No que consistiria a pertinência do teste de Bechdel.
Quanta literatura ruim passa pelo teste de Bechdel. Quanta literatura que não hesitaríamos chamar de machista, se brincar. Quanta literatura boa não passa pelo teste de Bechdel. Quanta literatura feminista, se brincar. Os exemplos não cessam. O teste de Bechdel parece ser minado a cada instante. E no entanto, ao que tudo indica o teste continua incisivo. Não possuímos números que indiquem algo a respeito do assunto; o mais perto que temos são os estudos capitaneados por Regina Dalcastagnè (aqui) que apontam, por exemplo, uma média de 37,8% de mulheres nos romances contemporâneos brasileiros. Isso não chega, claro, a ser uma garantia de que o número de romances que passariam no teste de Bechdel seria esse; posso ter um romance com protagonistas homens que ainda assim passe, do mesmo modo que posso ter um com uma protagonista mulher sem que as outras personagens coadjuvantes consigam passar no teste. Naturalmente que, a esse respeito, é bom notar que, conforme o gráfico disposto na tabela 8, a maior parte das personagens femininas que surgem nos romances contemporâneos se envolve em relações amorosas e familiares numa proporção consideravelmente maior que os casos masculinos, o que parece indicar que o terceiro critério do teste de Bechdel possui uma predisposição maior a não ser superado. É o mesmo se considerarmos a tabela 10, a respeito das principais ocupações das personagens femininas, indicando um perfil geral de donas de casa.
A questão não é nem tanto essa. Ainda que estivéssemos numa situação um pouquinho mais reconfortante, com dados menos discrepantes, no mínimo, o teste de Bechdel continua duro, embora se calque numa simplicidade assustadora. É dizer: no mundo, ainda que no mundo ficcional, é comum que pelo menos duas mulheres existam ali no meio, e, bem, como elas existem, é comum que essas mulheres conversem entre si e que essa conversa não gire só a respeito dos homens. Não é nenhuma exigência absurda. O que se está exigindo, na prática, é que o romancista simplesmente abra os olhos e veja como as coisas acontecem lá fora. Porque se é assim, se a contra-partida é tão simples, então por que motivo tantas reprovações? Seria o caso de dizermos que a literatura possui uma espécie de parasita machista ali no meio de sua alvenaria estrutural? Ou que essa própria estrutura literária é ela mesma machista?
A ideia de um machismo estrutural se tornou num bordão mais ou menos parecido com aqueles dos antigos personagens do Zorra Total. As pessoas não parecem ter muita ideia do que se trata. É uma ideia útil, naturalmente, embora ela possa ceder lugar a uma espécie de vertigem estruturalista com muita facilidade: você parte do princípio de que uma estrutura subjaz a muitas coisas e passa, por conseguinte, a acusar outras tantas coisas advindas da sua realidade imediata (histórias que ouviu falar, notícias, causos, relatos etc etc) como padecidas de um machismo estrutural. É preciso cuidado. A ideia de um machismo estrutural é a ideia de um machismo que se reproduz. Quando falamos num machismo estrutural nós falamos é disso. Claro que costumamos falar também de um machismo que está tão arraigado que muitas vezes as pessoas acabam cometendo sem nem saber direito que estão. Se aquilo ali é estrutural, aquilo ali está na zona das tripas, na zona do esqueleto; ninguém exatamente vê ou se apercebe. É normal pras pessoas reproduzirem aquilo, bastando que liguem o piloto automático.
Como se pode ver, uma ideia que com muita facilidade recai em explicações absurdas. Se é algo que consegue se reproduzir sem anuência da pessoa que o manifesta, posto que escondido, que estrutural, que arraigado, então é mais do que comum que se acuse alguém ou algo de um machismo estrutural, só que de tal modo que mesmo diante de uma negativa por parte da pessoa, ou mesmo diante de fatos que comprovem que existe uma gama de fatores que escapa da algibeira do machismo, ou mesmo diante de fatos que anulem a hipótese do machismo; diante de qualquer uma dessas negativas, a pessoa ainda assim insiste no argumento inicial, visto que, na prática, tudo o que ele precisaria de início seria de uma mente esclarecida o suficiente para abrir o capô da coisa toda e enxergar, bem ali, pertinho do carburador, o tal do machismo todo escondidinho fazendo suas traquinagens. Cuidado, cuidado, cuidado.
Mas e aqui, nisso do teste de Bechdel? Levantei a hipótese: machismo estrutural ou não?
Não necessariamente. Julgo muito improvável chegarmos a uma resposta única para as constatações que o teste de Bechdel é capaz de nos dar. A criação artística envolve uma liberdade a princípio ilimitada, mas nós sabemos que não é bem por aí pois existem constrições literárias de todas as espécies, desde constrições de um âmbito por exemplo editorial até mesmo constrições advindas de afinidades de escrita e influências literárias. Quer dizer: se sou influenciado por tais e tais autores, se pareço possuir uma afinidade, uma facilidade, se sinto que dou o meu melhor com um jeito de escrita, com um tipo de narrativa (o termo "narrativa" aqui entendido num sentido mais amplo, capaz de englobar até mesmo uma maneira própria de ver o mundo), e se, na prática, a maior parte dos autores que leio acaba apresentando uma visão certo modo análoga do mundo; bem, unindo todos esses pauzinhos não é nem um pouco implausível que eu reproduza o teste de Bechdel porque, de modo geral, o enternecedor bosque literário que todos os dias percorro me dá de comer são frutos justamente assim.
É uma opção. O que não quer dizer que eu seja exatamente um machista. Se você fizer o teste comigo e me perguntar o que é esse zero aqui, mocinho, pode ser que eu responda dizendo que não faço a mínima ideia do que se trata, e que estou, francamente, tão surpreso quanto você. Ou seja: o famoso não percebi. É a deixa ideal e clássica para a retórica do machismo estrutural. Tendo em vista o panorama que temos diante de nós, não creio que o surgimento de uma tréplica dessas seria algo ruim ou que careceria de fundamentos. A questão com o teste de Bechdel, a sua pertinência reside no fato de que ele funciona quando aborda o fenômeno literário de mão cheia, isto é, se ele pega um monte de escritores com as mãos e lida com aquele montão ali. Ele, a bem da verdade, possui pouca importância quando pincelamos autor por autor, isto é, quando trata individualmente, do mesmo modo que ele não possui aplicação nenhuma quando o assunto é mensurar a qualidade de uma obra. Afinal de contas, passar ou não no teste de Bechdel não é indicativo de que estamos diante de uma obra boa ou má.
Pode parecer razoável imaginarmos que se uma obra passa no teste de Bechdel, essa obra apresenta uma visão mais realista do aspecto feminino na vida real. Mas se eu tenho um romance em que duas mulheres se encontram e falam não de homens, mas de como tirar mancha de vestido quando o alvejante acaba... bem, isso não parece um bom indicativo de que o autor olhou para o lado feminino com profundidade e realidade. Ou então: as duas mulheres podem se encontrar e falar de masturbação, mas a opinião trocada entre elas é tão absurda, é tão fora da realidade do que é a masturbação feminina, que no fim das contas o livro passa mas não passa. Pois, para todos os efeitos, duas mulheres podem se encontrar para falar de um homem mas falar de maneira convincente, verossímil, ou até, se quiser desenvolver o exemplo pra que ele dê cabo no assunto, que falem desse homem com uma lascívia muito longe de um padrão belo, recatado e do lar (e se quiser, também, deixar o exemplo ainda mais interessante, imagine que essas duas mulheres são justamente baluartes dos bons costumes, mas que, na ausência dos maridões, resolvem falar deles mesmos, mas só que ao invés de um diálogo todo cheio de interjeições, um diálogo trocando centímetros penianos).
A imaginação pode ser fértil o quanto for. Não é nada difícil encontrar casos que derrubem o teste de Bechdel. Pois seu funcionamento não é nas raias dos pormenores ou nas raias qualitativas. Ele, grosso modo, e que fique bem claro que meu argumento central aqui é que o teste de Bechdel só funciona grosso modo, aponta para uma obtusidade da literatura: nós aparentemente não representamos o universo feminino de forma satisfatória. Coisas corriqueiras como mulheres se encontrando pra falar de qualquer coisa que não sejam homens não são retratadas de forma também corriqueira na literatura.
Quer dizer que devemos estabelecer uma tabela do que seria aceitável do ponto de vista representativo? Uma espécie de meta anti-Bechdel a ser alcançada por todos os romancistas do mundo, de modo que assim que chegássemos aos, sei lá, cinquenta porcento de romances aprovados nós faríamos uma festança com direito a queijo provolone e churros. Não, óbvio que não. O teste de Bechdel é uma pedra no sapato para o escritor e uma clareira para o leitor pois indica que maneiras enviesadas e automatizadas de se enxergar a realidade acabam tomando o lugar de um olhar realmente criativo e interessado para com essa mesma realidade. Indica uma espécie de doença crônica que ataca um dos órgãos mais importantes da criação literária: a percepção da realidade e sua posterior conversão num discurso mimético.
Julgamos normal os pontos cegos da representação da realidade na literatura não necessariamente porque padecemos, tão somente, de um machismo estrutural, mas também porque quando falamos de literatura não estamos preocupados apenas em ficar aplicando testes como o de Bechdel (pois na verdade existem muitos outros: por exemplo testes envolvendo personagens negros e gays). Queremos nos divertir, sentir prazer, sentir a inteligência, a criatividade, a engenhosidade daquele livro ali palpitando bem na nossa frente. É um tipo de preocupação que nos escapa. A literatura pode passar o resto do tempo que nos falta até que o Sol degluta a terra e arrote uma super nova sem que mude seus parâmetros educacionais, por assim dizer, em relação aos casos de reprovados pelo teste de Bechdel. Isso não implicará uma literatura ruim nem, necessariamente, uma sociedade mais machista. Claro que não deixará de ser razoável supormos o contrário, posto que, embora, ao que eu saiba, não contemos com dados assim, creio ser possível dizermos que uma mulher, uma escritora dificilmente escreverá um livro que seja reprovado pelo teste de Bechdel. Pode ser que ela escreva, seja porque adotou uma espécie de ponto de vista masculino advindo do machismo estrutural de nossa sociedade, seja simplesmente porque deu na telha que o fizesse, seja porque não tinha outra opção diante do tipo de livro que escrevia (uma narrativa sobre um destacamento de soldados presos numa missão no meio do deserto).
Onde quero chegar é: se o número de mulheres escrevendo for maior, então a tendência parece ser a de que o número de obras reprovadas pelo teste de Bechdel seja menor. Pois não podemos partir do princípio que a literatura se veicula no éter. Ela é veiculada por pessoas de carne e osso que possuem lá suas vivências, tocam suas vidas, enxergam o mundo de tais e tais modos. Tudo, claro, sempre muito particular, mas, em linhas gerais, para uma mulher é muito mais inconcebível retratar a realidade sem que duas mulheres se encontrem pra jogar conversa fora do que um homem fazer o mesmo, embora esta seja, eu repito, uma exigência para ambos pelo simples motivo de que é assim que acontece com frequência na vida real.
Sendo assim, é razoável dizer que o teste de Bechdel encontra aportes no lado prático da literatura. Mas, entendido que sua pertinência está num apontamento que faz da realidade literária como um todo e de forma geral, e entendido que esse apontamento demonstra um ponto cego dessa mesma realidade literária, o teste de Bechdel serve como um convite ou, mais precisamente, como um fantasma. Ele não é uma palavra de ordem exatamente falando. O escritor pode continuar fazendo o que bem entender, pondo as personagens que der na telha. A única exigência, dum ponto de vista crítico, que podemos fazer com franqueza para o escritor é que ele escreva bem. Agora uma coisa é certa: é bom que o teste de Bechdel mostre esse ponto cego para que, pelo menos, um incômodo ético seja incutido no escritor. Um incômodo ético e estético, bem se entenda, pois demonstra que ele e seus colegas de ofício não estão aproveitando o material que a realidade, sempre tão generosa, dá. É como se preferissem as mesmas formas de olhar para a realidade, que, por infinitas que pareçam, ainda assim se demonstram insuficientes. Quando o teste de Bechdel acusa uma curiosidade atrofiada, isso deveria ser visto como um insulto, um chamamento para a briga. De minha parte, torço para que os escritores ouçam esse chamado.
Mas claro que, para tanto, é preciso que optemos ou por nos aventurarmos em todos os desníveis que o teste de Bechdel aponta (de que a mulher é sub-representada no terreno literário), ou então nós optamos por aquela conversa melindrosa do lugar de fala. Pois, o que pelo menos pra mim é digno de um "por um incrível que pareça", nós já adejamos e em alguns casos chegamos no estágio de dizer que, graças à ideia do lugar de fala aplicada no terreno literário, só uma mulher poderia realmente construir boas personagens femininas, falar de sentimentos femininos, essas coisas. Bem. Tirando o descalabro puro e simples que a ideia representa quando posta ao lado de grandes personagens femininas escritas por homens (isto é, as grandes heroínas de Balzac, Flaubert, Tolstói, Alencar, Machado, Henry James, Joyce etc), a ideia não combina com o teste de Bechdel porque seria uma maneira de dizermos que um dos lados da criação literária fica proibido, por assim dizer, de criar obras que passem no teste, ou, ainda que venham a criar obras que passem, esse lado sempre criaria obras que passariam apenas do ponto de vista formal, ou passando no teste graças a insípidas personagens secundárias, ou então graças a personagens femininas que no fim das contas nem são tão femininas assim, pois passaram necessariamente pela cabecinha de escritor do macho ali no fundo. Então já viu, né? Coerência, pessoal, coerência. A ideia do lugar de fala é uma ótima ideia para que o feminismo consiga se comunicar com aquela mulher por exemplo da periferia ou do campo, que acha que aquela opressão que ela vive todos os dias é tudo muito bem, é tudo muito normal, as coisas são assim e lugar de mulher é por aqui mesmo. O feminismo vem e, ao invés de, descendo dos altos, dentre nuvens brancas, proclamar a palavra de Beauvoir, ensina para essa mulher que com base na vivência dela, ela pode perceber que tudo aquilo, toda aquela opressão faz parte de seu cotidiano, e que não precisa ser assim. Aí sim o lugar de fala é uma maravilha. Mas se lugar de fala for traduzido como o biscoito da galera, o famigerado calaboquitos, aí nós temos problemas, e problemas graves, dentre eles o efeito colateral, o tiro pela culatra quando o teste de Bechdel entra em cena.
Então eu diria que: o teste de Bechdel aponta para coisas sérias. Não é elucubração vazia. Ele deve ser tratado como um voo a muitos pés de altura da realidade literária, capaz de nos mostrar, dali de cima, que existe um panorama meio vazio, meio homogêneo demais, quem sabe. Se a criação literária envolve um aspecto eminentemente criativo, envolve um embate com a realidade apaixonado, lúcido, instigante, os pontos cegos que o teste de Bechdel aponta não devem ser tratados com descaso. Será ótimo se ele se tornar numa espécie de fantasma ou espectro que ronde a mente do escritor, sem que esse espezinhamento alcance níveis excessivos tanto no debate crítico (isto é, que o teste de Bechdel crie críticos preguiçosos que se preocupem apenas em valorar a obra com base nesse teste, o que, conforme eu disse, não se sustenta) ou até mesmo que esse espezinhamento de algum modo atrapalhe o escritor, escape pela tangente e turve-lhe a percepção da realidade. Não é incluir mulheres a torto e a direito, na base do pé-de-cabra, arrombando espaço pra que uma e outra se encontrem, nem que seja no meio do Armageddon, pra conversarem sobre ginástica olímpica. É uma questão de consciência. É assim: abre o olho, ó.