todas? Pois é. Por que não? Uma boa pergunta. Realmente, uma boa pergunta. Ana C. também quer saber a resposta.

Quero que esta postagem aqui seja um pouco rápida também (o cansaço acaba batendo). Então não vamos ficar elucubrando demais a respeito do assunto e, de pronto, observemos o que um poema como flores do mais tem a nos dizer. Estabelecer uma correspondência com Baudelaire é simples seja pelo fato de que a maior parte do título vai de encontro ao título Flores do Mal (quer dizer: até "flores do ma-" é tudo igualzinho), seja pelo fato de que Ana C. era uma leitora atenta de Baudelaire, tendo até mesmo parafraseado o poema O Cisne.

           devagar escreva
           uma primeira letra
           escrava

É um trocadilho bastante manjado ("escreva - escrava"), mas que costuma revelar muito por parte de quem o faz. Se no poema Greve de Augusto de Campos, por exemplo, a ideia da escrita é uma ideia de libertação (no segundo verso lemos: "escravo se não escreve"), aqui a ideia é a de escravizar a palavra após, devagar, escrever-se a primeira letra. Na verdade estou falando em "palavra" mas aqui a coisa é ainda pior: é a primeira letra, só que escrita devagarinho. Ou seja: há uma atenção e um cuidado máximo, minucioso ao extremo.

           nas imediações construídas
           pelos furacões;

Um bom contraponto. Quer dizer: essas imediações não deveriam ser destruídas? Porque se elas são construídas, então ou o caos se apossou daquele cenário a tal ponto que o furacão serve pra construir alguma coisa, ou, então, estamos diante de um tipo de construção que se vale de algo muito forte e impetuoso para que as construções sejam feitas. Leio uma metáfora para os sentimentos, noutras palavras, vistos como furacões que constroem habitações ou que constroem qualquer coisa que seja. Se se escreve, com muito cuidado, uma palavra que é escravizada por esse zelo extremo, então temos aquele choque que mencionei tantas vezes: a técnica poética refinada e o manancial da subjetividade.

           devagar meça
           a primeira pássara
           bisonha que
           riscar
           o pano de boca
           aberto
           sobre os vendavais;

A ideia continua sendo a mesma, e, de um modo geral, o mecanismo do poema será o de contrapor um modo de tratar o impetuoso, o incontrolável, o jorro de forma minimamente calculada, só que de tal modo que mostre, a um só tempo, a insuficiência do projeto de mesura e, ao mesmo tempo, a necessidade de se entender com precisão o que está em jogo dentro de nós, como se o poema de Ana C. funcionasse, a um só tempo, como uma poética e uma anti-poética, é dizer: poética porque traça objetivos de sua poesia e anti-poética porque aponta insuficiências em projetos que levem um dos lados sem consideração do outro. Mas tenha em mente que "pássara" é uma gíria que também significa as partes pudendas da mulher, ou, noutras palavras, a famosa "passarinha". Se essa pássara é bisonha, então ela precisa realmente ser estudada ou contemplada, medida, pois não se pode tratá-la como um organismo estranho. Isto equivaleria ao que, noutro poema, Ana C. ridiculariza do seguinte modo:

II

Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. E difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.

Você já sabe: a voz feminina reprimida não exatamente pela tradição, mas do que a tradição, de mãos dadas com mecanismos opressores da sociedade, faz com a voz feminina. Pois a parte I do poema diz:

I

Enquanto leio meus seios estão a descoberto.

Só aqui observe: "estão a" ao invés de "se fazem". É mais autêntico. "meus seios" e não "meus textos". Ainda dá pra dizer que é mais autêntico. Continuemos:

É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.

Quando falamos em "poética", falamos num fazer geralmente ligado ao campo artístico, a uma espécie de perícia técnica. Tudo partido ao meio tão logo a poeta se reconcilia com seu corpo, ou, no mínimo, quando esse corpo passa a incomodá-la, no que ela para de tentar escondê-lo "no meio dessas letras" (note a nota de desprezo: "essas"). É quando a poeta deixa de ser a musa, certo, mas também quando ela deixa de emular de forma servil a poesia masculina, alçada à categoria de universal, haja vista que, de modo irônico, ela, que deveria oferecer o seio para que outros se nutrissem deles, é justamente quem se incomoda com seus próprios seios, é quem os esconde e quem se nutre dos seios de "poetas pensados no meu seio". Quebrada ao meio: agora, de igual pra igual.

           devagar imponha
           o pulso
           que melhor
           souber sangrar
           sobre a faca
           das marés;

Não se trata mais de uma faca cabralina. Impor a si próprio o pulso é algo que vai além do ato de escrever uma primeira letra escrava ou de medir a pássara bisonha. Afinal de contas, medir a pássara bisonha envolve consigo uma espécie de forma de se domar aquela pássara, o que, noutras palavras, pode significar também um modo avesso de mantê-la na condição de bisonha, porém agora devidamente estudada. Sim, é algo além, mas de tal modo que esse pulso sangre melhor sobre a faca das marés. Maré aqui indicando liberdade, ou, quem sabe, qualquer coisa de tormentoso, se essa maré realmente se aproximar do que as facas fazem (estragos). De todo modo, o pulso que sangra na maré se dilui, mas, ainda assim, ele continuaria sangrando. As duas coisas são importantes.

           devagar imprima
           o primeiro
           olhar
           sobre o galope molhado
           dos animais; devagar
           peça mais
           e mais e
           mais

Animalidade, natureza (chuva: molhado), contemplação, demoras, sínteses. Não há nada de irreconciliável entre a busca pela vida que palpita em todas as nossas cordas, por uma subjetividade quem sabe desabrida, e um cuidado, uma atenção, até mesmo uma precisão implícita.