O espaço de cinco anos na poesia de Nydia Bonetti.
(Brodowski, Portinari, 1942.)
Ela melhorou sensivelmente, ela parece que entrou nos trilhos, ela parece que nos acenou, em algum momento de sua trajetória, dizendo, de forma bem clara, que dá conta do recado, que sabe o caminho das pedras, que é capaz de escrever um bom poema e que seu nível médio de produção é um tantinho elevado. Porque mesmo sendo verdade que esse nível médio aqui e ali se perde diante da melhor safra dos haikaístas ou da poesia de uma Orides Fontela, isso não muda o fato de que ela é dona de alguns dos melhores haikais escritos entre nós ("evaporaram / as borboletas brancas — / desequilíbrio": note a sutileza e a importância, simultâneas, do verbo — ousado para um haikai, é certo —, da cor das borboletas, do kireji, das camadas de sentido formando uma dobradura), nem muda o fato de que sua poesia possui uma perícia visual, uma perícia imagética incrível, sem exclusão de qualquer outro recurso poético que venha de lambuja nessa coisa de escrever poesia de alto nível. É como quando lemos:
a solidão é fera já não domesticável
resta contê-la
eu, com meus versos
a cerco
ou
a solidão é fera
já não domesticável
resta contê-la
eu
com meus versos
a cerco
O que tá pegando aqui é um exercício de ênfase. Ou você aprende a ler direito um poema, respeitando e entendendo que quebra de verso é quebra de verso, ou fica aí com essa cara de bobo o resto da vida. Temos o que posso chamar de dois poemas separados por um "ou". A ideia do "ou" é uma ideia de alternância, onde você escolha o que melhor lhe aprouver. Só que isso não significa que, do ponto de vista do poema aí escrito, uma opção seja melhor do que a outra. Seriam duas opções equivalentes? São basicamente a mesma coisa, com exceção do fato de que a primeira versão possui 4 versos e a segunda possui 6, e o fato de que a primeira versão possui uma vírgula a mais: "eu, com". Na segunda versão, esta vírgula será substituída pela quebra de verso, o que, por si só, é uma pista meio óbvia mas de todo modo importante: a quebra de verso funciona como uma pausa e assim deve ser lida. E você já sabe disso graças ao Poema brasileiro de Ferreira Gullar.
A primeira estrofe da primeira versão traz uma frase que consegue se sustentar por conta própria seguida de uma outra que a complementa, mas que também se sustenta por conta própria. Primeiro nós caracterizamos a solidão e depois nós dizemos, iniciando com um verso e um sujeito oculto ("nós"), o que tem de ser feito com essa tal solidão. Depois, na segunda estrofe ainda da primeira versão, temos uma estrutura parecida, com a diferença de que aqui estamos diante de uma única frase: primeiro o sujeito e seu predicado, isto é, suas ferramentas ("com meus versos") e depois o que esse sujeito faz ("a cerco"). Sendo assim, a estrutura dessa primeira versão é paralelística por duas razões: primeiro apresenta substantivos e depois verbos; e também paralelística pois estamos falando de um verso maior seguido de um verso menor: enquanto o segundo verso é aproximadamente três vezes menor que o primeiro, contando-se as sílabas métricas, o quarto tem exatamente metade do tamanho do terceiro. Na primeira estrofe (e isso serve para ambas as versões) temos o encontro com a solidão e o que é preciso ser feito, ao passo que, na segunda estrofe, temos o eu lírico como que se avançando para a empreitada.
Na segunda versão existem algumas diferenças de ênfase. Aqui nós já temos terceiros. "a solidão é fera". Isso é uma ideia completa. Ela é uma fera, tudo certo. Mas, como sabemos sem nem precisar ler exatamente o poema, a segunda versão é uma reescrita da primeira, e, portanto, a ideia está incompleta. Portanto, embora saibamos que a ideia de que a solidão é fera está completa, ainda falta o complemento: "já não domesticável". Isso cria uma ruptura entre o sujeito e seu predicado. Há uma distância. A mesma que será operada na segunda estrofe: "eu / com meus versos". Pois observe que esse rompimento se dá no plano dos substantivos; o plano das ações propriamente ditas segue inalterado. O que isso quer dizer? Bem: é como se o sujeito se isolasse do predicado. Se coloco: "eu, com meus versos", isso tudo está no espaço confortável de uma única frase. É uma espécie de preparação para a briga com com a solidão, pois, de resto, é preciso lembrar que na primeira estrofe de cada uma das versões nós temos uma estrutura tripla: primeiro a solidão surge, depois a solidão é comparada a uma fera e, por fim, essa fera é caracterizada como já não domesticável. São três pulinhos. É diferente da ideia de "eu, com meus versos", que, basicamente, traz uma ideia de contiguidade: eu uso meus versos, que são, de certo modo, uma extensão de mim, são ferramentas a meu alcance. É diferente da ideia da solidão, que faz um salto mortal rumo à metáfora. Assim sendo, a distância entre a predicação da solidão e do eu não é a mesma coisa; a solidão ainda assim fez um salto rumo à metáfora, embora não saibamos com que tipo de fera estamos lidando (embora a simples ideia de fera já pressuponha uma não domesticável); já o eu não conta com isso, com esse salto de metamorfose, embora, de todo modo, a simples vinda do "eu" num poema já pressupõe que esse "eu" estará junto de seus versos, embora, de todo modo, ele possa usar qualquer outra arma que não exatamente sua poesia para tentar cercar a fera. Enquanto no caso da solidão como fera nós temos um complemento que é uma forma de desdobrar a ideia de maneira sutil e orgânica, no caso do "eu" e de seus versos isso não se configura com a mesma facilidade.
Mas aqui, claro, é preciso um pouco mais de atenção. A solidão é fera já não domesticável. Isso pressupõe que algum dia ela já foi uma fera domesticável. Para quem? Para os outros? Para o eu? Não vamos conseguir chegar a uma resposta quanto a isso, mas, de todo modo, a fera é uma fera que um dia foi domesticável e hoje já não é mais. Como isso funciona? Bem. É como se estivéssemos diante de uma alegoria do fazer poético. E essa é a leitura que faço do poema, aliás. Pois sabemos que o poeta, pelo menos segundo o senso comum, se isola para escrever seus poemas. Poesia, emoção recolhida em tranquilidade, já dizia Wordsworth. Ele, portanto, imerge dentro de si e foge da sociedade para que consiga escrever. A torre de marfim, a mansarda, a rebeldia, a iconoclastia, o silêncio místico, sei lá que diabos você vai querer usar pra que consiga confirmar essa ideia. Mas o poeta ele se isola, e acho que podemos tomar isso como um fato. Ok. Se ele se isola, ele brinca com a solidão, mas de tal modo que, se antes ele conseguia domesticar a solidão (de forma traumática ou não, não importa: ele conseguia), agora, que se vê diante dessa fera, mas uma fera que é necessária para a composição poética, ele se vê diante da necessidade de contê-la. Não se trata de domesticá-la. A solidão poética implica consigo uma espécie de concentração para que a inspiração venha ou para que, no mínimo, a qualidade do trabalho poético se maximize. Logo, não é uma questão de colocá-la numa jaula ou numa gaiola. Ela precisa ser contida mas não pode perder sua essência animalesca de jacto, de irrompimento. Pois como nós iremos contê-la? Com nossos versos. Com nossa arte. Só assim nós iremos cercá-la no espaço de um poema. Afinal de contas, a ideia de cercá-la traz consigo uma sugestão espacial, e, no fim das contas, o poema de Nydia Bonetti é justamente a respeito dessa coisa espacial: é a respeito da diferença profunda que existe entre você grafar "eu, com meus versos" e "eu / com meus versos". A distinção de ênfase, de sonoridade, de ritmo, de construção de imagem, tudo isso entra em cena, tudo isso é um modo distinto de correlacionar a ideia do fazer poético, que, aqui, está exposto de forma nua e crua. O que é importante, pois, unindo a tênue sugestão dada pelo conteúdo do poema (uma fera já não domesticável e alguém com seus versos) e unindo a tênue sugestão formal (o recorte dos versos puro e simples), nós temos uma alegoria do fazer poético, que ganha comovência graças à inteligência com que é feita e graças à maneira com que nos convida a redescobrir, a manejar, a brincar com os instrumentos mais básicos da poesia, sem que perca seu encanto.
Sendo assim, meu veredicto é: trata-se de um excelente poema. Mas será que sempre foi assim? Comecei dizendo que ela deu mostras de que sabe o caminho das pedras. Isso não quer dizer que ela será capaz de chegar lá, na Terra Prometida, sempre que queira. É mais uma correlação feita entre momentos bons e um nível médio da produção: ainda que a poetisa caia e muito em qualidade, ela ainda assim esboça um gesto, ela mostra uma reação. Porque sabe qual é o problema? O problema é: isso é hoje. A pergunta subsiste: sempre foi assim? Tracemos uma distância de cinco anos, e lancemos mão disso e disso. Enquanto na primeira nós nos deparamos com coisas patéticas como:
patético (humano)
tenho pena do goleiro
patética figura (tão humana)
sempre à espera
do que não pode ser
eternamente
contido
(E falo patético não porque, oh sim, muito engraçado, o título fala exatamente isso; digo patético porque é sem graça, idiota, uma metáfora qualquer trabalhada sem qualquer garbo: afinal de contas, que diabos é isso do goleiro ser uma figura patética porque não pode conter eternamente... a bola?); enquanto encontramos isso na primeira seleção, na segunda nós encontramos isso:
Ambidestros tigres
circunscrevem na selva ilícita
seus territórios.
Sitiados bichos procuram
_linha de fuga
utópica
antes que o fogo adentre
e o círculo se expanda
e o não
lugar para onde se ir
se instale no olhos e paralise.
Fico muito feliz com o fato dos tigres serem "Ambidestros" e pelo fato deles "circunscreverem" e pelo fato da selva ser "ilícita". Isso contribui que é uma maravilha para a sonoridade e para o mistério do poema. Pois você lê e sente alguma coisa (não sei que coisa!: alguma coisa). Estamos diante de algo que nos encurrala: tigres que circunscrevem seus territórios numa selva ilícita. O simples fato de serem tigres já amedronta; o fato de ser uma selva ilícita também ajuda muito. Mas então: "Sitiados bichos". Que bichos são esses? Aqueles, assolados pelos tigres? É, é possível. Mas entenda: "Ambidestros". Que escrevem com as duas mãos. Que possuem perícia em ambos os lados. Esquerda e Direita. Vou repetir: Esquerda e Direita. Pois é. Agora é só você pegar todo seu conhecimento político patético e brincar até se estafar.
Pois vou ser sincero. Embora existam poemas francamente ruins também na segunda seleção, na maior parte dos poemas ali eu vou encontrar pelo menos um verso, uma expressão ou algum meneio que seja no sentido de fazer o poema melhor do que ele é. Um exemplo:
O dia escorrega das mãos feito um peixe
que mergulha na terra trincada
sem se saber
sobrevivente único
desse rio temporário
que acabou de secar.
Que todo dia seca sob o sol do tempo.
Que a vida é
esse deserto em expansão.
Que a noite se aproxima e é fria.
E com que olhos nos espreitam os chacais.
Nenhuma das metáforas chegou exatamente a me fisgar. Isso do dia escorregar das mãos feito um peixe não deixa de ser curioso, e pelo menos Nydia Bonetti consegue manter nosso interesse com a imagem da terra trincada e do "rio temporário / que acabou de secar" (ou seja: é importantíssimo que o rio seja temporário e não que ele seja apenas árido, como qualquer outro poeta colocaria). Mas aí vêm esses versos seguintes que expandem a ideia de maneira um tanto quanto óbvia, sem adicionar nada, servindo apenas de enxerto (um pouco de contradição também, se tomarmos como base que o deserto se expande: o rio não era temporário, ora essa?). Só que: "E com que olhos nos espreitam os chacais." Eu não vou nem tentar te convencer pois sei que não vou conseguir (não tenho argumentos pra formular), mas existe um quê (só Deus sabe o quanto odeio usar essa expressão) de terrível na forma como a frase foi formulada e na forma como ela surge. Um ambiente deserto, é claro, mas um deserto que anoitece e vai ficando frio. Que olhos são esses? Olhos de cobiça? Olhos de predador? É o mais óbvio. Será que existem outros? A aparição dos chacais é uma pitada de horror a mais na cena: o dia escorrega das mãos feito um peixe que cairá num ambiente árido e morrerá. O deserto está em expansão. A noite é fria. E ainda por cima os chacais nos espreitam. Só esperam nossa morte, ou, quem sabe, até nos ataquem quando estivermos definhando...
Mas nem tudo na primeira seleção chega a ser ruim. O ritmo cantante e bobinho desse daqui me encanta bastante:
colagens
colibris camuflagens rubis
palavras em ens
palavras em is
paisagens aragens anis
colagens que fiz
tentando fazer
um poema
feliz
É bom porque a autora brinca com a forma com que o poema se monta, em especial no segundo e terceiro verso. Pois, de fato, os versos 1 e 4 trazem uma imagem feliz, quem sabe com exceção de "camuflagens", que pode, quem sabe, possuir um tom dúbio. Mas tudo de maneira muito orgânica, num ritmo todo todo pulinhos que no fim das contas nos embala. Não existe explicação necessariamente lógica para a razão de ler esse poema e ele de algum modo me deixar feliz. Quem sabe pelo fato de que a palavra "feliz" está no fim do texto; quem sabe, o que eu reputo como um argumento forte, a questão das rimas combinada com a opulência das imagens (colibris, aragens, anis); ou, então, a maneira como a autora brinca: como dito, só olhar pros versos 2 e 3. Mas ele me alegra, e em dias tristes será bom saber que esse poema existe.
Este, por sua vez, parece uma espécie de paráfrase drummondiana, que, apesar de apresentar momentos ruins (por exemplo o parêntesis "(bruta)"), pelo menos possui uma delicadeza na roda d'água que serra (o detalhe do verbo a meu ver é o que realmente interessa) a pedra e faz brotar a flor (uma ideia que, concordo, não é das mais originais: a flor nascer das pedras, e isso de algum modo se associar à poesia, mas enfim; aonde quero chegar é: o poema é mediano pra baixo, mas sem chegar tão lá embaixo):
roda d'água
dentro de mim
concomitantemente nasce um poema
enquanto um outro morre
moto perpétuo
roda d'água que move a lâmina
que faz serrar a pedra (bruta)
e faz brotar a flor
É, pelo menos, melhor do que esse desfile insosso desse daqui, já da segunda coletânea:
Três mulheres que passam
com olhos de noite.
Duas são sombras
do que um dia puderam ser.
A outra é sol do que não foi.
Há o mistério das mulheres serem três, há o mistério disso do poder ser, do não ter sido. Mas um mistério que depende tão só das ideias evocadas, de matizes abstratos: o problema é que tão logo a ela nos aclimatamos, no plano poético elas esmorecem e, ao invés de trazerem consigo um plano de sentido mais profundo, boiam como se fossem camadas superficiais que apenas por um relance e por um desacerto óptico por um instante pareceram profundas.
Lemos e, tendo em vista o que ocorre nos poemas da segunda coletânea, ficamos com a sensação de que aquela surpresa final está ausente. Falo de coisas como:
Agora sabe que aquele que ama e busca
habita seu corpo.
Por isso
mergulha
fundo
dentro
de si.
Fora é tão longe
_vertiginosamente se afasta.
[E a casa envelhece iluminada]
O formato do poema e a ideia de se afunilar pra incutir a ideia do mergulho dentro de si é banal. Qualquer poeta chegaria a esse tipo de coisa. Mas o colchetes é sensacional. Mergulhar fundo dentro de si buscando "aquele que ama e busca" é uma maneira de deixar o exterior, a fachada da própria casa um tanto quanto envelhecida. Sim, é certo, mas ela "envelhece iluminada". Só imaginar a cena, ainda que da maneira mais clichê possível: uma casa de tábuas gastas, prontinha pra receber fantasmas, mas toda toda iluminada. Parece existir uma melancolia, mas, ao mesmo tempo, uma alegria secreta na forma como a imagem surge, após tudo o que o poema nos contou, e com a imagem que ela se utiliza. É um tipo de surpresa parecido com:
Então uma palavra engolirá outra
palavra
que engolirá outra
palavra
até que reste apenas
uma
palavra
que será devorada
pelo silêncio
[metálico fio de costurar bocas]
Para que os olhos cantem.
O jogo de alternâncias mais uma vez revela uma poetisa com ouvido apurado. Começamos um poema todo envolvendo nosso sistema digestivo, a ideia de deglutir palavras, aquilo que vai ocorrendo de forma voraz à maneira do quadro de Goya retratando Cronos deglutindo Zeus. Então o silêncio que irá devorar tudo: "[metálico fio de costurar bocas]". O fio ser metálico, capaz, portanto, de trazer consigo todo um frio; bem, o frio ser metálico ajuda na imagem retratada. Sentimos a ideia do silêncio com mais concreção nem tanto em decorrência das bocas costuradas, mas também pela crueza, pela violência do fio metálico (ou, antes, "metálico fio", o que realça a sonoridade aguda). Mas então: "Para que os olhos cantem." Pois é. Que saída, não é mesmo? Pensamos que a vinda do silêncio poria um fim ao poema. Mas a poetisa consegue demonstrar um caminho de esperança de maneira eu julgo bastante hábil.
Então o argumento que desenvolvi naquele parágrafo inicial, mal feito, aí está: Nydia Bonetti melhorou nesse espaço de cinco anos. Sua poesia se aproxima de um instrumental metafórico mais refinado, deixa de ser um tipo de poesia boba que envolve metáforas absurdas com goleiros ou casas cheias de felinos. O tema metapoético continua sendo uma preferência da autora, e a maneira com que ela recorta seus versos, de maneira sóbria, bem como a maneira com que incute o inusitado sem que esse inusitado surja de forma abrupta (o silêncio como "metálico fio de costurar bocas" surge só depois do poema preparar terreno para sua aparição; ou, no caso de poemas em que esse tipo de metáfora já surja no início, trata-se de um tipo de metáfora que não entrará em choque com violência com as outras metáforas ao longo do texto); tudo isso mostra uma evolução e uma sobriedade por parte da autora. É bom que assim seja. Faz de Nydia Bonetti uma poetisa dona de um trabalho no mínimo respeitável, plenamente capaz de dar o pulo da onça. Porque se ela vai dar ou não, aí já é com ela. Mas ela já deu mostras de que sabe fazer um bom poema. Creio que o que lhe falta é uma tesoura mais afiada no sentido de podar os poemas ruins e se preocupar com as minúcias dos poemas realmente bons.