Brazil?
No monodrama chamado Vladimir Mayakovsky, o poeta (hã... Maiakóvski) em certa passagem põe na boca da personagem principal (adivinhem: também Maiakóvski ― as outras sendo projeções de seu ego) que, conforme ouviu dizer, nalgum lugar ― provavelmente no Brasil ― existe um homem feliz. No mínimo exótico, podemos imaginar, quem sabe associando o leito esplêndido a uma gigantesca mata fechada onde as pessoas em estado edênico andam nuas enquanto se acautelam a cada arbusto diante do perigo da onça pintada. Claro que isso foi no início do século passado ― hoje pode até ser possível que um ou outro gringo acredite nesse tipo de coisa (dependerá muito das fotos que resolverem colocar no pacote de turismo), mas, no fim das contas, essa imagem de um índio carregando um cesto cheio de frutas nas costas já convive com a de uma galinha correndo das balas de fuzil de um traficante morto de fome. Então sei lá.
Emily Dickinson, por exemplo, via nosso país como uma espécie de Éden. É o que se deixa transparecer no poema I asked no other thing. O clima de humildade e derrotismo evidente se confronta com a figura desse Mighty Merchant, que talvez seja Deus (e esta também me parece ser, por exemplo, a interpretação de José Lira, valendo-se de um "Lhe" em maiúscula). Pois o eu lírico não pedia por nada ― e, como não pedia por nada, nada lhe era negado. Humilde, portanto. O que ele tem, ele tem, e lhe basta. Do tipo de pessoa que é merecedora de ganhar uma coisa bem legal no fim da vida ― ou depois da vida ― ou pelo menos uma vez na vida. É o que ocorre aqui ― oferecer o Ser para um Mighty Merchant é uma situação, ao que tudo indica, de morte. E no entanto, a troca proposta não pode ser realizada ― Brazil? Não, isso não. Que tal uma outra coisa ― hoje? Porque o Brasil... O Brasil, no poema, parece possuir uma pitada edênica, como se fosse a promessa do após-a-vida, ou, no mínimo, algo que suprisse de delícias uma existência acostumada a rejeições. Não é uma interpretação absurda, essa de lermos na menção ao Brasil algo de paradisíaco, se tomarmos como base a visão gringa comum a respeito de nosso país (repleto de riquezas) e se tomarmos como base o que Dickinson, nos outros poemas em que menciona o Brasil, tem a dizer. Por exemplo o começo deste aqui:
Some such Butterfly be seen
On Brazilian Pampas ―
Just at noon ― no later ― Sweet―
Umas Borboletas são vistas
Nos Pampas Brasileiros ―
Ao meio-dia ― apenas ― Meigas ―
I asked no other thing, portanto, é meio depressivo, meio esperançoso e de uma ironia esmagadora. Já tentei traduzir Dickinson outras vezes ― e tinha até mesmo outras postagens aqui no bloguinho, devidamente deletadas, com traduções passadas ―, mas acho que nunca fui lá muito bem sucedido. O poema J 1127 / F 1146A, por exemplo, eu já tentei isso tudo aqui, ó:
Brando feito Sóis em massacre
Pela Ocaso brandindo um Sabre
Suave igual chacinar sóis
Com Cimitarras do Ocaso
Com as Alabardas da Tarde
Tenro igual matança de Sóis
Pelas Lanças do Ocaso
Tenro igual abate de sóis
Com Açoites da Noite
Brando,
similar às Tardes
Chacinando
co' Alabardas
os
sóis
Acho que o melhor que consegui foi:
Suave igual Sóis chacinados
Pelo Ocaso usando Machados
O original:
Soft as the massacre of Suns
By Evening's Sabres slain
Minha penúltima versão ― aquela toda espacializada ― é algo próxima de José Lira:
Doce como o massacre
de Sóis feridos de Morte
pelos Sabres
da Tarde
De onde vem tanta dificuldade? No caso do poeminha que acabei de citar, vem, claro, da rima (uma rima toda peculiar) e da considerável carga aliterativa. Mas nem sempre chega a tanto. Às vezes o que pega é justamente o trabalho de traduzir uma poesia excêntrica que, ainda assim, consegue ser simples, simplíssima. Esta tradução, que tinha na geladeira há uns meses, é o melhor que consegui, de verdade ― e veja que num poema que eu nem considero dos mais cascudos da autora, hein... Acho que a única coisa realmente apontável é que, no frigir dos ovos, me aproximei muito da versão de Braulio Tavares (e o motivo, aliás, de tê-la tirado da geladeira foi por ter lido a de Braulio Tavares ontem mesmo), e que optei por verter o ballad meter do original numa quadrinha em redondilhas maiores. Não tive, é claro, acesso a todas as traduções disponíveis do poema, mas, de todo modo, caso o leitor queira ter uma ideia, a compilação feita pelo Departamento de Letras Modernas da UNESP, aqui, continua sendo uma das coisas mais esplêndidas da face da terra. Nem tudo está compilado lá, bastando que se cite as versões de Fernanda Angelica Parreiras Mourão Silva em sua tese de doutorado (aqui) e as de Denise Bottman (aqui). Por fim, lembre-se também, é óbvio, de dar um pulinho no Emily Dickinson Archive, aqui, e conferir os manuscritos dos poemas.
§
Um pê ésse e um lamento: a versão de Décio Pignatari, publicada na década de 60, aparentemente no número 5 da revista Noigandres, aparece na edição da obra completa do poeta sem indicação de possível texto introdutório que apoiasse suas escolhas. Como Décio costumava muito trabalhar com projetos radicais que chegassem aos limites da tradução, seria no mínimo interessante tentar entender melhor o que Décio pretendia com os dois últimos versos da primeira estrofe, por exemplo
■
trad. Décio Pignatari.
em: Poesia, Pois É, Poesia, Ateliê, 2004, p. 90.
Pedi um artigo apenas,Só que ele estava em falta.
Propus pagá-lo em $er:
Sorryu-me o caixa alta.
Brasil? Botãotorcendo,
Cerrou, sem ver-me, o cenho:
― A minha cara senhora
Não quer mais nada, por ora?
§
trad. Aíla de Oliveira Gomes.
em: Uma centena de poemas, T.A.Queiroz/EdUSP, 1985, p. 90/91. Retirado daqui.
Foi só aquilo que pedi.E nada mais me era negado:
Ofereci o Ser por isto
O Mercador sorriu com enfado:
“Brazil?” Fez girar um botão
(Sem nem sequer me olhar!)
“Mas, Madame, nada mais, hoje,
Do que temos, vai-lhe agradar?”
§
trad. Ivo Bender.
em: Poemas de Emily Dickinson, Mercado Aberto. Retirado daqui.
Eu não pedi nada mais,Nada mais me foi negado;
Em troca, ofereci meu Ser ―
O Poderoso Mercador rosnou ―
“Brasil?” E rodou um botão,
Sem me olhar sequer ―
“Mas, Senhora, não há nada mais
Que hoje eu possa lhe oferecer?”
§
trad. José Lira.
em: Alguns poemas, Iluminuras, 2006, p. 86-87.
Não pedi outra coisa ―Nem outra ― me negou ―
Pus-Lhe aos pés Minha Vida ―
Sorriu o Mercador ―
Brasil? Fitou as Unhas ―
Nem um olhar me volveu ―
“Senhora ― não há mais nada
Para Hoje ― se ver?”
§
trad. Isis Alves e Rosaura Eichenberg.
em: Emily Dickinson, Íbis, 2012. Disponível aqui.
Nada pedi além disso,Nada mais me foi negado.
Ofereci o Ser em troca;
O poderoso mercador sorriu.
Brasil? Ele girou um botão,
Sem um olhar sequer pro meu lado;
“Mas, madame, não há mais nada
Que pudesse lhe mostrar hoje?”
§
trad. Adalberto Müller.
em: Imagem, Ritmo, Pensamento, Cult, 208, 2015. Disponível aqui.
Não pedi mais nada ―E nada mais ― me foi negado ―
Ofereci o Ser ― em troca ―
Ao Mercador ― o Abastado ―
Brasil? ― o dedo no Botão ―
Fingindo que não me via ―
“Madame ― leva outra coisa
Hoje ― este aqui ― seria?”
§
trad. Braulio Tavares.
em: facebook pessoal do tradutor, 31/07/16.
Eu nada mais pedi;ao Grande Mercador
meu Ser ofereci
em troca, e ele zombou.
"Brasil?" Girou o botão,
sem nem sequer me olhar.
"Senhora... Não há outra coisa
que eu possa lhe mostrar?"
§
trad. eu.
Nada mais ― me foi negado ―Pois que nada mais pedi ―
Ofereço o Ser ― por isto ―
O Grande Mercador ri ―
Brasil? Girando o Botão ―
E sem nem mesmo me olhar ―
“Mas ― Madame ― não há nada ―
Hoje ― que eu possa ofertar?”
■
I asked no other thing ―
No other ― was denied ―
I offered Being ― for it ―
The Mighty Merchant sneered ―
Brazil? He twirled a Button ―
Without a glance my way ―
“But ― Madam ― is there nothing else ―
That We can show ― Today?”
J 621 / F 687A