Breve ciclo de postagens sobre Ana C. Introdução.
A moça-da-Flip já se tornou uma conhecida de todos, eu presumo. Quer dizer: não é possível que com uma festança daquelas, com direito a telão e pessoas pagando caro por estadias em hotéis, alguém tenha saído sem pelo menos saber de seu destino trágico ou então de um ou outro poema (aquele do poema saindo sangue, aquele do "Tantas fiz", aquele da doçura venenosa de tão funda), ou, no mínimo, que ela pelo jeito escrevia poesia, e que pelo jeito tem um pessoal aí que gosta do que ela deixou. Não, não é possível. Sei que a discussão sobre a Flip no final das contas acaba gerando aqueles efeitos somáticos de sempre, isto é, críticos falando pelos cotovelos porque, no fundo, no fundo, nunca foram chamados pra estar lá. Então já viu: artigos falando que a Flip é uma bela duma vendida, que os escritores lá são um bando de pau-mandados, que ela se engana, que ela pretende ser isso mas na verdade não é nada disso, que ela roubou meu pirulito, que ela colocou chiclete no cabelo da Maria Joaquina... Ó céus. É incrível como aqueles que justamente colocam a Flip num pedestal, querem, num consequente movimento ensaiado e previsível, desancá-la de um posto que, afinal de contas, nem ela própria algum dia quis estar.
Mas isso é do lado da Flip. Não é chegada a hora de perder meu tempo falando dessas coisas, mesmo porque eu também nunca fui chamado pra Flip e nunca nem mesmo fui pra Flip e se for pra dizer a verdade, amado e inteligentíssimo leitor que me lê e concorda com o que falo, eu muito provavelmente não cogitaria ir pra Flip tão logo percebesse quantos livros eu deixaria de comprar indo pra lá (no mínimo, a Obra Completa de alguém). O que me cabe falar é sobre Ana C. O nome da vez, eu suponho. Uma poeta um tanto quanto influente no cenário contemporâneo, uma poeta que cada vez mais chama a atenção dos leitores, beneficiando-se daquele fenômeno (que não deixa de ser peculiar) relativo aos poetas marginais que, uma vez abraçados por grandes editoras, se revelaram no frigir dos ovos bons investimentos (e isso até mesmo com Leminski, que, malgrado o fato de ser um poeta com uma popularidade até boa antes mesmo de sua poesia completa ser lançada, conseguiu bater todas as expectativas ao encabeçar os feudos das listas de mais vendidos).
Com muita facilidade e conveniência podemos dizer que isto se dá graças ao lobby habilmente construído da esquerda e da universidade em alçar à categoria de santa ou de Grande Poeta alguém que não é nada disso. Daí já sabe: você parte desse juízo, qual seja, o de que Ana C. é uma bela duma porcaria, e, enxergando o mundo a partir do que seu juízo lhe informa (como se o mundo fosse aquela plêiade de cores antevista graças a sua lente de contato), você enxerga um monte de panelinhas simplesmente pelo fato de que as pessoas gostam do que você não gosta e, eventualmente, festivais literários de grande monta resolvem homenagear justamente a tal da Fulaninha. É automático enxergar as coisas assim. Não é preciso nem esforço. É uma poesia fácil, é uma poesia fútil. Se um grande festival homenageia algo do tipo, o desprestígio só pode ser da literatura. Não é óbvio?
Serei mais claro. Nome aos bois. Felipe Fortuna em crítica à Folha de São Paulo. 29 de junho. Recebeu uma réplica de Laura Erber (2 de julho), e, depois, a Folha deu a ambos o direito de tréplica (7 de julho). Sei que estou sendo bastante cínico e cretino quanto ao que Felipe Fortuna expôs (ele, por exemplo, não constrói um argumento simplista ― na verdade, há um refinamento bom no argumento dele ― e ele não fala exatamente de um lobby nem muito menos conjuga o mundo lá fora de acordo com sua percepção pura e simples), de modo que, em linhas gerais, o que pretendo fazer aqui (aqui: introdução) é rebater o que ele disse, já me aproveitando do ensejo de que Laura Erber fez boa parte do trabalho. Quer dizer: ela nos lembrou que a Flip age de acordo com um público, mesmo porque ela tem uma larga planilha de despesas e a própria economia de Paraty, aliás, depende muito do que a Flip é capaz de gerar. Logo, se Ana C. é uma poeta que tem se comunicado bem com um público, e se o potencial dela é bom, mãos à massa, rapazes! Vamos investir nela. Mas não só nela, pois a Flip não é só em torno do homenageado. Aliás, é extremamente comum que o homenageado da Flip se veja em posição totalmente secundária diante dos medalhões internacionais que são chamados: gente como Svetlana, prêmio Nobel ano passado, por exemplo. Gente que você só vai ver ali mesmo na Flip.
Até aí tudo ótimo. Quanto às afirmações de Felipe Fortuna, de que a poesia de Ana C. é inconsistente, eu basicamente vou tentar responder da única maneira que realmente compensa ser feita: citando poemas da autora, falando deles e explicando porque os acho inteligentes. Essa retórica que Felipe Fortuna usou em seu artigo é muito infeliz pois ele já parte de um juízo negativo e, com base nesse juízo, como se desse por comprovada a inconsistência da poesia de Ana C., ele liga os pontos e chega à mágica resposta do desprestígio da literatura contemporânea. Mas, para voltarmos a Laura Erber, ainda que a coisa fosse tão simples assim (a ponto de depender de um juízo que em momento algum se explicita no texto de Felipe Fortuna), isso não nos permite chegar ao desprestígio da literatura em nosso país. A Flip não só não possui condão para esse tipo de generalização, como o propósito da Flip se alicerça em outras bases.
Claro que Felipe Fortuna cita alguns nomes para, segundo ele, comprovar a tese de que a poesia de Ana C. é inconsistente. Já já eu volto nisso, mesmo porque este sim é o verdadeiro sustentáculo de seu argumento. O raciocínio é: se mesmo aqueles que elogiam a autora reconhecem esta inconsistência, então homenagear, num evento de tão grande monta e de alcance internacional, uma autora dessas é um absurdo. Parece tudo ótimo. Mas, como dito, já já eu volto. Por ora eu noto que ainda assim nós estamos diante de um argumento que, esse sim, é insuficiente, visto que o propósito da crítica deveria ser girar em torno da obra, de poemas, de exemplos, de casos concretos. Não de generalidades quaisquer. Olha, isso não é legal, e não pense que é uma crítica que faço apenas a Felipe Fortuna: é também a Laura Erber. Sei que o espaço desses caras é exíguo, ainda mais se comparado a toda a infinidade que é o espaço que virtualmente eu posso dispor, mas, ainda assim, esses caras bem que poderiam remodelar seu texto, dar um jeito de colocar a obra, exposta, no texto deles. Caso contrário nós chegamos ao estágio entediante que foi a tal da tréplica: um fala que não foi entendido e a outra diz que não, foi entendido sim. (E no final das contas não dá pra entender nem um nem outro, pois eu mesmo não faço a mínima ideia do que raios Laura Erber quis dizer com o parágrafo do "Se hoje o contrário da crítica são o amor e a amizade".) Não dá. O que pretendo, com esse breve ciclo, é justamente me ater aos exemplos, movido, em grande parte, pelo que Sergio Alcides disse em entrevista também para a Folha (03 de julho): a poesia de Ana C. parece fácil, pop, boba, ingênua, isso, aquilo: na verdade ela não é nada disso, na verdade ela apresenta uma peçonha agudíssima.
Comentários, bem se entenda, não com pretensão de prova. Pelo contrário. Darei minha opinião, como, de resto, Felipe Fortuna desde o início o fizera (tanto que seu texto foi publicado numa área chamada "Opinião"). E só. Com crítica não se pode pretender que uma opinião vença a outra. Pelo menos não no que tange a medula essencialmente subjetiva da coisa toda. Se digo que o texto de Felipe Fortuna possui um refinamento, é porque ele não funda suas bases apenas no seu gosto, mas, antes e fundamentalmente, no que outros críticos disseram (logo, existe uma objetividade em seu argumento ― uma objetividade, eu disse, atacável). O que há pra ser feito, num âmbito crítico, é deixar claro sua opinião, responder por suas convicções, tudo preto no branco. Por isso a ausência de um debate feito especificamente em torno de poemas me incomoda. É como se deixássemos algo de fora ― algo que é justamente o que deveria ser o motor do maquinário inteiro... Pulamos a parte do corpo-a-corpo textual e caímos, quando muito, em enunciações genéricas sobre a obra. E é isso o que torna a conclusão da tréplica de Felipe Fortuna, por exemplo, tão risível:
Bastaria trazer citações da poesia de Ana C. para que cada um desses carimbos –risíveis até aos que admiram a escrita de Ana C.– merecesse reconhecimento. Na ausência, constato que o desprestígio da literatura continua.
Bastaria, bastaria, bastaria... Mas cadê? É um problema crônico na poesia de Ana C. essa coisa de se falar de tudo ― menos da poesia da dita cuja. Você fala da biografia trágica, fala de feminismo até o lábio ficar seco, fala disso, fala daquilo, solta um "Bastaria"... Eita, eita, viu.
A retórica de Felipe Fortuna aparenta ser avassaladora. Porque se ela realmente condiz com a realidade, é bem o que eu disse: seria um absurdo. Sim, seria. Só que tem um probleminha: todas as citações de críticos que Felipe Fortuna faz estão descontextualizadas. Oras: a citação de Armando Freitas Filho está situada como prefácio a um volume de ensaios de Ana C. onde o escopo não é apenas o de falar de sua obra poética, mas, principalmente, de sua obra ensaística (quer dizer...meio óbvio isso, não?), do pendor acadêmico que nunca abandonou sua vida. E não só isso: quando Armando Freitas Filho fala de uma promessa que se cumpriu de forma suficiente, ele não está remetendo ao sentido de insuficiência que Felipe Fortuna quer enxergar; antes, Armando Freitas Filho está dizendo, simplesmente, que tendo em vista que Ana C. se matou com pouco mais de 30 anos, o que ela deixou foi muito e grandioso, bastando que se cite o restante da frase, que começa com "Para sorte nossa" e segue: "por ter sido precoce foi bastante, talvez intuindo o pouco tempo que teria para registrar o esplendor da sua inteligência e da sua vocação." "Inteligência", aqui, referindo-se ao lado crítico de Ana C., e "vocação", certamente, à sua literatura.
A citação, ainda de Armando Freitas Filho, que abre Inéditos e Esparsos segue a mesma lógica: quando o poeta fala da indefinição que tudo passou a adquirir após a morte súbita de Ana C., ele não está falando de insuficiência no sentido negativo, tanto que a própria reunião do livro, conforme Armando Freitas Filho, é para servir de "arremedo de resgate e consolo". Ou seja: a indefinição é num sentido propriamente pessoal (o suicídio de Ana C. deixou uma lacuna em todos que a amavam), sem exclusão da indefinição quanto ao futuro que Ana C. ainda tinha para trilhar, uma vez que, se com 30 e poucos anos ela conseguiu tanto, o que ela conseguiria depois, naturalmente, se torna indefinido.
A citação de Italo Moriconi não muda a ordem dos fatores. Moriconi não se refere à ideia de "catarse de adolescência" como algo ruim. Aqui ele fala da maneira como Ana C. resistia, no início de carreira, em aceitar sua faceta enquanto poeta, com frequência tratando-a como algo menor ou algo a ser chacoteado. E, uma vez que o embate de Ana C. será um embate com o poema, com a palavra, com a linguagem no sentido de que a linguagem poética estabelece uma distância entre a sinceridade do poeta e o fingimento necessário do eu lírico; bem, diante de todos estes fatores, a catarse de adolescência (a preposição, meus amigos, a preposição!) adquire outro caráter, outra importância. Afinal de contas, o poema inicial do livro, recuperação da adolescência, já dizia:
é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço
O poema 1286 de Emily Dickinson (traduzido por Ana C.) diz que "Não há fragata igual um livro, que daqui / Nos distancie". A palavra "recuperação" traz consigo tanto o sentido de recuperar algo como o sentido de recuperar-se. Um polo ativo e um polo passivo, podemos dizer. Só que polos que parecem coexistir dentro do poema, uma vez que se você recupera a adolescência, você a traz à tona com todos aqueles hormônios e aquela loucura e aquela juventude sem eira nem beira que a adolescência representa. Uma tarefa da memória, portanto, mas uma tarefa difícil, posto que a adolescência não se faz apenas de sentimentos ou de datas marcantes: são ambas as coisas ao mesmo tempo. Não é só se lembrar da data exata em que se deu o primeiro beijo, mas se lembrar de tudo o que você sentia, você se lembrar de que modo aquilo ali foi responsável por te tornar uma pessoa madura. Pois aqui nós já entramos na ideia de se recuperar da adolescência: é uma fase conturbada, passageira, uma fase que não pode durar. É preciso se recuperar da adolescência. A poesia de Ana C. possuirá um intimismo poderoso, trará o leitor de encontro a formas de construção textual populares entre os adolescentes da época: diários e cartas, por exemplo. Só que ela se recupera da imaturidade com que essa produção comumente se reveste ao mesmo tempo em que recupera algo desse esplendor.
Ancorar um navio no espaço é uma tarefa que nos é apresentada como difícil. Espaço aqui é lido em seu sentido mais vago, como se espaço fosse vento, sopro. Oras: não é apenas difícil. É impossível. E no entanto, se lermos no navio um objeto capaz de cruzar fronteiras, de atravessar e de nos levar além daqui, então estamos diante do fim de uma viagem. Chegamos onde queríamos ter chegado. É preciso ancorar. Só que ancorar esse navio no espaço é como querer ancorá-lo num nada. Daí, justamente, a inventividade, a agudeza que o poema de Ana C. apresenta. Primeiro porque o eu lírico diz que é sempre mais difícil. Isso pressupõe que ele já fez tal atividade mais vezes, o que implica dizer que ele provavelmente conhece alguma coisa desse navio e dessas viagens. E mais: sabe, até, como ancorar esse navio no espaço. Se lermos essa coisa do navio e do ancoramento como uma metáfora pra poesia (o que o paralelo com Emily Dickinson bem o atesta, além, por exemplo, o daquele célebre poema de Cecília Meireles em que o eu lírico põe o sonho num navio e o navio em cima do mar), então podemos partir do princípio que o eu lírico é um poeta ou, no mínimo, alguém que lê muita poesia (de modo que ele sabe, vendo os outros e não necessariamente por experiência própria, que é sempre mais difícil). Só que, ao invés de abordar apenas o lado da viagem, apenas a coisa de sairmos daqui e chegarmos lá, Ana C. já está justamente no lado de lá, o que, por si só, é uma mudança de foco habilidosa por parte dela. Chegamos no outro lado. Que lado é esse? O título nos dá a resposta: adolescência. Passado. Memória. Logo, um local que não existe mais, de modo que realmente devemos ancorar nosso navio no espaço. Mas notemos novamente: é sempre mais difícil. Mais difícil porque estamos diante da matéria da memória? Ou porque estamos diante de uma fase da vida essencial para nossa formação?
Acho que tudo isso ao mesmo tempo. Mas, se chegamos lá, então nós, de algum modo, recuperamos a adolescência. O primeiro sentido do título passa a fazer sentido. O problema é: estamos lá. A adolescência transborda, de novo, em nossas vidas. Ela se recupera. Por isso é difícil ancorar. A expressão que os dois simples versos nos dizem não se dá apenas no sentido de que é difícil tecnicamente construir essas madeleines poéticas. É também no sentido de que é difícil reencontrar tudo isso de novo, é difícil nos revirarmos do avesso e olharmos para nós mesmos enquanto coisa nua. Mas isso, claro, mediados pela linguagem, de modo que o sentido de que é difícil olharmos para nossa pessoalidade despida ao mesmo tempo em que é difícil ancorarmos o navio, manejarmos o instrumento da poesia, que, para Ana C., é um instrumento de trabalho com a linguagem que torna, queira o poeta ou não, aceite ele ou não este fato, sinceridade em fingimento. Recuperar a adolescência, sendo assim, é difícil, mas também é difícil se recuperar daquilo que essa adolescência infunde em nossas vidas. É difícil fugirmos disso, fugirmos desse ímpeto de juventude que estampou os rostos de toda uma geração. Quando Italo Moriconi fala de catarse de adolescência, ele não está implicando um sentido de coisa feita de qualquer jeito. Existem sentidos mais profundos de purificação e de libertação implícitos no termo "catarse". O embate biográfico que a poesia de Ana C. opera não é cristalino como os próprios leitores com frequência supõem. Não é uma poesia confessional em seus sentidos mais reles. Há um refinamento, uma dificuldade acentuada na coisa toda. É sempre mais difícil, claro que é.
Já quanto a Heloisa Buarque de Hollanda, a coisa é ainda pior. Quer dizer: eu não sei que sentido faz pegar um comentário de alguém sobre a poesia da década de 90 visando, com isso, falar algo a respeito de uma poeta que se matou no início da década de 80. Se fôssemos realmente levar a opinião de Heloisa a sério, então seria mais lúcido observarmos o que ela diz na antologia 26 poetas. Sei lá, sabe? É assim:
Como princípio, não quis que esta antologia fosse o panorama da produção poética atual, mas a reunião de alguns dos resultados reais significativos de uma poesia que se anuncia já com grande força e que, assim registrada, melhor se oferece a uma reflexão crítica.
Eu não vejo insuficiência nenhuma numa afirmação dessas. Mesmo porque, noutra passagem do prefácio, Heloisa chega até mesmo a se queixar de epígonos menores da poética marginal. Esses sim seriam insuficientes...
A famosa citação de Armando Freitas Filho, já na tréplica, a respeito da cleptomania estilística de Ana C. além dos limites, não nos impede de analisar sua poética como autêntica. Na verdade, considerando que a paródia e a apropriação, por exemplo, eram procedimentos comuns durante a poesia marginal, Ana C. não está muito atrás do que era feito por seus contemporâneos ao mesmo tempo em que consegue fazer deste um procedimento peculiar: a frase de Armando Freitas Filho começa caracterizando a cleptomania estilística como "Um dos seus expedientes mais pessoais" e termina, logo após o "ousada além dos limites" (bem provável que se lembrando de experimentos como os realizados com sonetos de Jorge de Lima), dizendo que "abre e agrega, a sua linguagem e indumentária, com a mão ligeira do descuidista, marcas inusitadas." Observe: abre, é certo, mas agrega. Linguagem mais do que apenas indumentária. Marcas inusitadas. Compreende? Pois veja que não preciso nem mesmo lembrar do dictum de Eliot, de que bons poetas roubam; digo isso pois essa cleptomania estilística não é nem grosseira e nem se traduz em emulação simples, uma vez que a poesia de Ana C. rouba de muitas fontes distintas, indo de Katherine Mansfield a Emily Dickinson e Walt Whitman. E não só rouba: ela retrabalha, muitas vezes de forma acentuada, fazendo de sua cleptomania uma cleptomania inventiva. Por isso o cuidado quanto ao "estilística". A frase posterior é também esclarecedora: "E via corte, colagem e costura faz, com o ganho, uma produção imprevista que transcende, por isso mesmo, o mero registro dela e do campo de sua ocorrência." De novo eu destaco: imprevista, transcende, mero. Esses termos não são gratuitos...
A citação de Elio Gaspari dá a entender um certo mau-caratismo por parte de Ana C., o que o próprio artigo de Elio, aliás, tem o cuidado de abrandar, haja vista que estamos falando de um trabalho de mestrado não publicado em vida pela poeta. Logo no início, por exemplo, o autor caracteriza Ana C. como "uma jovem camaleônica, absorvida num projeto intelectual severo e erudito" (e não preciso nem dizer que um liame bem feito uniria esse "camaleônica" à cleptomania estilística). Noutra: "Pena, porque a autora morreu em 1983, aos 29 anos, e agora não se consegue justificar as colagens que assemelham esse trabalho a outro (...)". Um pouco mais à frente: "Viva, talvez não o publicasse em livro." E: "O mais interessante é que em alguns momentos a jovem estudante de 26 anos extremou, para melhor, algumas observações do original."
Não cito tais trechos com o intuito de abrandar a gravidade da situação. Mas é preciso ter em mente que Elio Gaspari se refere a um trabalho acadêmico, ao passo que Armando Freitas Filho se refere a um processo estilístico. O próprio Elio, aliás, em certa passagem de seu artigo nos lembra: não é cleptomania estilística, e sim de conteúdo. Há uma distinção poderosa em jogo, capaz de derrubar o liame interno estabelecido por Felipe Fortuna (que conecta a frase de Armando Freitas Filho, de forma direta e numa relação de consequência, ao artigo de Elio Gaspari) bem como o liame externo, ou seja, o liame do plágio universitário de Ana C. com a acusação de que sua poesia seria inautêntica.
Isto posto, a constelação de nomes citados, em sua maioria, cai por terra. (Digo "em sua maioria" pois o único a que não tive acesso foi Chacal ― embora eu note que estamos tratando de uma autobiografia, onde o poder de legitimação crítica é questionável.) Nenhum deles corrobora a tese de que mesmo os apreciadores da poesia de Ana C. julgam a poesia da autora como insuficiente (o título da tréplica, aliás, é: "Poesia de Ana C. é insuficiente até para quem a promove"). Logo, o que resta na bateia é um embate com o texto propriamente dito da poeta, coisa que, como citei antes, não é feita por um motivo obscuro e risível: o tal do "Bastaria". Existem outras passagens peculiares nos argumentos arrolados, por exemplo a citação de Adélia Prado, autora que realmente forneceria um bom paralelo com Ana C., ainda mais pelo simples motivo de que em seu clássico ensaio sobre poesia feminina, Ana C. aborda de maneira positiva a estreia poética de Adélia Prado. O mesmo quanto a Walt Whitman, autor importante na carreira de Ana C. pelo mais variados motivos, até mesmo tradutórios (por exemplo quando ela critica a tradução de Geir Campos para uma edição da Ediouro, onde, por motivos gráficos, os caudalosos versos de Whitman foram picados em versos menores).
(Um novo parêntesis, mais uma vez fazendo justiça: o argumento de Felipe Fortuna não é demolidor tout court e nem de forma inconsequente. Ele não está se remoendo igual um cão dos infernos porque Ana C. foi escolhida, mas também porque a abordagem de Ana C. na Flip tenderia ― ele escreveu o artigo antes da Flip acontecer ― a uma abordagem hagiográfica, tratando pouco da obra da autora propriamente falando e mais da vida e do ego dos debatedores. Por isso estas duas sugestões sobre Adélia Prado e Walt Whitman são dignas de nota pois servem de sugestões a debates mais produtivos, segundo Felipe Fortuna, do que os debates que provavelmente seriam estabelecidos durante a Flip.)
O que proporei neste breve ciclo, eu já o disse, será um estapear-me com os textos à maneira do que fiz com recuperação da adolescência. Não será nada muito organizado, se quer saber. Tenho uns poemas de minha preferência e uma algibeira cheia de citações que posso ou não fazer. Vai depender do feeling, sabe? Pois é. Pretendo fechar com um texto a respeito da influência de Ana C. na poesia contemporânea, influência, eu já adianto, ampla e fecunda (não só no sentido quantitativo ou qualitativo, mas também no sentido de poéticas abarcadas). Pretendo algo com cerca de 4, 5 dias de postagens, excetuando esta. Vamos ver no que vai dar. As madrugadas desta semana prometem muito, mas, de resto, estou certo de que Ana C. merece.