Breve ciclo de postagens sobre Ana C. Parte um.



Então podemos começar. O que tinha pra ser dito de introdução já foi dito. A poesia de Ana C. é uma poesia refinada e com resultados poéticos impressionantes. Duvida? Tentarei ser um mínimo convincente. Comecemos com aquele poema conhecidíssimo, o homem público nº 1 (antologia). Antes que me pergunte, não existe um "o homem público nº 2", o que, por si só, nos deixa numa situação meio incômoda. Afinal de contas, qual o sentido desse "nº 1"? E por que motivo "antologia" em parêntesis? Nem todos os poemas de Ana C. possuem título. Muitos, aliás, não possuem, decorrência em grande medida do fato de que sua obra ficou estilhaçada após seu suicídio, e muito do que engorda a coletânea Poética, publicada pela Cia das Letras e contendo sua obra literária, são versos que, se porventura a poeta tivesse vivido mais, talvez não adquiririam a feição que adquiriram ― o que, repito, não nos leva à palavra mágica da "insuficiência" nem, necessariamente, a um juízo qualitativo menor, uma vez que esta feição, que suponho provisória, de muitos de seus textos, é em grande medida uma feição suficiente, ou seja, uma feição que basta para que o texto que restou seja um bom texto, sem implicar que mudanças posteriores, hipotéticas, tornariam o poema melhor (algo que a simples experiência de qualquer leitor ou de qualquer poeta é capaz de relativizar).

O "nº 1" pode indicar uma ideia de sequência, mas, de todo modo, o número um é o número um. Está no topo. Logo, se temos um homem público, e se esse homem público é o número um, então esse homem público é por conseguinte o maioral. O termo "antologia", entre parêntesis, corrobora com a leitura, uma vez que antologia é um tipo de publicação comumente associada aos melhores momentos, ou, no mínimo, aos momentos mais representativos. (Afinal de contas nada impede que tenhamos uma antologia de piores momentos, como se aqueles fossem os melhores piores momentos possíveis.) Só que uma antologia, embora possua a pretensão de ser sempre uma representação de algo, geralmente, como dito, dos ápices de alguma coisa, é comum trazer consigo uma espécie de descompasso. Ou seja: abro a antologia poética de Drummond e, embora esteja diante do que realmente importa na obra de Drummond (e o objetivo de antologias é esse, basicamente), existe um descompasso de quando saio de um poema publicado no Alguma poesia para outro de Lição de coisas. Um lapso, sendo assim, perfeitamente compreensível ainda que se trate de bons momentos dispostos em ordem cronológica: se faço uma antologia dos melhores tombos que já levei na vida, entre a queda na escada e a bacia fraturada enquanto lavava a área, eu omiti aquele escorregão corriqueiro ao atravessar a rua.

           Tarde aprendi
           bom mesmo
           é dar a alma como lavada.

Ana C. é cuidadosa com os termos que escolhe. Antologias não são feitas logo no início. É bem possível que você desde sempre seja o homem público nº 1, mas se temos a palavra antologia logo depois, então nós temos um espaço de tempo. Por isso o "Tarde aprendi" é importante. Ele já deixa claro que houve um tempo em que tal descoberta não havia sido feita, e, supomos, um tempo doloroso, um tempo onde esse homem público não era ainda o nº 1. Dar a alma como lavada é também digno de nota pois você não apenas lava a alma; você a alma como lavada, o que implica dizer que a alma pode até mesmo não estar tão lavada assim, tão limpa assim, mas a alma está dada como lavada. Ou seja: você se preocupa com isso da alma ser dada como lavada, e por isso você pelo menos dá ela como lavada.

           Não há razão
           para conservar
           este fiapo de noite velha.

"noite velha" num sentido negativo, ligando-se a qualquer coisa suja, provavelmente ao passado doloroso, obscuro ou qualquer coisa do tipo do eu lírico. Fiapo. A alma como lavada é uma higiene. O fiapo, logo, é importante, pois não estamos falando apenas de conservar a noite velha como um todo. Um fiapo apenas (especificamente este), o que pode nos levar à noção de que um fiapinho que seja é inaceitável, tão forte é o ímpeto de limpeza, ou então que um fiapo de noite velha é o bastante pra que a coisa, por assim dizer, se transtorne. Numa ou noutra leitura, existe algo maior: seja o desejo de ver tudo limpo, seja a noite velha propriamente falando (visto que se um fiapo dela faz isso, imagine o todo!).

É bom que notemos o recorte dos versos. Estamos diante de duas frases, cada qual com três versos, só que de tal modo que os dois primeiros sejam versos com um cavalgamento ou com uma certa pausa um pouco mais sobressalente dentro de si. É diferente do terceiro verso do conjuntinho das frases, que é um verso que se desenvolve melhor. Quer dizer: se ele fosse escrito segundo a lógica dos dois versos anteriores, então muito provavelmente sairia: "este fiapo / de noite velha" (ou coisa do tipo). O primeiro verso de cada conjuntinho possui quatro sílabas, ao passo que o segundo possui duas e cinco no primeiro e no segundo conjuntinho, respectivamente, enquanto o terceiro verso é substancialmente maior: sete e nove sílabas. Ou seja: existem pelo menos três sílabas a mais no terceiro verso de cada conjuntinho em relação aos dois versos anteriores, o que faz com que esse verso tenha a capacidade, como antes notei, de guardar um outro verso consigo. Ou então, se quiser tentar chegar ao porquê de estar apontando isso: tendo em vista que essa proximidade interna que existe entre essas duas frases acaba por instaurar um ritmo meio que compassado na leitura, na verdade, se olharmos de forma detida, nós vamos perceber que se uníssemos o primeiro e o segundo verso de cada conjuntinho, nós chegaríamos a um verso de tamanho parecido com o do terceiro, fazendo, portanto, com que os dois primeiros versos de cada conjuntinho sejam versos, eu repito, que sofreram um cavalgamento ou uma pausa sobressalente dentro de si, de modo que a leitura que fazemos dessas frases envolve um movimento inicial de pausa obrigatória no íntimo da frase, seguido de outro movimento mais livre e corrido. É uma overture habilidosa para o poema, do ponto de vista rítmico, ainda mais se considerarmos a pergunta que segue:

           Que significa isso?

E então:

           Há uma fita
           que vai sendo cortada
           deixando uma sombra
           no papel.

Movimentos de fluxo contínuo ou de irrompimento íntegro vão entrar em choque com movimentos cortados ao longo do poema, e estes versos que citei são um exemplo interessante. Aqui, por óbvio, o cavalgamento simula a fita sendo cortada. Mas que fita seria esta? Uma espécie de vizinha daquele fiapo de noite velha? É possível, ainda mais sabendo que este verso vem depois de uma pergunta que demanda uma explicação. Daqui pra frente, aliás, o poema buscará explicar. Por quê dar a alma como lavada? Por quê isso é bom? E essa coisa de que não há razão de deixar um fiapo de noite velha? A fita é cortada e deixa uma sombra no papel. Não é fácil chegar ao significado corretinho do que essa fita seria, mas no geral a fita é um objeto que serve pra ligar coisas, ornamentar... Tudo que você pude fazer com uma fita, eu presumo. Se ela é cortada, você rompe com alguma coisa, e se você rompe, é como se aquilo ali deixasse uma lacuna, uma espécie de sombra. A fita, especificamente, vai sendo cortada. O poema de Ana C. tem dessas coisas. Ele traz muito ao vivo e a cores pro leitor, o que implica dizer que ele depende de uma posição ativa do leitor, por exemplo ao ver a fita ser cortada naquele exato instante, ou então ao acompanhar o desdobramento da pergunta "Que significa isso?" (uma pergunta que, ironicamente, cabe muito mais a nós fazer) ou, num último exemplo, o fiapo de noite velha ser este. Enfim. Estamos observando ela ser cortada naquele exato instante. Já não é mais um movimento óptico de você olhar pro passado a partir do agora ("Tarde aprendi"). A fita está ali ("Há uma") e o ato ocorre agora. Seria, assim sendo, o caso de enxergarmos a fita ser cortada como uma espécie de metáfora para o trabalho da poesia? O fio como metáfora da vida é algo que já está presente no mito das parcas, e não me parece tão absurdo partirmos do fio para uma fita. Se você corta a fita e se ela deixa uma sombra no papel, essa sombra parece ser o próprio poema ou, especificamente, o espaço em preto dos caracteres ali na página.

           Discursos detonam.

Claro que "discursos" nos remete ao título do poema, no que podemos imaginar qualquer político sobre um palanque. Para o homem público, um discurso é um verdadeiro explosivo, uma vez que o homem público não envolve só o que aquele homem ali recebe em sua compleição física e psicológica. Estamos falando também do impacto que a vida pública, que sua existência coletiva recebe ao ouvir um discurso com capacidade de detonar. Ou, interpretação a meu ver mais sólida, no poder de fogo que os discursos possuem nas mãos do homem público, no sentido de que o homem público do poema seria alguma coisa próxima da figura de um político propriamente falando. Mas não nos fiemos apenas nisto: "discursos", aqui, eu julho ser perfeitamente possível de ser lido como qualquer forma de discurso amplamente falando. Essa generalização em voga hoje em dia, de se chamar produções textuais, e seu contexto, e sua recepção, e isso, e aquilo, de "discurso" simplesmente; bem, já na época de Ana C. era algo que possuía uma tendência crescente, mesmo porque começou foi por aí mesmo. Discursos, assim sendo, são capazes de detonar. Mas detonar o quê? O homem público? Sua individualidade? A palavra poética (e dissolvê-la no todo maior do conceito de discurso é algo corriqueiro hoje) possui uma essência peculiar de ir a fundo no âmago do Ser ao mesmo tempo em que expõe aquilo num texto trabalhado com eminência estética. Detona, portanto, as portas de ferro batido de nosso castelinho interior, como também detona o próprio discurso enquanto objeto textual, visto que um leitor possível pode entrar em contato com aquilo e abrir as comportas.

           Não sou eu que estou ali
           de roupa escura
           sorrindo ou fingindo
           ouvir.

A roupa escura explica o fiapo de noite velha logo atrás. Pois fiapo se liga a roupa, e uma roupa escura, no plano do poema, é uma roupa antiga, passada, com todo aquele peso que, diga-se de passagem, o passado carrega consigo. "ali". De novo o poema nos incita a vermos algo que acontece diante de nossos olhos, e de novo numa sequência fortemente marcada por cavalgamentos. É como se houvesse, mais uma vez, aquela sucessão de frases autossuficientes ("Que significa isso?" e "Discursos detonam") e de frases fraturadas no espaço de um punhado de versos. De todo modo, aquela pessoa ali não é o eu lírico. Isso parece meio óbvio, pois se o eu lírico fala conosco, então ele não pode ser um terceiro. Pelo menos parece... a princípio. Pois não sabemos direito quem é o eu lírico, e não só porque ele é, afinal de contas, o eu lírico, isto é, algo que, pra se ter uma ideia, não é nem mesmo exatamente o próprio poeta que escreveu o poema. Não. Existe algo além: é um homem público. Quer dizer: vamos supor que aquela pessoa ali seja realmente o eu lírico. Claro que uma opção dessas só funcionaria se estivermos falando de alguém no passado, ou seja, "veja ali aquela pessoa parada, que, a propósito, sou eu há cinco anos atrás". É uma leitura corroborada pelo lance aí da roupa escura e do fiapo de noite velha. Pois bem. Vamos supor que realmente é o eu lírico. Mas seria mesmo ele? Aquela pessoa sorri ou finge ouvir. São coisas que em público fazemos muito. Mas quando sorrimos para o excomungado na nossa frente, que não para de falar do quanto sua vida é uma maravilha e do quanto ele ganha bem, nós estamos sorrindo de verdade ou só por convenção? Porque o homem público seria isto: uma casca que fazemos, uma roupagem que fazemos para que, assim, consigamos andar em público sem ferir nossa intimidade de maneira fatal. E, se chegamos aqui, aos poucos vamos entendendo a coisa da alma lavada. O homem público nº 1 é um homem como nós todos. Aquela pose de maioral revela um ser humano por trás. A fita que vai sendo cortada eu sugeri que pode ser lida como a vida, mas, independente do que ela seja, o fato é que ela vai sendo cortada e vai deixando uma sombra, e essa sombra parece se assemelhar a uma espécie de ferida, de cicatriz ou coisa do tipo. Se o homem público fosse uma fita, ou independente de que metáfora viéssemos a usar, por trás de sua carapaça também existe algo, algo muito mais humano, uma espécie de sombra que se encolheu e ficou ali, como que num casulo, se protegendo...

           No entanto
           também escrevi coisas assim,
           para pessoas que nem sei mais
           quem são,
           de uma doçura
           venenosa
           de tão funda.

Um verso de duas sílabas seguido de um de nove, e, depois, de outro de nove e de outro de duas. Espelhado. O reverso da moeda, ainda mais se considerarmos que os versos finais são versos com fortes cavalgamentos. Mas observe: "No entanto / também escrevi coisas assim". No entanto o quê? Que coisas exatamente? Seriam aqueles discursos de poder explosivo? A poesia de Ana C. possui lacunas que precisam ser preenchidas pelo leitor. Ela demanda, eu já disse, a mãozinha do leitor. Não há um fio da meada propriamente falando que liga uma parte do poema à outra. Você precisa colocar os miolos pra funcionar e pra ir tapando os buracos. Sergio Alcides está certo quando fala que é uma poesia que possui um refinamento, uma poesia que de boba e de pop (pop no sentido pejorativo, posto que a poesia de Ana C. incorpora o pop com felicidade) não tem nada. "Coisas assim" refere-se provavelmente a coisas de homens públicos, por exemplo discursos (eu sugeri políticos, dado que, de fato, políticos são conhecidos como homens públicos). A diferença com o "No entanto" é que o poema estava se abrindo, estávamos conseguindo ver o que habitava aquela carapaça do homem público: por exemplo a ideia da fita e da sombra. Pois a fita, também já disse, serve pra ornamentar. Vide o que fazemos com embrulhos de presentes. É algo totalmente compatível com o que fazemos em público, ornamentando nosso discurso. Mas, se você desata aquela fita na sua frente, ou melhor: se você a corta, então existe uma sombra, um borrão. Convém rebobinar: estamos na intimidade daquele homem público. Não pense que isso é pouca coisa. Rapaz, nós chegamos longe e parece que nem mesmo nos demos conta. Daí o "No entanto", e daí isso de escrever coisas assim "para pessoas que nem sei mais / quem são". Mas não só: eis que entra a doçura venenosa de tão funda. A simples ideia de uma doçura venenosa equaciona os termos no sentido de que estamos diante de alguém cínico, e com frequência ligamos homens públicos a cinismo puro e simples. Eles escapam do manancial de sinceridade, e a sinceridade é algo importante na poesia de Ana C. No poema seguinte a o homem público nº 1 (antologia), isto é, o poema pour mémoire, nós lemos, logo no início:

           Não me toques
           nesta lembrança.
           Não perguntes a respeito
           que viro mãe-leoa
           ou pedra-lage lívida
           ereta
           na grama
           muito bem feita.
           Estas são as faces da minha fúria.

A aliteração em L é ótima (ainda mais porque veiculada em versos de seis sílabas com andamento jâmbico), e o uso do "ereta" num verso em separado simula, de fato, a pedra-lage ereta sobre a grama. Mãe-leoa, naturalmente, é uma metáfora animalesca, selvagem, mas a ideia de uma pedra-lage lívida é bem menos. Na verdade, a pedra-lage é uma coisa bem pacata, aquelas pedronas que você coloca sobre a grama e que nós imaginamos que dão para uma casinha com uma chaminé e cheiro de bolo saindo da cozinha. Afinal de contas a grama é muito bem feita. Um cuidado, sendo assim, que faz com que o eu lírico revele algo de si ao mesmo tempo em que afasta o leitor de maneira bastante violenta. Uma parte importante da memória precisa ser mantida, mas, nisso de mantê-la, o eu lírico acaba revelando "as faces da minha fúria". Não quer dizer que ele vai ficar na defensiva o poema todo, bastando que se cite os versos posteriores:

           Sob a janela molhada
           passam guarda-chuvas
           na horizontal,
           como em Cherbourg,
           mas não era esta
           o nome.

Os guarda-chuvas passando na horizontal poderiam muito bem ter tornado o verso "Sob a janela molhada" inútil, pois já dão a entender que os guarda-chuvas estão sendo vistos de cima (e o dá a entender de forma bem engenhosa, aliás). Entretanto, Cherbourg. É o nome de uma comuna francesa. Oras: ele surge do nada e não vai ser explicado em passagem alguma do poema. Só podemos interpretá-lo como uma memória. Sendo assim, o leitor não precisou nem tocar a memória propriamente falando: o poema se encarregou de fazer com que esta lembrança se abrisse um pouquinho que fosse. Os versos posteriores, que negam o fato de que a coisa dos guarda-chuvas passando na horizontal teria ocorrido em Cherbourg, todavia, já são uma volta à defensiva, e esse trabalho de abrir o flanco pra depois fechá-lo é bom e instiga.

Mas eu falava da doçura venenosa de tão funda. Nem lembro direito do que estava falando, mas doçura venenosa resulta em cinismo. Temos que ser doces em público, mas justamente por causa desse "temos", verbo no imperativo, é que nós acabamos sendo venenosos iguais umas víboras nojentas. Todavia, a raiz desse cinismo está na profundidade. A doçura é "venenosa de tão funda". Ela vem do íntimo, como se nosso ser, que preside a carapaça do homem público, se enojasse e expelisse veneno diante daquela doçura falsa, justamente por sabê-la falsa. Não somos assim. O bom mesmo é que se dê a alma por lavada. É daí que vem a profundidade do veneno existente em tal doçura. Ana C. parece querer nos dizer que nossa natureza é peçonhenta, e isso de sermos um homem público é algo danoso que deve ser tratado com cautela. Os melhores momentos do homem público, a antologia que lhe representa, só é possível graças a essa doçura que se torna venenosa de tão funda que ela é. A sinceridade genuína só pode ser vista, afinal de contas, como contrária ao jogo de aparências que o melhor dos homens públicos representa...

Um embate a respeito das várias faces que Ana C. apresentou em vida, e do modo como esse número enorme de faces avança e recua na matéria prima essencial de sua individualidade, está no também famosíssimo samba-canção:

           eu fiz tudo pra você gostar,
           fui mulher vulgar,
           meia-bruxa, meia-fera,
           risinho modernista
           arranhando na garganta,
           malandra, bicha,
           bem viada, vândala,
           talvez maquiavélica,
           e um dia emburrei-me,
           vali-me de mesuras

O ritmo tá bem legal, demarcado, com umas rimas aqui, outras ali... Tudo recuperando um batuque que faça jus ao "samba" no título. A poeta parece que foi realmente a fundo num lado podemos dizer sórdido das coisas, por exemplo isso de "mulher vulgar, / meia-bruxa, meia-fera". Pelo menos é isso o que a princípio nos predispomos a julgar (o que não quer dizer em julgamento correto, bastando que notemos os termos "bicha, / bem viada", que, na época, tinham um tom [infelizmente] muito mais negativo do que hoje). "risinho modernista" é o tipo de coisa que vai de encontro ao que boa parte da produção de sua época realmente fazia, mas observe: ele arranha na garganta. Não é, assim sendo, algo natural para Ana C. Traz uma dor consigo, pois enquanto o riso modernista pressupõe uma distância que construa a ironia iconoclasta e restauradora, uma ironia que sirva a um propósito nacionalista maior, a ironia de Ana C. é íntima, muitas vezes olhada com desconfiança diante da possibilidade de se dizer o que o coração sente, de se revelar a intimidade. Tenho repetido isto várias vezes, mas é que a poesia de Ana C. realmente institui um embate com a sinceridade, com o se expressar o que uma pessoa realmente sente, colocar essa pessoa do avesso, mas não de tal modo que o poeta se valha da linguagem de maneira isenta. Antes, Ana C. sabe que o processo de trabalho literário é um trabalho que, uma vez que envolve justamente trabalhar essa linguagem para que a obra de arte ganhe uma constituição estética específica, implica, por conseguinte, em fingimento, em se afastar do próprio âmago. Comentando o livro Monsenhor de Antônio Carlos Villaça, Ana C. recupera a distinção de Mário de Andrade entre lirismo e arte, dizendo:

Lirismo implica prioridade do autor sobre a obra, em despreocupação com a coerência formal da obra em função das obsessões pessoais do autor, em inflação do artista; arte implica trabalho, elaboração estética dessas mesmas obsessões (e não a sua eliminação). Longe de referir-se à arte como "fria", em oposição ao desregramento lírico, este sim "quente" e próximo das nossas emoções, Mário na verdade está apontando para o fato de que arte não é um amontoado gratuito de obsessões (ou pinceladas, ou recortes), mas trabalho dotado de um projeto e de uma coerência (mesmo se supõe a autonomia da lógica do inconsciente).

Caso a ironia deva surgir, assim sendo, ela surgirá como no caso da referência a Cherbourg: irônica, sim, mas reveladora ao mesmo tempo. Irônica, sim, mas com a guarda baixa.

Ocorre que, então, a poeta passou a se emburrar e adotar mesuras. Até a linguagem parece que dá uma aprumada: "vali-me". O poema não acabou. Continua:

           (era uma estratégia),
           fiz comércio, avara,
           embora um pouco burra,
           porque inteligente me punha
           logo rubra, ou ao contrário, cara
           pálida que desconhece
           o próprio cor-de-rosa,
           e tantas fiz, talvez
           querendo a glória, a outra
           cena à luz de spots,
           talvez apenas teu carinho,
           mas tantas, tantas fiz...

A inclusão entre parêntesis não indica apenas uma pitada irônica ou um tipo de riso. Acho possível enxergarmos isso também, mas é mais. Até a postura que viria pra anular todas as outras entra na dança. Afinal de contas carnaval é isso: um monte de figuras juntas num cortejo alegre, festivo. A diferença é que Ana C. foi isso tudo. Ela não só se veste de muitas coisas, como ela também brinca, ela baila, se movimenta:

           embora um pouco burra,
           porque inteligente me punha
           logo rubra

Enquanto na primeira parte do poema tínhamos características meio que conectadas, ou seja, adjetivos próximos de si (por exemplo vândala e maquiavélica, ambos com conotações negativas), após a poeta revelar que se emburrou, e após ela revelar que esse período em que se emburrou foi uma estratégia, estamos diante de uma expressão que apresenta um choque dentro de um curto espaço, fazendo com que as faíscas surjam de maneira muito mais rápida. Fazer comércio e ser avaro é comum, mas dizer, logo depois, que se é burro, já complica um pouco a situação... Ou seja: ela fazia comércio, fazia trocas, mas era avara, tinha muito dinheiro, se apegava a suas posses. Samba-canção parece funcionar como um desfile de posses: eu me fingi disso, disso, disso... Um comércio, mas de tal modo que você aumente sua coleção interior e se sinta avaro do que possui. Seria por isso, então, que ela diz "embora um pouco burra"? Pôr-se um pouco rubra porque burra quer dizer: envergonhar-se. Não estamos diante, no fim das contas, da gênese daquela cleptomania estilística que Armando Freitas Filho apontava? Pois uma vez que aceitarmos que sim, então ler essa cleptomania estilística como inautenticidade não parece ser uma boa ideia. Afinal de contas, faria sentido se a poeta dissesse algo como: fiz comércio, sim, mas não fui avara; antes, não tinha apego algum. Ou então que ela parasse no "burra". Mas não. Ela diz que foi burra porque se envergonhava disso, sabedora (inteligente) do que estava fazendo. O problema é que, pra voltarmos ao dictum de Eliot, bons poetas roubam. Esse desfile todo é um desfile pessoal de Ana C. Ela não apenas se traveste disso tudo. É mais do que isso. São travestimentos que revelam sua intimidade de mulher liberta:

                   ou ao contrário, cara
           pálida que desconhece
           o próprio cor-de-rosa,

"o próprio cor-de-rosa" eu leio como qualquer coisa ligada ao corpo feminino. (Lêdo Ivo, aliás, tem um belo soneto sobre o assunto: Soneto cor-de-rosa.) Este seria o próprio cor-de-rosa, quem sabe, até, a vagina. Se ela se colocava como uma cara pálida que desconhecia esta parte de seu corpo (ou, caso não se aceite tal leitura, que aceitasse isso que ela mesma possuía: "o próprio"), então nós voltamos às razões dela se repreender: "embora um pouco burra". Desconhecer o próprio corpo, afinal de contas, é uma forma de ignorância perigosa, e acho que Ana C. consegue tratá-la muito bem graças ao modo como deixa tudo com uma coloração bem marcante, nisso de "pálida" da expressão e do "cor-de-rosa", e também, claro, à maneira como liga a expressão "cara / pálida", usada por índios pra se referirem aos brancos europeus, à ideia de desconhecimento, ou seja, você é um tipo de novato, de ignorante diante da riqueza daquele próprio terreno. Pois daqui nós podemos voltar ao comecinho de Samba-canção. Quer dizer: eu comecei a citá-lo do quarto verso, mas os três primeiros dizem:

           Tantos poemas que perdi.
           Tantos que ouvi, de graça,
           pelo telefone ― taí,

A poeta fez isso tudo apenas pra ganhar reconhecimento ou, quem sabe, ganhar um pouco de carinho. É uma perda, assim sendo, bem à maneira de ser uma cara pálida diante do próprio cor-de-rosa. Além, claro, do fingimento, que, dentro da poesia de Ana C., é tido como uma perda, eu já disse ― mas vamos deixar essa demão de comentários a respeito do assunto para a próxima postagem, que esta daqui, eu suponho, já deu o que tinha que dar.