Breve ciclo de postagens sobre Ana C. Parte dois.


Vamos dar uma olhada um pouco mais detida no processo de composição de Ana C., pelo menos até onde os poemas com uma força metalinguística qualquer podem nos levar. Acho que na última postagem eu fui o mais claro possível a respeito da coisa da sinceridade, do fingimento implícito no trabalho de aprimoramento estético e na relação dúbia que a poeta estabelece com esses dois polos. Um embate e tanto, se quer saber, e que demonstra uma consciência bastante aguda por parte de Ana C., fazendo com que, de imediato, aquela caricatura corrente de sua poesia como sendo um arremedo de quinta da poesia confessional (muitos, de forma maldosa, a chamam de protótipo de Sylvia Plath brasileira) ou como se ela se limitasse a tanto. Um poema particularmente bom a respeito do assunto é psicografia:

           Também eu saio à revelia
           e procuro uma síntese nas demoras
           cato obsessões com fria têmpera e digo
           do coração: não soube e digo
           da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
           na vida) e delimito o verso como quem acena
           e vivo como quem despede a raiva de ter visto

Remeter qualquer conteúdo metalinguístico, um mínimo que seja, à palavra "psicografia", nos faz lembrar de imediato o poema-monumento de Fernando Pessoa. Num fragmento de fama relativa, Ana C. brinca e diz: "a gente sempre acha que é / Fernando Pessoa". Mas muita calma nesse ímpeto: não basta que se leia no sentido qualitativo, ou seja, algo como a gente sempre achar que somos os bonzões do pedaço quando na verdade pode não ser bem por aí. É também no sentido de que a poesia de Pessoa é uma poesia produtora em seu grau mais acentuado, capaz de produzir, até mesmo, poetas inteirinhos, prontos pra ação. Fingimento total, nós dizemos, mas não no sentido simplista de que o poeta é um mentiroso. Nunca entendi de onde as pessoas tiraram isso do Autopsicografia de Pessoa, ainda mais considerando que o próprio Pessoa teve o cuidado de dizer, num poema como Isto, que não é que ele finja ou que ele minta, mas, antes, que ele apenas sente com a imaginação. Fingidor, no poema de Pessoa, atitude intimamente ligada ao comboio de corda que se chama coração (última estrofe), é um criador de fingimentos, um demiurgo, um artista que transforma a dor deveras sentida numa dor ficta, ilusória, alicerçada no plano textual mas sem, necessariamente, uma relação de negação com a dor de que se parte. Há um liame, aliás, que pode ser mais ou menos acentuado, de acordo com a têmpera do poeta.

Ana C., que se chamava de uma mulher do século XIX disfarçada em século XX, namorava a possibilidade do poema veicular sentimentos íntimos, buscando alcançar, assim, a afamada sinceridade. Mas o poema é um maquinário que pressupõe um fingimento, que abre uma distância, uma lacuna necessária, empreendendo aquilo que Roland Barthes (teórico do apreço de Ana C.) chamava de luto da sinceridade. A forma de se fechar o círculo, por assim dizer, e recuperar alguma coisa daquela relação íntima e mediada pelo desejo, pela paixão, que Ana C. pressupunha ser fundamental durante a leitura (o que pode ser visto, por exemplo, no seu elogio às traduções de Bandeira para Emily Dickinson), é interpelando o leitor a defrontar-se com o poema de perto, não raro chegando ao ponto de se ver incomodado com uma distância tão mínima estabelecida entre ele e a trama poética diante de seus olhos. É uma sensação que decorre da maneira como os poemas de Ana C. puxam o leitor pra dentro do processo de significação, como se se estruturassem com base numa voz íntima que lhe contasse algum segredo ou alguma intimidade, o que, de resto, a escolha por formas textuais como o diário e a carta bem o atestam.

O uso do termo "psicografia" pra batizar o poema nos diz algumas coisas. É só você se lembrar de Chico Xavier e sua célebre pose. Uma mensagem do além que é mediada por um corpo humano. Que tipo de relação, no plano do poema, Ana C. está implicando? Que o poema seria o médium do poeta? Quando eu disse que a poesia dela puxa nós, leitores, pra mais perto, estou me referindo a coisas como esse "Também" logo no início. É o tipo de coisa que intriga e pressupõe um conhecimento anterior que, se depender só do poema, nós não temos, mas que, de algum modo, o poema parece confiar que seremos capazes de suprir. Claro que aqui estamos falando de psicografia, onde temos o médium e a alma do além. Isso explica o "Também eu", que parece partir do princípio que há uma outra voz ativa que disse sair à revelia. Pois sair à revelia é sair como quem não quer nada, de braços abertos, ao vento, essas coisas. O leitor de poemas não sem muito esforço se encaixa nessa ideia, visto que, apesar dele sempre trazer uma bagagem e tal e coisa e coisa e tal, ele entra com liberdade dentro do poema, ele entra, sempre, com as mãos de certo modo vazias e só depois é que vai sair com elas cheias. Por isso: sair à revelia. Mas pode ser também que estejamos falando do poeta, da maneira como ele sai no mundo... Quem sabe. Acho mais provável que a psicografia que o título se refere seja a psicografia do poeta a partir do poema, ou qualquer outra coisa que de algum modo nos faça chegar ao poeta que preside aquela arapuca linguística toda. Pois ele não só sai à revelia, ou, especificamente, também sai (de modo que vai ter alguém no meio que fará o mesmo, e acho plausível imaginarmos que essa pessoa seja o leitor ou, no mínimo, que essa posição possa ser ocupada pelo leitor sem muitos traumas); ele sai

            e procuro uma síntese nas demoras

Lembro-me dos conceitos de inscape e instress na poesia de Hopkins... Quem sai à revelia está disposto a topar com muitas coisas, algumas simplesmente inesperadas. Se esse alguém se demora na contemplação, então a coisa vai se arrastando mas não só isso: fica difícil para ela efetuar alguma síntese que seja, pois o grau de informação será detalhado demais, e aquela operação de deixar muitas coisas em segundo plano enquanto se liga o piloto automático; bem, isso vai pelo ralo, e a síntese, portanto e repetindo, se torna difícil. Só que tem algo em jogo de mais peculiar ainda: a síntese deve ser buscada nessas demoras. E por isso é que me referi aos conceitos de Hopkins: inscape como aquilo que dá unicidade à coisa contemplada e instress como aquilo que mantém o inscape no lugar e como aquilo que fixa o inscape na cabeça de quem contempla a coisa. Buscar pela síntese nas demoras é um modo de buscar pela síntese daquilo que a contemplação (e sim, eu tomo "demora" aqui como "contemplação", ainda mais porque, como dito, atrelada a "saio à revelia"), um modo de se captar o inscape da coisa contemplada.

Uma lembrança apenas ocasionada por um verso que gosto bastante. Não sei se me arrisco a dizer que ele parece resumir alguma coisa da poesia de Ana C., ainda mais quando você observa que ela é uma poeta que possui um olhar bastante frenético, indo de lá pra cá de maneira brusca, por exemplo quando elenca todas aquelas roupagens em Samba-canção. Sim, é verdade, mas o plural em "demoras" abarca esse olhar que anda e se movimenta, mas não só isso: apesar de estar sempre em movimento, é como se o olhar de Ana C. se detivesse em alguma coisa e, de fato, estivesse procurando mesmo uma espécie de síntese nas demoras.

 Mas as coisas começam a melhorar um pouco, a ficar mais interessantes. Sair à revelia e procurar uma síntese nas demoras parece mimetizar, de algum modo, a condição pós-moderna, nisso de muita informação, de muita coisa chamando sua atenção e de uma dificuldade implícita, e grande, em qualquer exercício sintético que seja. Ana C. diz:

           cato obsessões com fria têmpera e digo
           do coração: não soube e digo
           da palavra: não digo

A obsessão é algo que esquenta e abrasa. Mas se você cata obsessões com fria têmpera, existe uma espécie de contradição aí, ou, no mínimo, um esforço notável de distanciamento. Se é que é possível ter um distanciamento com algo que é uma obsessão... Mas vamos realmente supor que ela consiga catar essas obsessões. Afinal de contas ela busca uma síntese nas demoras ainda que saindo à revelia. Mesmo porque se ela sai à revelia, então ela está de algum modo mais suscetível às tais obsessões, o que faz com que, de resto, a tarefa de síntese se torne mais árdua. Quer dizer: a demora implica, pelo menos no corpus poético de Ana C., uma entrega apaixonada. Logo, efetuar uma síntese é efetuar um distanciamento bem à maneira da coisa da obsessão e da fria têmpera. Tudo certo. Os versos até então seguiam sem cavalgamentos fortes, num ritmo alicerçado na arte maior (oito sílabas pro primeiro e onze para estes dois). Eis, todavia, que vem o cavalgamento: "digo / do coração". No caso, que o coração não soube. Do quê? Simples: disso de catar obsessões (há uma certa rudeza na escolha do verbo: "catar") com fria têmpera. Portanto, o coração é uma espécie de bomba que pode estourar a qualquer instante. Ou, no mínimo, se a poeta cata obsessões com fria têmpera, ela o faz de maneira desapaixonada, é claro (digo é claro pois basta olhar o adjetivo: "fria"), mas, também, de forma ignorante. Seria uma perda, podemos dizer, e, se correlacionarmos o conceito tão importante de sinceridade à figura do coração (algo quase que automático de ser feito), é como se essa fria têmpera que cata obsessões se tornasse numa coisa ruim ou no mínimo esquisita. E no entanto, Ana C. prossegue: "e digo / da palavra: não digo". Isso é bom. Não só porque usa a surpresa do cavalgamento, mais uma vez, pra quebrar aquele castelinho de auto-controle que podíamos antever até então, se considerarmos a coisa da síntese ou, principalmente, da fria têmpera. É bom porque lança o dizer direto na zona que lhe atravessa o flanco: o não-dito, o silêncio. Se por um lado simula uma espécie de retrocesso, ou seja, ela diz da palavra... até que volta atrás e resolve não dizer; se por um lado podemos enxergar isto, por outro é como se o que ela dissesse da palavra fosse justamente um silêncio, alguma coisa que lhe falta. Oras: o coração também faltou, ele também não soube do que havia sido feito, racionalmente, pela palavra. Se da palavra o que se diz é "não digo", então nós somos lançados (aqui de forma deliberada, ao contrário do que ocorre com o coração, que, em sua ignorância, não soube) a uma zona escura também. Uma zona escura, podemos dizer, que é o terreno ideal para que as sínteses pouco a pouco se tornem insuficientes, se desmanchem, se carcomam, e para que as obsessões espumem.

                                  (não posso ainda acreditar
           na vida)

Esclarece. Ela não diz da palavra porque não pode acreditar na vida, ainda. É um jeito peculiar de colocar as coisas. Se você não acredita na vida, acredita no quê? Na imaginação? Na síntese? Na fria têmpera? Ou na própria arte? E se não acredita ainda... Acreditará algum dia? Quer dizer: o que Ana C. está descrevendo para nós é algo que se assemelha a uma espécie de retrato da composição poética. Sair à revelia, eu disse, é algo que de certo modo os poetas fazem, como se fossem borboletas vagando no espaço, à procura de encantamentos. Mas a síntese nas demoras que esse passeio traz consigo é também uma atividade importante, pois, assim, o poeta como que deixaria engatilhado o fluido da compactação lírica (ou qualquer outra expressão ridícula que você queira usar). Algo parecido com a fria têmpera relacionada às obsessões. A postura de uma vertente mais racionalista e construtivista da poesia moderna não foi esta? Você calar as obsessões, deixar o coração na ignorância, buscar por síntese, elogiar a fria têmpera? Pensemos no cérebro cabralino, pensemos no cérebro vanguardista ou, até mesmo, no cérebro cepecetista por trás da conscientização de classe. Sendo assim, durante todo esse processo de composição o eu lírico não pode, ainda, acreditar na vida. A própria ideia de se acreditar na vida, aliás, precisa ser colocada entre parêntesis, porque é algo que não deve ser enunciado. O reino do poeta não parece ser mais o reino da vida, mas, antes, um reino de preponderância linguística. Mas, como sugeri, existem pontos cegos, por exemplo aquele que os dois pontos, entre "digo" e "não digo" a respeito da palavra, simbolicamente representam: uma pausa, um silêncio. E daí, também, a ideia da psicografia. O poema vai se esclarecendo para nós a partir deste ponto, deste parêntesis. A psicografia aqui é da persona do poeta para o escritor pessoa de carne e osso, ou, até mesmo se quisermos recuperar a chave que enunciei antes, é do poema, enquanto constructo linguístico, constructo estético, para o poeta. É como se a zona da sinceridade, da pessoa obsessiva, tivesse sido posta num plano fora da realidade da composição poética, onde a postura romântica fora banida do terreno da modernidade, seja de forma deliberada como nas tendências construtivistas que apontei antes, seja, também, pelas últimas consequências levadas por vertentes surrealistas, por exemplo. Ana C. está sendo um tanto quanto irônica aqui, mas não de maneira excessiva e não, como eu disse em texto passado, sem abaixar a guarda. Quando ela diz "Também", logo no início, é no sentido de que, apesar de sua poesia não aparentar fazê-lo, ela também o faz, ela também consegue.

                          e delimito o verso como quem acena
           e vivo como quem despede a raiva de ter visto

Acho que as coisas ficaram bem mais simples. Delimitar o verso acenando pressupõe uma ideia de distância. O verso é comandado, o verso é uma espécie de braço mecânico. O mesmo a respeito de viver "como quem despede a raiva de ter visto". Afinal de contas ter visto é um modo de vivenciar, é um modo de se alicerçar na vida e, ali, cravando os dentes no manancial mimético da obra artística, desequilibrar o reinado da síntese e da fria têmpera em prol, um pouquinho que seja, das demoras e das obsessões. No poema enquanto, o primeiro verso diz

           Que dentadas tão pragmáticas.

Meio que partindo do princípio que uma dentada já foi dada, mas, de todo modo, unindo uma coisa meio agressiva, impetuosa ("dentada"), à postura pragmática, que traz consigo uma carga de racionalismo que seja e uma certa objetividade diante do mundo, pois, como sabemos, o pragmático não é exatamente aquele que deixa seus sentimentos transbordarem durante sua análise do mundo. Nos próximos:

           Moscas não existem.
           O à-toa de hoje, de ontem,
           não
           existe.

A mosca se liga metaforicamente ao à-toa. Todo aquele à-toa que agora existe ou que um dia existiu, a poeta diz de forma enfática graças ao cavalgamento, nunca existiu. Quer dizer, sendo assim, que a postura pragmática meio que nega a existência de certas coisas que sabemos existirem, e não falo só quanto às moscas (que se relacionam, também, a qualquer coisa de podre, não precisando ser enojantemente podre), mas também ao à-toa, que, como sabemos, está aí, existe. Pois bem. Verso mágico, de sabor pessoano magnífico:

Só sou se sendo sou sido

Traduzindo: você só é alguma coisa se, ao ser essa coisa, você serviu de uma espécie de fantoche para algo. É como no poema de Pessoa a respeito da pobre velha música, cujo fecho diz: "E eu era feliz? Não sei: / Fui-o outrora agora." Ou seja: aquilo que eu fui um dia, eu acabei de ser, de novo, por um pouquinho, agora. A diferença no caso de Ana C. é que ela está dizendo que só é realmente ela mesma, quando está sendo sida, quando sua vida parece que entra no piloto automático. Pragmatismo puro, isso de você se distanciar, dar alguns passos atrás de sua pessoalidade e, por exemplo, se cristalizar na armadura de um eu lírico. Perto do final temos:

           De grau em degrau,
           relativos nos engolimos como sopa.

A coisa vai se aprofundando e vai se elevando. O trocadilho é meio idiota mas cumpre, pelo menos, uma função. Todavia: engolirmos a nós mesmos como sopa. Você pode se lembrar da mosca ali no outro verso e, ao som de Raul Seixas, fazer a conexão que lhe cabe fazer. Sim, pode. Mas observe a que ponto chegamos... Porque, ainda por cima, tem o tal do "relativos". Oras: se se relativiza, então efetua-se uma espécie de disrupção, um desfoque ou algo do tipo. Você passa a ser relativo a algo, você passa a depender de uma visada propriamente pragmática... Seguindo:

           Ó costelas de minhalma
           acastelai-vos na quarentena de munições,
                                                                mil lições arcaicas.

Significados religiosos não só em "quarentena" mas também em "costelas". Linguagem arcaica não só na interjeição "Ó" como também em "minhalma", no uso do "vós" e, óbvio, nas "mil lições arcaicas". Não creio que estarei sendo exagerado se enxergar aqui uma cutucada, e das boas, nas vanguardas de metade do século, em tudo o que elas tinham de se acastelar por trás de munições, representando sua faceta aguerrida, revolucionária, de vanguarda propriamente falando, ao mesmo passo em que se acastelavam em mil lições arcaicas, relativas à tradição e a um cerceamento da voz poética que Ana C. nos diz, de forma um tanto quanto irônica (e este é um de seus poemas com matizes irônicos mais mordazes) estar sentindo. E veja que ela faz tudo direitinho, não só pela espacialização do final da estrofe ou pela adoção de um tom elevado neste verso de andamento mais ou menos quaternário (ele pode ser dividido, facilmente, em três versos de quatro sílabas), como também pela paranomásia ótima entre "costelas" e "acastelai-vos". E isto para terminar com:

           Reis, coisas, cães,
           uma novíssima muralha vos espera.

E o fato da muralha ser novíssima é algo que a meu ver corrobora minha leitura deste final como sendo uma crítica às posturas vanguardistas. Pois o que é irônico é que a vida daquele feudo se vê totalmente impedida de ser vivida graças às muralhas finamente construídas (seja por serem fortemente protegidas pelas munições, seja pelas mil lições arcaicas). E não falo só quanto a "coisas", mas também da maneira como Ana C. sai dos reis, que, em tese, pelo menos deveriam poder entrar nestas muralhas (o que representa que pelo menos temas elevados deveriam poder ser tratados), e vai até os cães, totalmente prosaicos.

Mas muito bem. Se quiséssemos partir da área psicológica de psicografia para a área física, corpórea, basta citarmos fisionomia:

           não é mentira
           é outra
           a dor que dói
           em mim
           é um projeto
           de passeio
           em círculo
           um malogro
           do objeto
           em foco
           a intensidade
           de luz
           de tarde
           no jardim
           é outra
           outra a dor que dói

De novo nós podemos bater um papo com o bom e velho Fernando Pessoa, mas, desta vez, o Fernando Pessoa da primeira estrofe de Isto. O início do poema de Ana C. é bom: "não é mentira" possui um pé na conversa, e, também de novo, pressupõe uma espécie de conversa antes. É como se ele tivesse dito antes: "é outra a dor que dói em mim", no que respondemos: "duvido", e aí o poema começa: "não é mentira". Sim, é certo, mas a função aqui é muito mais a de dizer que a dor que dói na poeta não é mentira. É outra. Que dor seria? Ela vai explicar. Um projeto de passeio em círculo. Você sai de um lugar e volta para esse mesmo lugar. Só que, nesse caminho, conhece e vê muita coisa. Pode até ficar com a tal da raiva de ter visto do poema anterior. Não interessa. Vai ter que se contentar com aquelas demoras que teve no caminho. Mesmo porque, atente-se: "projeto". É um plano, é algo suspenso. Voltar para o mesmo local de onde se começou não deixa de ser um luxo, afinal de contas...

O objeto que é focalizado, esse objeto é malogrado. Seria dizer que a síntese nas demoras não deu certo? Possível. Mas é preciso notar que o malogro não é do foco. O objeto está em foco. Até aqui, uma coisa um tanto quanto objetiva. Só que esse objeto malogra de algum jeito. Não dá pra saber que jeito seria esse, mas, posto que enxergo uma força metapoética no poema, a interpretação que faço é no sentido de que esse objeto, após o foco, de algum modo não serve aos propósitos que aquele olhar focalizado pretendeu. Um malogro, sendo assim, do objeto que acarreta alguma dor. Depois: "a intensidade / de luz / de tarde / no jardim". Simples, bonito, lírico. O movimento que estas passagens efetua é complementar: começamos com a ideia de um passeio em círculo, o que implica ver o mundo, e depois temos a ideia de um foco, o que sem dúvidas deixaria o passeio mais interessante, e, depois, uma luminosidade que adiciona, e muito, beleza à cena imaginada. Só que isso tudo causa dor, e o passeio que era pra ser feito se torna apenas um projeto (e o fato dele ser apenas um projeto, ou de não poder ser mais que um projeto, ou de se ver reduzido a projeto, são causas para a dor), o objeto malogra e a luz... Bem, ela apenas existe. O que é bom, pois mostra que Ana C. construiu a coisa de maneira instigante: duas camadas de sentido meio que negativas (o passeio reduzido a projeto, o objeto que malogra), das quais nós podemos extrair com razão os motivos da dor sentida, e então uma camada positiva que pura e simplesmente surge. Que dor seria essa, portanto? Oras: a dor de viver, de estar em contato com a vida. Num poema que começa com "na superfície // foram descobertos", somos informados que peixes capazes de cantar o foram. Que peixes seriam esses? Não dá pra dizer direito, mas, de todo modo, esses peixes são uma fonte lírica, afinal de contas podem cantar. Na última estrofe somos informados que

           os olhinhos dos poetas
           piscam como anzóis
           exaustos
           na piscina

Ou seja, os olhinhos dos poetas fisgam esses peixes e, assim, captam a matéria para seu poema. A diferença é que esses olhinhos estão exaustos, e, de algum modo, parece existir mais vida na simplicidade do peixe que é capaz de cantar do que, propriamente falando, no elemento humano, no elemento artístico, no elemento criador: qual seja, o poeta. A terceira estrofe diz:

           capaz o poeta
           diz
           o que quer
           o que não quer
           e chama os nomes pelas coisas

Essa estrofe vem logo depois da informação, na segunda, de que se descobriram "peixes / capazes de cantar". Só que o poeta também é capaz, e ele possui uma ligação com esses peixes. Afinal de contas ele "diz / o que quer / o que não quer". Ótimo. Isso é liberdade. Mas note: "e chama os nomes pelas coisas". Não deveria ser o contrário? As coisas pelos nomes? Porque se ele chama os nomes pelas coisas, é como se, de algum modo, se visse diante, apenas, de nomes, o que, trocando em miúdos, quer dizer que ele só se vê diante da linguagem e nada mais. E a vida?, nós nos perguntamos. Diz o restante da terceira estrofe:

           capazes
           de cantar
           danos causados por olhinhos suados e marés

"o poeta" está no singular e "os peixes" no plural. Neste ponto do poema, "capazes" é muito mais provável de se referir aos peixes do que aos poetas. A coisa só vai mudar quando, na última estrofe, formos informados dos olhinhos dos poetas, onde os poetas se igualam aos peixes no plural. Logo, leio esta parte da segunda estrofe como uma repetição do final da segunda: "capazes / de cantar", só que, claro, valendo-se da pausa e da ênfase um tanto quanto lúgubre que o cavalgamento representa (ao invés das duas versões anteriores: "capazes de cantar" e "capaz o poeta"). E então os danos. Olhinhos suados e marés. Olhinhos suados são o mesmo que olhos exaustos, com a diferença de que existe um elemento aquático e, presumimos, um esforço, um labor, um sullen craft aí no meio. Marés é um tanto quanto óbvio. Provavelmente é aí que os peixes vivem, o que é uma leitura até válida pois os peixes capazes de cantar foram descobertos "às cinco e meia da tarde" (horário do crepúsculo, isto é, quase o fim do dia, hora em que voltamos pra casa, cansados, e queremos apenas dormir e entrar no reino dos sonhos, onde, quem sabe, qualquer laivo construtivista ceda espaço às doiduras do sonho) e foram descobertos "na superfície", como se as marés os trouxessem. A que se referem esses danos?, talvez você se pergunte. A isso do poeta chamar os nomes pelas coisas. Essa relação invertida que apontei. Pois note: começamos na superfície. É só aí, aparentemente, que os peixes puderam ser descobertos. Depois temos a ideia das marés, que, como acabei de dizer, se ligam de maneira mais ou menos lógica à possibilidade dos peixes terem sido descobertos. O problema é que no fim os olhinhos dos poetas piscam (e existe aqui um jogo fônico bom entre "piscam" combinado com "anzóis", permitindo, assim, uma des-leitura de "piscam" como "pescam" também, o que, aliás, eu tomo como certo, embora, de todo modo, a ideia de "pescar" eu veja como plenamente dedutível de "anzóis" num poema que se refere a marés e peixes) "na piscina". Entende como as coisas deram uma diminuída, uma acalmada, se tornaram menores, domadas?

São coisas que ficam claras se observarmos algo como o poema óbvio:

           Não sou idêntica a mim mesmo
           sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista
           Não sou divina, não tenho causa
           Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
           Sou a própria lógica circundante.

Mais claro do que isso impossível. Mas note: "a própria lógica circundante". Não aquela lógica que circunda muralhas finamente lavradas. É algo muito mais próximo de um projeto de passeio em círculo, sem, todavia, que se feche necessariamente o círculo, pois, de resto, "Não sou idêntico a mim mesmo". Assim, é claro que Ana C. também busca a síntese nas demoras. Sim, só que seu resultado não bane a vida e si mesma do plano poético. A lógica ela circunda, mas ela não abafa, ela deixa que a coisa respire. Na próxima postagem quero ver se especifico melhor que tipo de respiração seria esta.