O rei dos poemas de amor.



Ah, o amor... Das três da tarde às quatro e trinta, seus olhos saltam para cada uma das quinas das paredes, depois para os rodapés, carteiras azuis, as anotações sobre a mesa, a impostação da voz, a barra da saia listrada e, exatamente naquele ponto, recua pra janela e de lá pra paisagem, folha por folha, sem que chegue a lugar algum. É o amor. Você está palestrando e sua única preocupação é aborrecer o mínimo possível. Mas o amor guia nosso olhar, ele não nos deixa encarar quem nos despedaça e nos deixa miudinhos de paixão. Outro exemplo: às uma e dez. Calor, mormaço e uma oficina mecânica caseira. Ela veste uma blusa de frio de lã cinza e dedilha um violão como se estivesse subtraindo do tempo a sua capacidade de transcorrer. Você só a viu de relance, mas a regra do jogo é clara: amor. Saul Bellow disse: "Unexpected intrusions of beauty. This is what life is." Certíssimo. E quer saber mais? Não é fácil conviver com esse tipo de coisa. Não mesmo. Mas a partir do momento em que nós temos o privilégio de ler algo como:

            De tudo ao meu amor serei atento
            Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
            Que mesmo em face do maior encanto
            Dele se encante mais meu pensamento.

            Quero vivê-lo em cada vão momento
            E em seu louvor hei de espalhar meu canto
            E rir meu riso e derramar meu pranto
            Ao seu pesar ou seu contentamento

            E assim, quando mais tarde me procure
            Quem sabe a morte, angústia de quem vive
            Quem sabe a solidão, fim de quem ama

            Eu possa me dizer do amor (que tive):
            Que não seja imortal, posto que é chama
            Mas que seja infinito enquanto dure.

tudo entra nos eixos.





O rei. Não respondendo pela eternidade ― deixemos a eternidade para os leitores em estado gasoso ―, mas pelo que neste doze de junho eu vejo da janela. Pois se formos realmente olhar pra questão de forma detida, olhos nos olhos, nós vamos perceber que tem aquele do Camões, Amor é um blábláblá. Sim, esse é bom dos bons, famoso até dizer chega. Não ignoro, e acho, até, que se você optar por escolher qualquer um deles dois, tanto faz. Representam o ápice. Quando se está no topo da coisa toda, escolher entre um e outro é um tipo de escolha sempre arbitrária. Não existe poema de amor que consiga unir qualidade poética e fama em níveis tão exacerbados quanto esses dois ― e esse é o fato bruto. Existem aqueles menores, é claro, mas temos de ser francos que não adianta colocarmos um nome como o de Gonzaga em cima da mesa se hoje em dia um transeunte qualquer ignora quem se trata. O teste tem que visar esse leitor (que se brincar nunca teve saco de abrir um livro de poemas na vida) também. Exigência enorme, naturalmente, mas aí está. Poderia falar do de Camões, claro que poderia, mas deu na veneta falar desse daqui, e como um título de impacto se faz sempre necessário pra enganar uns trouxas de vez em quando...

Outubro de 1936. Publicado em 46: Poemas, sonetos e baladas. O Soneto de fidelidade é o primeiro poema da coletânea. Se você considerar que o livro fecha com o Soneto de separação e que, ali no meio, teremos o Soneto do maior amor ou o Soneto de véspera, então você há de convir que é um livro e tanto. Estamos no pórtico da chamada geração de 45, que, como qualquer vestibulando sabe, prezou muito pelas formas fixas. Sim, tudo certo. Uma reação ao que as vanguardas modernistas representaram? Em parte. Pois em parte pode ser entendido como uma maneira de se tentar recuperar uma civilização em colapso: a geração de 45 é uma geração impactada pelo signo de uma guerra em proporções ainda maiores que a anterior. Recuperar estes princípios basilares de composição artística demonstrou-se importante.

Mas não que Vinicius possua a gravidade dos outros poetas de sua época. Pelo menos não se considerarmos o que nomes como Jorge de Lima, Cecília Meireles ou Drummond faziam mais ou menos na mesma época. É uma gravidade menor que a da biografia épica ou dos cavalos da Inconfidência, mas ainda assim gravidade, em especial gravidade relacionada ao notório recorte clássico. Você lê algo como:

            E que só fica em paz se lhe resiste
            O amado coração

e sabe que o tom clássico não reside apenas no fato de que, uou, são sonetos. Sonetos já foram muito avacalhados. Estou falando do hipérbato, da forma como ele propicia a rima, da forma como ele esse "se lhe" ou da forma como ele cuidadosamente põe "O amado coração" no verso seguinte, criando, assim, um pequeno efeito de tensão poética: se lhe resiste o quê? Quer dizer: "se" é condicional, e "lhe" refere-se a algo que resiste a ele. O quê? O amado coração. O coração da outra pessoa. Posto no início do outro verso e fazendo com que o sentido do anterior dependa de seu surgimento, a expressão, mais do que se liga ao verso anterior, cria, de maneira literal, uma oposição.

Vamos investigar um pouco o soneto. Comentários de ordem contextual elucidam só até determinado ponto. Isso todos sabem. Nunca conheci ninguém que dissesse não apreciar o Soneto de fidelidade. Pode até ser que a pessoa tenha entrado naquele estágio de atrofiamento estético decorrente de uma exposição prolongada demais à poesia, quando nossa vista se turva e nós nos deixamos guiar mais por princípios de araque do que, propriamente, pelo tremor que os versos causam em nossas vértebras. Mas é bem provável que mesmo essa pessoa um dia tenha gostado. De onde vem tamanha força? Da perfeição com que o poeta apreendeu o sentimento amoroso? Mas que perfeição seria essa? Lembro de William Empson dizendo que toda beleza inexplicada o aborrecia. Pois é, pra mim também. Sei que é difícil dizer dos poemas que gostamos: alguns são absolutamente arredios, não suportam um comentário que seja. Mas o exercício é necessário, e a crítica sempre se vê diante de uma pergunta fundamental: se me perguntassem o que faz daquele poema um bom poema, como eu responderia a isso?

             De tudo ao meu amor serei atento

Sabe como é: ritmo iâmbico. Átona, tônica. Só que cinco vezes, no mesmo verso. Cria uma batida marcante. Você lê e fica com aquilo martelando na cabeça. É bom. Fisga o leitor. Ficamos meio sem entender o que esse "De tudo" faz no começo, mas é mais simples do que se imagina. O verso seguinte começa com "Antes", correto? Pois então. Estamos diante de um hipérbato, de uma inversão sintática, especificamente daquilo que se chama anástrofe. Nomes feios pra dizer que a ordem direta seria: "Antes de tudo serei atento ao meu amor". Bonita mensagem. Mostra dedicação e zelo. Mas preste muita atenção: "serei". Os tempos verbais dos poemas de amor costumam ser um verdadeiro pé no saco. As postagens que estão sendo feitas aos borbotões neste exato instante em qualquer rede social possuem um jeitão parecidíssimo: uma foto do casal, sempre de alguma lembrança boa (praia, um galão de sorvete, um parque de diversões, girafas), um texto sobre como os dois se dão bem no presente e juras de amor para o futuro. Muitas, muitas. Todas. "Eu poderia usar mil adjetivos pra dizer que te amo!!" Ah sim, claro que sim. Você não conseguiu usar direito nem os cinco que usou até agora e quer incomodar os outros mil. Mas enfim. O lance é esse: tempo futuro. É lá que as coisas realmente se tornam interessantes. Porque é lá que a porca torce o rabo. Queremos uma pessoa do nosso lado para que o conceito de fidelidade se aferre até o nível de perpetuar-se por toda uma vida em conjunto. Então é natural que o tempo futuro predomine. Se isso daqui que está acontecendo entre nós dois tiver que dar certo, nós vamos ver mesmo é no futuro.

            Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

O verso está dividido, do ponto de vista rítmico, em dois pedaços: o que corresponde da primeira à quinta sílaba e o que corresponde da sexta à décima sílaba. Esse primeiro pedaço começa com uma sílaba tônica, depois três átonas e outra tônica. Ou seja, ele é formado de um troqueu seguido de um iambo. Já a segunda metade é formada apenas de troqueus (no caso, teríamos de contar a sílaba posterior à última tônica para que o último troqueu se formasse). Isso é interessante. Pois estamos lidando com ritmos binários, até aqui. A diferença é que a primeira metade do verso funciona como uma espécie de clareira rítmica. Ele incute um espaço em branco que vai contra aquele ritmo alternado todo perfeitinho que víamos no primeiro verso: uma átona, uma tônica. Essas três sílabas átona seguidas criam um hiato. E isso é importante para que as três vírgulas dentro do verso, bem como as três conjunções "e", deem um ritmo implícito ao poema, desacelerando a maneira impetuosa com que ele começara e, ao mesmo tempo, criando uma outra cadência. Não basta simplesmente que o eu lírico seja atento à sua amada antes de tudo. Ele precisa de algo além. O hipérbato se justifica pois, assim, em um único verso, ele consegue colocar todas as normas programáticas, por assim dizer, da maneira com que será atento: antes de tudo, com um zelo muito grande, em todos os momentos e com grande intensidade. Esse hiato contido na primeira metade serve para que nós, leitores, criemos um espaço ainda maior nessa espécie de interlúdio, para que, assim, consigamos ter uma noção muito mais exata de como funciona esse tal desse amor aí.

            Que mesmo em face do maior encanto
            Dele se encante mais meu pensamento.

Mais uma vez temos um hipérbato, que, diga-se de passagem, já virou até questãozinha carrancuda de vestibular. A quem esse "Dele", no quarto verso, se refere? A "encanto"? Não, não, não, pequeno gafanhoto. Refere-se a "meu amor". Que mesmo em face do maior encanto, meu pensamento se encante mais do meu amor. É isso. Mas pra quê complicar? Bem. A ausência do sujeito-chave desses versos, por assim dizer, é uma ausência que faz com que a guinada operada nestes dois versos seja feita com mais efetividade. Mesmo que o eu lírico encontre a coisa que represente o maior encanto de todos, seu pensamento se encantará muito mais com o amor que ele sente. Já estamos diante daquelas normas programáticas dos dois primeiros versos em ação. A diferença é que como nós nos deparamos com esse, digamos, mistério sintático superficial do termo "Dele", então nós podemos observar de maneira mais nítida a forma como o encanto do amor, na mente do poeta, é mais importante que o encanto frente ao qual ele se vê. Afinal de contas, se uma coisa encanta, essa coisa tem que encantar a nós. O encanto se dá é na gente. Se algo encanta meu pensamento mais do que o maior encanto, essa coisa, logo, é um encanto, pra mim, muito maior. Não quer dizer que ela seja necessariamente um encanto maior, se considerarmos o que as outras pessoas considerariam um encanto. Não. Quer dizer, apenas, que pra mim é, porque eu me encanto com aquilo mais do que tudo. Mais, até, do que o encanto que vejo diante de mim e que, por conseguinte, supostamente está a meu alcance. É um jeito bem bonito e marcante de colocar a situação. É feito com elegância. Primeiro nós somos informados de que o amor é de um cuidado e de uma atenção total. Depois, temos uma prova cabal disso. Mas observe: no quarto verso temos um verbo no presente do subjuntivo: "se encante". É um tempo verbal que fala de coisas que podem ocorrer. O "serei" no primeiro verso criou uma suspensão que fará com que o soneto todo opere nesse sentido. É uma espécie de palavra de ordem que o eu lírico proclama a si mesmo. Eu farei isso e isso e isso para provar minha fidelidade máxima. Dada a veemência de seus exemplos, nós realmente supomos que é bem isso o que ele fará. Uma prova disso será pulando de estrofe:

            Quero vivê-lo em cada vão momento

Mudamos mais uma vez o tempo verbal. Presente do indicativo. O desejo é imediato. Mas aqui as expressões vão se encadeando. O poeta quer viver esse amor em cada vão momento. Se o momento é vão, ele é inútil e, provavelmente, não será lembrado. Mas a atenção é máxima, e se o poeta é capaz de se encantar daquele amor mesmo em face do maior encanto, é bem possível que mesmo nos momentos mais fúteis ele consiga guardar esse mesmo amor, mesmo porque ele estará vivendo esse amor e, como dito no segundo verso, ele viverá esse mesmo amor com zelo, e tanto (& blábláblá).

            E em seu louvor hei de espalhar meu canto
            E rir meu riso e derramar meu pranto
            Ao seu pesar ou seu contentamento

As rimas do poema apresentam um joguinho agradável: "-anto" e "-ento", como uma espécie de sino. Camões tem uns sonetos bem legais em que ele usa rimas com sonoridades parecidas. Cria um efeito de alternância bacanérrima, dá uma amarração mais firme ao texto, fazendo com que os efeitos sonoros se cruzem e a polifonia verbal seja mais destacada. Afinal de contas os versos possuem uma base sáfica, o que, tendo em vista que o verso sáfico divide o decassílabo em metades bem marcadas graças à cesura na quatro e na oito, contribui para a alternância contida. Claro que você olha pro verso oito e vê que na verdade ele é heroico, pois tem acento na seis e, embora tenha na quatro, não tem na oito. Sim, é verdade. Mas o fato de que os dois versos anteriores tenham sido sáficos, o sexto possuindo "louvor" e "espalhar" exatamente na posição das cesuras, o sétimo levando a cabo a ideia da alternância (e possuindo, ainda, dentro de si o "e"); isso faz com que o leitor se acostume a esse lá e cá, de modo que o uso de "pesar" acentuando a quarta sílaba do verso faz com que, pelo menos, uma lembrança de verso sáfico exista neste caso. Mas não observe só isso. Note também: os versos são consideravelmente simples. O sétimo, por exemplo, é altamente redundante. Rir o riso e derramar o pranto. É claro que nós rimos nosso riso. Tem algo de diferente em jogo? Ô se tem: a diferença de que esse riso que riríamos é o riso a pesar ou a contentamento do amor. Oras: se eu pego algo que evidentemente eu faço, se eu pego uma ação que está contida na outra (por exemplo rir o riso: eu preciso rir para que meu riso surja, afinal), e passo a dedicá-la a meu amor, então isso é um modo de dizer que em casa vão momento eu vou realmente viver esse amor. É muito mais do que a ideia de se espalhar o canto em louvor do amor. Isso é algo que, na prática, os poetas fazem. Namore um poeta e vire imortal, eles dizem (ou sofra as penúrias de ter um filho da puta escrevendo versos ruins a seu respeito). Se eu pego uma ação qualquer e como que a reduzo a seu próprio esqueleto, isto é, se eu pego o meu riso e o esmiúço até o instante em que eu chego à constatação fundamental de que preciso rir para que esse riso suja, e se eu pego esse esqueleto e dedico a meu amor, então eu estou me voltando de modo essencial e independente de qualquer instante que seja, a esse mesmo amor.

            E assim, quando mais tarde me procure

Há um excesso de conjunções "E" no poema. O poeta encadeia votos de louvor. Ele cria não um fluxo contínuo, mas uma série de momentos líricos que se encadeiam como uma única corrente. Isso deixa a coisa com um ritmo próprio, ao mesmo tempo em que nos dá a dimensão da variedade e mesmo da intensidade com que esse amor se estrutura. Afinal de contas, ele é todo amarrado no tempo futuro. Com essa ideia de variedade, o poeta demonstra que sua fidelidade existirá nos ambientes mais inóspitos: por exemplo ao se deparar com o maior encanto de todos.

            Quem sabe a morte, angústia de quem vive
            Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Definições universais. A morte é a angústia de quem vive. São vastas as áreas que o poeta passa a tratar. A diferença é de que, uma vez entrados neste primeiro terceto, estamos diante mais uma vez de um período capitaneado pelo presente do subjuntivo. Uma possibilidade. "Quem sabe", "quem sabe". Oras: mas a morte é realmente a angústia de quem vive. Como podemos incluí-la à luz de um "Quem sabe"? Será que esse amor se tornou tão imenso a ponto de desafiar a morte? É possível. Mas a interpretação mais segura é a mais simples: pode ser que o eu lírico morra antes de sua amada, ou que esse amor acabe antes, seja porque a amada morreu, seja porque o amor apenas terminou e cada um pro seu canto. A morte e a solidão são coisas terríveis, coisas que podem acontecer e arrepiar a espinha. Mas são coisas que existem dentro de uma arapuca sintática que as relega à condição de hipóteses. Elas perdem a sua força. É quando surge:

            Eu possa me dizer do amor (que tive):

Ainda no presente do subjuntivo ("Eu possa"), surge esse parêntesis que dá um sabor diferente a todo o andamento voltado para o futuro do poema. A exceção anterior houvera sido a do desejo do poeta de viver esse amor em cada vão momento, mas, logo depois, nós nos vimos diante de uma locução verbal no futuro ("hei de espalhar", "rir", "derramar") que dava uma espécie de anulada nessa estadia no presente que o poeta fizera de forma rápida. Mas a questão não é nem tanto essa. Fazer com que o presente comungue com o futuro é simples. O difícil é que o futuro comungue com o passado. Pois é o que acontece aqui. O poeta se projeta lá pra frente: o soneto todo é sobre isso, sobre o que eu pretendo fazer daqui em diante. Coisas como rir meu riso. Mas aí, se acaso me acontecer de, veja só que coisa chatíssima!, morrer... Entende? O soneto de Vinicius é extraordinário pelo fato de que ele opera uma mudança muito inteligente quando ele capta a mensagem da coisa toda: se eu me jogo lá no futuro, up to the stars, eu vou me ver diante do Fim mais cedo ou mais tarde. É preciso algo mais sólido do que as juras de amor. O que acontece no poema, portanto, é: se me acontece de morrer, paciência; pois será bem aí que eu vou poder dizer a mim mesmo que tive um amor que foi isso, isso e aquilo. Eu olho pra trás. O consolo aqui é fundamentalmente a respeito de si mesmo. A fidelidade é sempre voltada para outra pessoa, mas, nessa reta final, Vinicius demonstra que uma fidelidade para consigo mesmo também é importante. Poder dizer, no fim da estrada, que se teve um bom amor, isso também é uma coisa legal para si próprio. Afinal de contas, as hipóteses que o poeta elencou no primeiro terceto são hipóteses que incidem também sobre ele, na condição de ser vivo e de amante. Na verdade, sobre todo mundo, mas, uma vez que ele se encara diante disso, ele precisa de algo mais firme do que apenas a figura da outra pessoa. A fidelidade também precisa ser a um princípio maior.

            Que não seja imortal, posto que é chama
            Mas que seja infinito enquanto dure.

Ah, o gran finale. Há uma variedade de movimentos imagéticos ao longo do poema. Os dois primeiros versos apresentam uma ideia que vai se esmiuçando: "e com tal zelo, e sempre, e tanto". Os dois próximos um exemplo interessante, tendo em vista que ele opera uma espécie de inversão: mesmo que eu me encontre diante da coisa mais encantável do mundo, dele (e o leitor tem que pular lá pro primeiro verso pra entender) meu pensamento se encantará mais. É um movimento sintático bom, faz com que o leitor sinta o golpe de vista que o poeta quer incutir. Depois, na próxima estrofe, temos mais um processo de detalhamento, mas agora em louvor daquele amor ali que será vivido a cada vão momento. É um contra-ponto forte com o primeiro terceto, que apresenta assertivas de tom francamente universal. Mas aí chegamos ao segundo terceto, que, de certo modo, parece operar uma pequena súmula de todos os movimentos imagéticos das estrofes anteriores: ele também possui suas bases universalizantes, contidas em específico nos termos "infinito" e "imortal", mas também na definição "posto que é chama"; ele também opera uma espécie de inversão ou, no mínimo, um movimento engenhoso de perspectiva; e ele também esmiúça, ele também pega a medula da ideia e tira proveito daquilo: se antes ele disse que tanto o riso quanto o pranto que ele risse ou derramasse seria posto à disposição de seu amor, aqui ele pega o fato de que o amor só pode ser imortal porque é chama e põe a serviço de seu amor. E essa súmula de movimentos poéticos é algo que contribui, e muito, para que o segundo terceto consiga ser tão impactante. Ele cumpre com perfeição tudo o que entendemos por uma boa chave de ouro.

Além disso, a inclusão de um tempo verbal no passado é neutralizada pelo parêntesis. Ela não chega a afetar o tempo verbal deste finalzinho, pois, se o afetasse, então deveríamos ler: "Não foi imortal, posto que era chama". O que está pegando é: a ideia da imortalidade e da infinitude são banalíssimas quando o assunto é proclamar o amor. Os amantes adoram trocar palavras de amor melosas (num nível baixo, baixo de alfabetização) em que dizem que se amam ao infinito elevado ao quadrado (ou qualquer outro tipo de absurdidade). Vinicius dá ênfase a tais ideias: ele as coloca na posição de cesuras dos versos decassílabos. Só que ele vai até o âmago do que retrata. O amor não pode ser imortal pois é uma chama. Chamas queimam, fazem aquele estrago todo, mas elas uma hora acabam. Não podem ser eternas. Elas podem durar bastante se você tiver zelo, mas, mesmo que possua zelo, uma hora algo vai acontecer. A alternância das possibilidades no primeiro terceto, embora ordenhadas pelo tempo verbal e pelos "Quem sabe", é uma alternância de possibilidades em muitos sentidos inelutável, seja porque falamos de coisas como morte e solidão (uma hora na vida você vai se ver sozinho, pode acreditar), seja porque ele pode ser extensível a um rol muito maior; bem, essa alternância abala a solidez máxima do amor proclamado. O amor não pode ser eterno.

Mas a concepção de fidelidade já estava começando a mudar. Sim, ele não pode ser imortal, pois é chama. Todavia, é precisamente aí que vem a resposta memorável: "Mas que seja infinito enquanto dure." Estamos há quase oitenta anos de distância desse final esplêndido, e ainda hoje ele nos encanta como se nada tivesse mudado. Boa poesia costuma fazer isso. Se o amor quis ser vivido em cada vão momento, fazendo com que o riso que seja rido seja também dedicado ao contentamento do amor, então, ao que tudo indica, esse amor será infinito enquanto durar. Pois pode ser que acabe, é claro, mas a fidelidade a um amor que se pretendeu intenso, essa fidelidade não morre nunca. Fidelidade, do latim fidelitas, se liga à tal da fides, uma espécie de adesão a preceitos religiosos. Fidelitas, especificamente, é aquilo que possui fides. É mais do que se tratar o conceito ou do que fazer com que um amor se erija sobre tal sustentáculo. É buscar ter essa fidelidade. Porque fica essa lição: você pode contar com alguém do seu lado e resolver presentear essa pessoa com o Soneto de Fidelidade. Imagino que isso deva ser bem legal. Faça isso. Mas você pode também escrevê-lo na parede do quarto, ou levar esses versos para onde quer que esteja, por mais sozinho que esteja. Isso também enaltece.