Um soneto de Bilac, aliás um dos meus preferidos.

Chama-se Maldição e foi escrito para Amélia de Oliveira, amada do poeta e irmã de Alberto de Oliveira. É uma história bonita. Um amor de décadas. Alguns dos mais belos poemas de amor de nossa língua, associados ao nome de Bilac, são também associáveis ao nome de Amélia. Os dois chegaram a se noivar sob auspícios do pai dela, mas logo que falecido este e logo que o irmão de Amélia, Juca, toma as rédeas da chácara familiar (chamada "Engenhoca"), a história de amor se esfacela. Ficaram por um triz do felizes para sempre. Você consegue ler mais sobre o episódio aqui neste simpático blog. Tá bem completinho, com uns poemas difíceis, difíceis de achar. (E vou bater a real: acho essas pétalas caindo um charme.)

Pois o fato, pra resumir essa postagem que serviria de dia dos namorados (mas que eu não coloco no dia mesmo dos namorados por motivos de não dou um foda-se pra data), é que Maldição consegue traduzir bem o que foi essa vida de miséria amorosa:

           Se por vinte anos, nesta furna escura,
           Deixei dormir a minha maldição,
           ― Hoje, velha e cansada da amargura,
           Minha alma se abrirá como um vulcão.

           E, em torrentes de cólera e loucura,
           Sobre a tua cabeça ferverão
           Vinte anos de silêncio e de tortura,
           Vinte anos de agonia e solidão...

           Maldita sejas pelo ideal perdido!
           Pelo mal que fizeste sem querer!
           Pelo amor que morreu sem ter nascido!

           Pelas horas vividas sem prazer!
           Pela tristeza do que eu tenho sido!
           Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...

Amélia também era poetisa, o que, diga-se de passagem, muito enciumava Bilac. Se ele tinha ciúmes até do chão em que ela pisava (palavra do poeta), ver o nome da amada discutido nos círculos artísticos era o fim da picada. Mas ela, eu dizia, que também era poetisa, respondeu:

           Não te peço a ventura desejada,
           Nem os sonhos que outrora tu me deste,
           Nem a santa alegria que puseste
           Nessa doce esperança já passada.

           O futuro de amor que prometeste
           Mão te peço! Minha alma angustiada
           Já não te pede, de impossível, nada,
           Já não te lembra aquilo que esqueceste!

           Nesta mágoa sorvida ocultamente,
           Nesta saudade atroz que me deixaste,
           Neste pranto que choro ainda por ti,

           Nada te peço! Nada! Tão somente
           Peço-te agora a paz que me roubaste,
           Peço-te agora a vida que perdi!

Gosto muitíssimo do soneto (do dele, não do dela). Vamos ver se consigo convencer alguém.




Soneto todos sabem o que é. Decassílabos. De um parnasiano. Até aqui nada de mais. Parnasianos gostam de sonetos. Formas. Perfeição. Lembra daquele poema do ourives? Pois é. Ele é o primeiro poema da primeira coletânea de versos de Bilac. É tido como um verdadeiro programa da poesia parnasiana, tanto aqui quanto na França, haja vista que o poema de Bilac é uma paráfrase de L'Art, de Theophile de Gautier. O problema é que muitos tomam o Profissão de fé como uma espécie de Arte Poética, como uma espécie de plano a ser seguido à risca. Foi? Foi. Mas cuidado. Lembre-se:

           Invejo o ourives quando escrevo:
                   Imito o amor
           Com que ele, em ouro, o alto relevo
                   Faz de uma flor.

Isso não quer dizer que o parnasiano é um artista frígido, aquele habitante da torre de marfim que, conforme o soneto de Drummond, faz da vida um suspiro sem paixão. O trabalho do parnasiano pode ser comparado com aquela cena de amor do filme, os amantes agarradinhos e modelando o barro. É um tanto quanto sensual o processo de modelar, de esculpir ou o próprio trabalho do ourives. A matéria bruta tem de chegar num estágio em que ela pode ser apalpada (ou algo próximo disso) para que adquira curvas. Não há propriamente que se falar em frieza. O parnasianismo foi, de fato, uma reação à sentimentalidade já totalmente enjoativa e em muitos sentidos intragável dos românticos menores. Eles de fato deram uma contida na coisa toda, mas é preciso ter cuidado antes de querer traduzir isso apenas na simplicidade dos exemplos escolhidos de modo mais ou menos capcioso: o vaso grego do outro, por exemplo, e o ourives do Bilac.

Comecemos do começo:

           Se por vinte anos, nesta furna escura,
           Deixei dormir a minha maldição,

Não dá pra dizer nada. Não fede nem cheira. A vírgula separa o primeiro verso exatamente na metade, o que é uma maneira até hábil por parte de Bilac de incutir a assonância em U de "furna escura" pois ele a aparta de qualquer fluxo que possa existir e ele ajuda a escurecer a expressão. Quer dizer: o U tônico de "escura", associado à própria ideia da escuridão, se faz antecipar de um U também forte de "furna", além do R auxiliar. A impressão que temos tem lá seu fundamento. Depois, no segundo verso, um caminhar de tênues aliterações em D e em M. É um começo, eu repito, que não fede nem cheira. O primeiro verso é um curto preâmbulo que começa o poema suspendendo sua teia semântica (Se eu fiz isso: no que esperamos que uma razão surgirá logo depois), mas um preâmbulo que, graças a seu andamento repartido ao meio, dá uma ideia de interioridade pequena, mas, creio, minimamente notável. Ainda mais se depois nós lemos:

           ― Hoje, velha e cansada da amargura,
           Minha alma se abrirá como um vulcão.

Existe uma assonância em A da segunda metade do terceiro verso à primeira metade do quarto que se contrapõe à impressão forte que "furna escura" causara na gente. Claro que não é nada muito forte pois tem a rima que faz aquele U zumbir de novo em nossos ouvidos, além, claro, da maneira anasalada com que a rima em "-ão" vai pontuando essas pronúncias meio cavernosas ao longo do texto. Mas aí está. Se antes o poeta deixou que sua maldição dormisse por vinte anos numa furna escura... Bem. Veja só: ele deixou dormir. Há um ato de omissão deliberado. Maldição. Furna escura. É tudo muito sombrio. Ou o poeta de algum modo se vê hostilizado naquele ambiente, ou então ele já está acostumado àquele ambiente. Nesta furna escura. Minha maldição. Estamos diante de pronomes que especificam coisas que causam um mistério. É diferente, no quarto verso, de "Minha alma". A alma só pode ser dele. E alma sabemos bem o que é. Mas minha maldição...? Mas ok. Isso foi antes. Se ele fez isso, agora... "velha e cansada da amargura". O fim da vida, ou o fim de uma vida, ou qualquer outra ideia de perecimento. Pois há um franco clima de decadência nesta primeira estrofe. Primeiro a ideia de, com base num ato de omissão, permitir-se que a maldição (extrato de sentido negativo) durma numa furna escura (idem), só que isso por vinte anos. Depois, a alma caracterizada como "velha e cansada da amargura" (idem). São versos depressivos. A questão é que a alma se abrirá como um vulcão. A palavra vulcão aproveita o U que havia despertado nosso interesse nos versos anteriores, mas também aproveita a rima anasalante e não só isso: ela surge depois de uma assonância em A e de um pequeno joguinho de aliterações (D e M no segundo verso). É como se houvesse um hiato entre a forte assonância de "furna escura" e o esplendor, a violência com que a alma se abre igual um vulcão. Um manejo sonoro. Um manejo poético.

           E, em torrentes de cólera e loucura,
           Sobre a tua cabeça ferverão

As rimas neste soneto são pobres, o que espanta se considerarmos que Bilac sempre foi muito afiado quando o assunto é rima. Das rimas em "-ão", por exemplo, e que, por si só, já são pobres (sei que Mário de Andrade tinha uma justíssima opinião contrária, mas abstraiamos), é só no sexto verso que o poeta sairá do esquema de rimar com substantivos! É quase inacreditável ler um negócio desses e, no fim da página, "Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac". O fato, todavia, é que aqui nós seguimos a sugestão do irrompimento: "torrentes de cólera e loucura". O fato de que a palavra "cólera" recaia na cesura do decassílabo heroico ajuda a realçar sua potência, ainda mais se você comparar com o fato de que em nenhum outro verso isto ocorre. Na verdade, a coisa vai além: "cólera" é a única palavra proparoxítona de todo o texto. E tamanha é a força que ela ganha, que seu L e seu R se refletem no L e no R de "loucura", criando um jogo fônico agradável, além, claro, da assonância em O do verso. Aqui os extratos de sentido são muito mais intensos. Não existe mais aquilo de deixar dormir. Não, não. O lance agora é que sobre a tua cabeça fervam. Mas fervam o quê? Oh, sim. É aqui que entra em cena a célebre anáfora bilaquiana:

           Vinte anos de silêncio e de tortura,
           Vinte anos de agonia e solidão...

Tudo vai se resolvendo. A ideia geográfica, por assim dizer, contida na furna escura se desenvolve no vulcão que entra em erupção. Oras: se foi lá que o poeta deixou que dormisse por vinte anos sua maldição, então, uma vez que a alma se abre como vulcão, vinte anos saem sopitando pra tudo quanto é de lado. E aqui estamos. Os dois versos acabam sendo basicamente a mesma coisa. Há uma falta do que dizer aguda. Silêncio e solidão redundam na mesmíssima ideia. Tortura e agonia idem. É um misto de ficar calado e de sentir dor. Sofrer quieto, vamos resumir. Só que disposto assim, de forma entrelaçada: aquietar ― sofrer ― sofrer ― aquietar. Pois o sofrimento nem sempre é calado. Ele pode incutir o grito. Eu começo quieto. Aí eu sofro. Sofro de novo. É plausível imaginarmos que o grito vem depois. Mas não: depois vem de novo o aquietar-se, o continuar sozinho. O poeta não dispôs de forma totalmente ruim a ideia. Dá pra notar também o fato de que, enquanto no sétimo verso é de silêncio e de tortura, no oitavo temos só de agonia e solidão. Sim, dá. Mas julgo que só por motivos métricos... Mesmo porque, de resto, até então o poema não apresentara este recurso anafórico. As ideias não foram paralelas. Tivéramos uma primeira estrofe muito negativa e metade da segunda muito intensa. A anáfora na segunda metade da segunda estrofe é uma maneira de pontuar essa mesma estrofe que se aproveita do fato de que o salto dos quartetos para os tercetos de um soneto precisa ser um salto ornamental. Bilac sabia muito bem disso, ah se sabia. Pois não só isso: estamos diante de dois versos que são, de modo geral, duplamente tristes, duplamente negativos, duplamente depressivos. Eles vêm um do lado do outro, formando um parzinho, e, dentro deles, como dito, temos células que se dão as mãos de maneira entrelaçada. Um pequenino amarramento no interior da coisa toda. Mas ainda assim estamos diante da erupção da alma do poeta. É uma chuva de negatividades que, graças à sua intensidade, vai mostrando como o movimento de enfim se abrir como um vulcão é um movimento intenso e libertador, ao mesmo tempo em que mostra como a condição passada era triste, era excruciante.

           Maldita sejas pelo ideal perdido!
           Pelo mal que fizeste sem querer!
           Pelo amor que morreu sem ter nascido!

Os quartetos se encerraram com reticências. Tem mais vindo por aí. Todos os versos pontuados com exclamações, e com a anáfora ligada no 220v. Aqui o poeta culpa a amada por sua maldição. No primeiro verso temos um extrato remetendo à perda. No segundo, a um mal que não é feito por dolo ― vamos usar um pouco do juridiquês: é feito com culpa. E no terceiro, um mal que se revela como uma espécie de feto. Enquanto no nono verso temos uma perda, o que implica dizer que algum dia esse ideal foi havido, no décimo temos algo presente mas que feito sem intenção (portanto, continuamos no presente e não mais num presente que se torna passado) e, no décimo primeiro, temos algo que sequer chegou a acontecer. Uma supressão de qualquer possibilidade de futuro e de realização, portanto. O que faz com que as situações sejam horríveis pela forma como, uma vez formulada, atacam a base de cada um dos substantivos: ter um ideal e vir a perdê-lo é muito pior do que jamais tê-lo tido; fazer um mal sem querer é pior pois nos deixa perplexos pela falta de razões, impossíveis de serem mensuradas (isto é, não há um ato consciente; há algo que nos escapuliu, por assim dizer); e, por fim, um amor que morreu sem nem mesmo ter nascido é um amor sem valia alguma, um amor destinado apenas a fazer com que soframos.

           Pelas horas vividas sem prazer!
           Pela tristeza do que eu tenho sido!
           Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...

A explosão segue e vai se tornando cada vez mais avassaladora. O ritmo se acelera. Quando nos colocamos diante de um verso que se rege pelo recurso anafórico, a gente tende a pular partes dele, a gente tende a ler com mais velocidade pois já sabemos parte do que o verso quer dizer. Nós atropelamos as coisas. E, como no caso destes versos finais dos tercetos de Bilac, temos extratos de sentido muito próximos, e os quais eu poderia resumir em situações que são uma verdadeira porcaria, uma droga do mais alto grau; então aí é que nós aceleramos mesmo, sem dó nem piedade. Pois se no terceto anterior tínhamos um jogo de situações que iam do passado ao presente e daí para o futuro, aqui nós temos um movimento que estabelece dois presentes e depois por, mais uma vez, uma supressão: o que eu deixei de ser: esplendor. É um final comovente. Se o poeta realmente sofreu tudo isso, então ele devia estar vivendo uma vida muito da desgraçada. Mas é importante voltarmos ao início: o poeta deixara dormir sua maldição naquela furna escura. Ele se confessa como inativo. É uma verdadeira sacanagem querer chamar sua amada de maldita por algo que, em última instância, ele também deu corda. Mas é também possível que ele a chame de maldita pelo simples motivo de que, afinal de contas, como sua alma se abre como um vulcão e esse vulcão despeja a maldição que ele, o eu lírico, deixara dormir, então, por conseguinte, quem recebe essa explosão ("Sobre a tua cabeça ferverão") se torna maldito. De todo modo, o fato é que o movimento do poema é o de imitar uma erupção vulcânica, e o recurso anafórico largamente usado (cobrindo mais da metade do poema: oito versos usam a anáfora, enquanto só seis não a usam, o que faz com que o mecanismo anafórico sirva pra inverter, estrutural e internamente, o soneto) combinado com outros detalhes quem sabe menores deixa a situação mais agressiva e deprimente.

Por exemplo o desfecho. O soneto todo é escrito em versos decassílabos heroicos, mas os dois últimos são uma exceção: decassílabos sáficos. O verso sáfico parece ter um andamento menos violento que a divisão do decassílabo heroico, que exige de nós, leitores, um único salto no meio do verso. Aqui nós temos dois: um na quarta e outro na oitava, dividindo o verso em três partes. O que isto significa? Difícil dizer. É uma espécie de arrefecimento. Querendo ou não a anáfora cansa. Ela parece não ter fim, e de um modo geral pode simplesmente não ter. Mas estamos diante de um soneto, e um soneto, como tudo, precisa acabar, mas acabar num ponto preciso e de modo que, pelo menos tradicionalmente, faça com que tudo deslize de modo suave para um enlace surpreendente. É bem possível que o leitor não perceba a mudança rítmica operada nestes dois últimos versos, a não ser, claro, que ele resolva escandir primeiro. A anáfora querendo ou não uniformiza o ritmo. Mas, de todo modo, a mola está aí. Olavo Bilac até que se deu bem.

E então, por fim, um ponto de exclamação. Reticências. A mescla entre as duas tendências do poema resumidas em simples sinais gráficos. O soneto retrata o descontrole, o irromper em prantos. É bom saber que ele consegue incutir estes mesmos sentimentos de forma admirável em nós. O soneto funciona. É um objeto estético refinado.





A surpresa que tive ao ouvir mestre Schnaiderman declamando o soneto não foi menor. Sorri, assim, de canto da boca, ouvindo ele dizer que Décio sempre gostou muito de Bilac. Para muitos isso não faz sentido algum, mas, acredite em mim, faz todo sentido. O vídeo advém de uma postagem do facebook de Gregorio Gananian. Sei que é um tanto quanto invasivo de minha parte tirar o vídeo de lá pra postá-lo cá, no meu bloguinho. Mas o tal do facebook é uma coisa frágil. Invadiram o facebook do criador da coisa, ora pois. Não podemos deixar que esse tipo de joia rara durma numa furna escura assim tão frágil...