Crítica, a tal da crítica.
A convite do professor Marcelo Ferraz, discursei um pouco (com direito a farda, cerimônia, tiros de canhão e uma bandejona de caranguejo depois) sobre crítica literária para uma tchurma de universitários. A matéria: Crítica Literária II. Sexta-feira. 15h. Eu fui com o coração na mão, já preparado mentalmente para as cenas de desolação que me aguardavam. Mas até que não. Pessoal receptivo. Interessado. A parte chata foi responder a perguntas como "Qual o nome do seu blog?" Oh céus. Eu realmente preciso tratar essa minha demência na olha de escolher títulos pras coisas. Custava ter escolhido algo como "Lavra de livros" ― "Lido com livros lidos" (a logo seria uma plaquinha simpática: LLL) ― "Lidas de páginas lidas"? (Nessas horas, convenhamos, é muito fácil bancar o concretista.) Mas enfim. O lance é que quando eu realmente tento fazer um bom trabalho, o que sucede é isso: escrevo o texto e tento decorá-lo, ou qualquer coisa parecida com isso. E o que saiu foi:
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Estamos aqui reunidos para celebrar a missa de sétimo dia da crítica literária. É com muita dor e sofrimento que nos lembramos dos momentos felizes que passamos juntos, aquele jeito faceiro que ela tinha de se esgueirar pela porta e dizer, toda triunfante, que reconheceu a qualidade de Clarice Lispector antes de todos, ou o pesar profundo quando se lembrava de quando desmereceu o Ulysses como uma obra pra adolescentes espinhentos (ou algo assim). Hoje vivemos tempos difíceis em que a única coisa que resta a uma pessoa alfabetizada é treinar suas raríssimas habilidades com bulas de remédio para que, assim, caso realmente aconteça um apocalipse zumbi, ela seja a única que consiga ministrar o antídoto ao invés de ministrar, sei lá, um laxante intestinal.
Parece brincadeira isso que estou dizendo, mas acreditem: tendo em vista o discurso que comumente é feito, eu estou, na verdade, exagerando um mínimo possível. Qualquer pessoa que você parar na rua, qualquer pessoa mesmo, logo após dizer que "Não, eu não quero fazer um cartão da C&A", dirá que a crítica e a literatura estão em crise, e que bom mesmo eram os tempos de antanho, quando as pessoas se reuniam em torno de uma fogueira e declamavam o Cemitério marinho uns para os outros: "Esse teto tranquilo, onde anda a pomba"...
Não precisa ser assim. Primeiro porque, como nota muito bem o professor João Cezar de Castro Rocha (UFRJ, acho), o discurso a respeito da crise da crítica e/ou da literatura é um discurso padrão, um discurso que surge a cada 20, 30 anos mais ou menos. Se você começar do texto que Gonçalves de Magalhães (aquele poeta romântico que nem seu professor leu) escreveu em 1836, Discurso sobre a história da literatura do Brasil, e for caminhando daí pras Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, de 20 anos depois (nosso amigo de Magalhães toma um pouco do próprio veneno, digamos assim), pra crítica que Joaquim Nabuco fez de Alencar (proclamando, de passagem, como quem não quer nada, a crise da crítica ― algo compreensível se considerarmos a mudança estética da década de 70 do século XIX) e praquele texto famoso do Machado, O ideal do crítico, em que ele diz que a tarefa do crítico é hercúlea porque ele tem que criar a crítica no ato mesmo da crítica, pra polêmica na Escola do Recife (José Veríssimo & aquela bomba-atômica chamada Sílvio Romero, basicamente), pro advento dos modernistas (em especial Mário de Andrade), pro advento das vanguardas na metade do século passado (e o discurso crítico de um Wilson Martins, e a rinha de galos da cátedra versus rodapé), pra discussão sobre a pós-utopia na década de 80 e... tcharã, pra hoje em dia... Bem. Voilà. Olha só como nós somos metódicos.
Esse é um jeito de olhar pra coisa. Tem também aquele outro mais gourmet, que começa lembrando que o vocábulo grego para "crítica" possui a mesma raiz etimológica de "crise". Depois, deixando a coisa ainda mais chata, ele nos diz do empreendimento kantiano, que unia uma coisa e outra com muita felicidade, isto é, crítica, para Kant (e foi isso o que ele basicamente faz a vida toda: Crítica da Razão Pura, da Faculdade de Julgar etc etc), é produzir crise, é você pegar todos os seus pressupostos, tudo o que sabe, e questionar, colocar em xeque.
Mas não é nem isso. Acho que a gente não precisa de tanto. Quando falamos na crise da crítica, a gente fala olhando se soslaio para os jornais, ali mais ou menos entre a coluna social e a foto de uma mulher seminua. O espaço da crítica no jornal tem diminuído muito, o que, na prática, quer dizer que cadernos culturais têm sido fechados e o espaço mesmo, aquele quadradinho com fundo colorido e com uma fotinha do livro ali no canto, sempre com as tão afamadas estrelas de classificação, esse espaço tem se tornado cada vez mais exíguo. Porque se é assim, a conclusão é óbvia: crise. Crise, crise, crise.
Realmente, olhando sob esse prisma o panorama é apocalíptico. Mas tão logo a gente sai da palestra, impressionados com aquele pós-doutor tão carismático que de uma hora pra outra ficou esmurrando a mesa e gritando mais alto do que a aparelhagem de som permitia, o que a gente faz é tirar nossos celulares do bolso e curtir a panela de brócolis fitness que nosso coleguinha acabou de almoçar. O que quero dizer é simples: não precisa parar de olhar pra tela do celular: continue olhando: a crítica está aí. No ambiente virtual. Em algum lugar entre os vídeos da Jout Jout e o pacote de filmes do Kid Bengala turbinado no cavalo de tróia.
Vamos ser sinceros. Estamos em pleno século XXI. A inclusão digital já é uma realidade. Se sua avó até hoje não aprendeu que segurando a tecla "Control" e apertando a tecla "+" ela vai conseguir aumentar as letrinhas do e-mail, então é melhor interpretar os sinais dos oráculos da internet e dar um basta. A gente nunca sabe: vai que ela aprende e passa a compartilhar vídeos do Revoltados Online. É simples: o ser humano colocou uma sonda sobre um cometa. Nós estamos tirando foto disso. (Fotos lindas, aliás.) Essa postura meio tapada para com o ambiente virtual já deu nos nervos. Ele não é simplesmente o futuro. Ele já é o presente e, sob certos sentidos, já tá produzindo passado.
É lá que o circo tá pegando fogo. A produção acadêmica está pouco a pouco se tornando inteiramente virtual, e isso por motivos óbvios: ninguém mais querer serrar uma floresta de eucaliptos felizes pra publicar o número 297 da Revista Acadêmica Tédio & Jurisprudência. Mas isso quanto ao terreno formal da coisa, todo adornado de uma heráldica ABNT, com aqueles títulos nobiliárquicos e tudo. No âmbito da boa e velha crítica amadora a coisa vai de vento em popa. Temos um número enorme de plataformas de publicação literária e crítica: basta que eu cite um site como o Letras in.verso e re.verso, a Modo de Usar, o Escamandro, a Germina, a Mallarmagens, o Rascunho, o Suplemento Pernambuco, a Sibila, a Cronópios, a Zúnai, a R. Nott Magazine, o Jornal Relevo, a Dicta & Contradicta...
Calma que não acabou não. Tem o pessoal do Literatortura, do Homo Literatus, tem a miríade de blogs e canais de YouTube... O panorama é outro. A função milenar da crítica é fazer com que as pessoas comprem livros. É uma posição mercadológica, portanto. Hoje a crítica, entendida num sentido formal, isto é, alguém com um canudo de papel escrevendo sobre a obra de Fulano de Tal, prêmio Nobel na Idade da Pedra Lascada ― hoje a crítica não consegue convencer ninguém a comprar nem mesmo a última figurinha pra completar álbum de futebol. Quem está ocupando esse espaço são os chamados Booktubers. Sim, gente como a Tatiana Feltrin, a tchurminha do Cabine Literária, a Mell Ferraz, a Isa do Ler Antes de Morrer... É essa galera que tá sendo um ponto de investimento interessante para as editoras. Não quer dizer que sejam exatamente críticos literários. Eu tenho uma ideia meio pessoal do que é crítica literária (isto é, pra mim é uma postura valorativa articulada), mas, de todo modo, a confiar apenas no que esses booktubers dizem, nem eles próprios se consideram críticos.
O que eles fazem é mais simples. Vivemos num país que não gosta de ler. Quem gosta realmente da coisa, ou seja, quem não fica se escudando demais nos subterfúgios do "não tenho tempo" (quando na verdade a pessoa tem sim: é só ela deixar de lado os encantos da novela do Candinho), fica um tanto quanto solitário. Claro que portar uma carteira da habilitação do Clube Intergaláctico de Leitores é, na prática, assumir-se como alguém retraído, alguém que vai preferir saber se o mordomo é ou não o culpado ao invés de malhar os glúteos dançando arrocha. Mas se você gosta de ler, você também quer alguém com quem falar de cheiro de livro, de capa de livro, de protagonista predileto, de verso que guarda no lado direito do coração, essas coisas. O problema é que como sobrevivemos num país que não gosta de ler, você achar alguém que realmente ache graça em ficar fingindo que abre livros só pra, na verdade, sentir o cheiro; isso é quase impossível, e você pode até ter amigos de verdade, amigos que riam de piadas sobre pum, mas amigos assim, ih, isso vai ser difícil. Mas aí você descobre que seu celular, além de mandar nudes, também grava vídeos, e lá está você, gravando e conversando com uma miríade de leitores polvilhados país afora do mesmíssimo jeito que seus avós descobriam essa mesma miríade ― só que na base da correspondência.
Ou seja: booktubers são pessoas que curtem trocar experiências de leitores. É por isso que a produção deles é peculiar. Eles falam de que livros compraram, eles criam TAGs com perguntas esquisitas baseadas em um tema aleatório (algo como "TAG Vida Adulta: 01 livro-IPTU: é obrigatório mas você odeia"). Vocês conseguem imaginar o Alcides Villaça iniciando uma coluna dizendo pra gente que acabou de chegar pra ele um livro maravilhoso sobre Drummond, um da capa amarela com marca-página em formato de máquina do mundo? Eu não. Mas os booktubers o fazem.
Daí entra a coisa da posição mercadológica. É simples: esses caras possuem um impacto forte. Fazem a economia girar: fazem as notas de cem saltitarem do seu bolso para o caixa e do caixa para o bolso das editoras e do bolso das editoras se metamorfosearem em biografias da Andressa Urach que, por sua vez, se transformam em exemplares enviados de forma gratuita para esses booktubers para que, assim, outras notas de cem acompanhem a Peregrinação Mensal & o Milagre do Salário Convertido em Brochuras. Eles fazem um vídeo recomendando um livro e as pessoas assistem, muitas se convencem da opinião do booktuber. Pras editoras, investir nesses caras é muito melhor do que investir em qualquer um de nós, acadêmicos frios que usamos palavras com mais de 5 sílabas numa resenha, ou, pior ainda, enfiamos um "subjetividades" logo no título do nosso texto enfadonho. E esse é o ponto. Pois, claro, existem também aqueles peixinhos do ambiente virtual que são na verdade uns belos duns tubarões, gente que tem feito um trabalho barra pesada. Vejam o caso da Camila von Holdefer, do blog Livros Abertos. Ela tem respeito. É uma crítica consolidada, e isso com, sei lá, 26 anos. Ela possui textos maravilhosos, alguns deles muito longos e instigantes, textos que conseguem pegar o gênero da resenha, o formato padrão da crítica e a própria crítica, aliás, e investigar seus limites. Ela tem uma resenha daquele Graça Infinita, do DFW, que ela estruturou à maneira de um poliedro de Platão, então são várias partes que você pode ler de muitas maneiras, dependendo do quão surrealista você acorde naquele dia. Noutra, ela escreveu uma resenha que espelha a estrutura do Jogo da Amarelinha do Cortázar. E por aí vai. É um trabalho fantástico.
O que nos leva a uma constatação meio óbvia mas que, enfim. Não é porque estamos falando da crítica veiculada no ambiente virtual que falamos, necessariamente, de crítica amadora. Nos dois sentidos do termo "amador" não dá pra dizer isso: 1) se por "amador" mencionamos alguém com pouca bagagem, eu acho melhor a pessoa quietar o facho porque tem gente no ambiente virtual que demonstra uma competência literária muito maior que sua dissertação hipocondríaca; e 2) se por "amador" mencionamos tudo o que não gera renda, tudo o que não gera uma posição mercadológica interessante... Bem. Já respondi essa. Não quer dizer que booktubers fiquem ricos com seus canais. Alguns até ganham uma graninha, mas nada que dê pra sustentar mais do que dois churrascos mensais na laje. O meu ponto é: trata-se de uma posição mercadológica interessante, adquirida graças ao fato de que, virtualmente, graças ao mecanismo aberto das parcerias com editoras, qualquer um pode entrar nesse jogo. Então isso cria um modelo interessante, onde as pessoas são instigadas a, mais do que apenas consumir o que esses booktubers produzem, também se tornarem booktubers eles mesmos.
No âmbito virtual, portanto, eu sou dos mais esperançosos. Mas não sou um amendobobo. Ainda tem muito o que ser melhorado. Existe uma relação muito insatisfatória com o ambiente virtual. Se você abre um site como o do Homo Literatus, você tem a impressão de que aquilo ali é uma extensão da Iniciação Científica: é um bando de texto cheio de formalidade idiota, um bando de texto todo quadradão que pelo amor do Santo, viu. A Camila von Holdefer possui um texto ótimo chamado "Um crítico, um papagaio e uma loira entram num bar", em que ela diz que a crítica precisa negociar mais com a pós-modernidade, precisa brincar mais consigo mesma, deixar de lado a seriedade. Esse é um ponto. Outro é o de que muita gente, claro, são leitores péssimos, e quando te vendem uma resenha, o que eles fazem na verdade é um vídeo em que eles contam um pouquinho da vida do autor (data de nascimento, data de óbito, outras obras e esse tipo de merda), resumem o enredo do livro o vídeo inteiro (com um temor infantil de dar spoilers) e só no final dizem, na velocidade da luz, suas impressões sobre a obra: se é bem escrita, bem estruturada, se tem cena marcante etc etc.
E tem também aquilo: o debate é parco. Todo mundo adora dizer que o diálogo é necessário, mas na hora de dialogar mesmo todo mundo escapa pela tangente e, quando você menos espera, alguém do lado esquerdo do bar arrebentou um "Fascista!" na cabeça do amiguinho enquanto o outro arranca a peixeira e brada: "Petralha!". É urgente entendermos que a crítica é debate. Vamos nos lembrar do que o bom e velho Machado de Assis dizia:
A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure produzir unicamente os juízos da sua consciência.
O bom crítico faz isso: ele tem a consciência limpa. Escrever um bom texto crítico não é provar por A+B que Gretchen é melhor que Inês Brasil. Você tem uma opinião e a coloca da maneira mais franca possível. Pois toda crítica é criticável e toda a crítica é criticável. Ou seja: ao invés de você simplesmente se escudar atrás do "Eu gosto" e proclamar que tudo o mais são opiniães, você argumenta a respeito do porquê achou que aquele livro ali é bom ou do porquê achou que ele é ruim. Se você faz isso, você deixa claro, você se abre pro debate. É uma postura franca, uma postura de coragem. Naturalmente que ela possui imperfeições e imprecisões, mas isso não nos leva à conclusão de que estamos numa cisterna de subjetividades. Nada disso, aliás, nega a objetividade fundamental da crítica: a objetividade de quem argumentou a respeito de algo, porque, diante de argumentos, tudo o que você tem a fazer é encarar aqueles argumentos e argumentar de volta. Aí o que acontece é que as outras pessoas criticam a sua crítica, e, assim, eis que surge um reino encantado onde unicórnios comem biscoito na nossa mão e onde os leitores deixam de lado opiniões automatizadas para que, sozinhos, descubram os encantos e aventuras de seguir sua própria consciência. Eu acho que compensa batalhar por uma coisa assim. Vamos fechar os olhos e, em um minuto de silêncio, imaginar a cena.