"Break, blow, burn", Camille Paglia.



O mais próximo que podemos chegar de um consenso a respeito do assunto parece que nós já chegamos: o de estarmos num estágio em que as pessoas parecem não saber mais como ler um poema. As maneiras, sempre mil, de colocar a obra poética a favor de uma causa qualquer, ou a maneira de se defender teses absurdas sem validade alguma dentro do plano textual, ou de se chegar até mesmo a excrescências estéticas como defender a censura pura e simples graças a uma vista grossa para com o conteúdo superficial de um texto... toda essa recusa em saborear a obra, em pelo menos alisar sua estrutura como quem se encanta pelo seu funcionamento ("I have tried to write concise commentaries on poetry that illuminate the text but also give pleasure in themselves as pieces of writing."); tudo isso parece parece ser eloquente demais a respeito do estágio a que chegamos, capitaneados que somos, segundo a autora, por teorias pós-modernas e desconstrucionistas.

É possível, claro (no geral, acredite em mim, é sempre possível), que Paglia esteja exagerando em relação ao panorama pintado, do mesmo modo que exagere na demonização das teorias que critica. Existem bons pontos levantados, por exemplo quando diz que o pós-estruturalismo "works only on narrative ― on the longer genres of story and novel. It is helpless with lyric poems, where the individual world has enormous power and mystery and where the senses are played upon by rythm, mood, and dreamlike metaphors." É, é, concordo, e concordo também quando ela aponta o New Criticism como um modelo pedagógica e literariamente mais instigante de análise de poemas. Mas existem pontos extremamente fracos, por exemplo:

Another of my unfashionable precepts is that, like Bloom and Kessler, I revere the artist and the poet, who are so ruthlessly "exposed" by the sneering poststructuralists with their political agenda. There is no "death of the author" (that Parisian cliché) in my world-view. Authors strive and create against every impediment, including their doubter and detractors. Despite breaks, losses, and revival, artistic tradition has a transhistorical flow that I have elsewhere compared to a mighty river.

A segunda metade do trecho é admirável, e possui minha anuência total. Mas o ponto da morte do autor pelos pós-estruturalistas (em específico Barthes e Foucault) não é matar o autor em prol de uma agenda política. Na verdade, a raiz da morte do autor proclamada pelos pós-estruturalistas está na falácia intencional (traduzindo, Nova Crítica): o autor não é mais o parâmetro hermenêutico central da obra; sua intenção, o-que-ele-quis-dizer não é mais a baliza indicadora da interpretação correta de um texto. Informações biográficas podem ser chamadas a baila, mas não mais de maneira a validar interpretações ou criar aquilo que Foucault chamou de função de autor. Além do mais, isso de que um nome como Bloom (que foi orientador de Paglia) revere the artist é muito questionável, haja vista que a teoria bloomiana não está muito preocupada com o poeta em si, com o artista, mas o poeta do poeta, o artista do artista. É uma teoria, aliás, que depende em larga escala da morte do autor, posto que ousa dizer que um poeta determinado sofre de angústia da influência mesmo quando ele, em entrevistas e sempre de forma zombeteira e defensiva, diz que não. Isso é irrelevante para a teoria de Bloom: se, lendo o texto, enxergamos essa angústia da influência, não interessa o que o poeta de carne e osso pense. Logo, o autor morre para que nossa interpretação venha à tona. Não há rusga nenhuma.





Que Camille Paglia, conhecida crítica de arte e uma persona non grata para uma boa parte da ala feminista, resolva como que nos reensinar a ler poemas, ou, ao menos, resolva mostrar a público alguns de seus poemas preferidos e discutir, pura e simplesmente, seu funcionamento; acho que isso por si só é algo que tem muito a dizer, ainda mais se posto ao lado de iniciativas parecidas vindas de gente como Harold Bloom (no ensaio The Art of Reading Poetry, de 2005, antes publicado como introdução a The Best Poems of English Language, de 2004) e até mesmo Terry Eagleton (How to read a poem, de 2008).

É um livro agradável, em alguns momentos surpreendente e brilhante. Não se engane muito quanto a este of the world's no título: você só encontrará poemas de autores de língua inglesa. Será melhor você prestar mais atenção a of the. É uma seleção rigorosa, e, quanto mais se encaminha para seu final (e, portanto, se distancia daqueles nomes que provavelmente o leitor de antemão conhece: Shakespeare, Blake, Yeats, Plath), mais se torna satisfatória por revelar bons poemas de autores até então desconhecidos (Roethke, Snyder, Pomeroy). Claro que isso não queira dizer que Paglia é uma entusiasta amendoboba da poesia contemporânea: "I find too much work by the most acclaimed poets labored, affected, and verbose, intended not to communicate with the general audience but to impress their fellow poets." Um pouco depois, num comentário que não deixa de ser instigante: 

In gathering material for this book, I was shocked at how weak individual poems have become over the past forty years. Our most honored poets are gifted and prolific, but we have come to respect them for their intelligence, commitment, and the body of their work.

De todo modo, a questão da seleção também se dá no sentido de que você deve se lembrar que, apesar de rigorosa, o of the do título está aí pra te mostrar que ela possui suas ausências, por exemplo Milton e Eliot. Não que isso chegue a ferir seu escopo. É uma seleção um tanto quanto pessoal mas que gira em torno de poemas classificados como poemas de excelência. A justificativa para tanto são, evidentemente, os próprios comentários de Paglia, que, em casos como A Mexican Guitar de Frank O'Hara, se fazem especialmente necessários graças ao conhecimento e à vivência (!!!) de Paglia daquele mesmo período retratado, capaz de esclarecer até mesmo gírias usadas no texto (embora, a esse respeito, num comentário na introdução do livro que muito me agrada, Paglia deixe claro que a única coisa que um leitor de poesia realmente precisa é de um dicionário).

É um caso de necessidade certo modo extremo, esse do poema de O'Hara, pois estamos falando de referências próximas a nós, por exemplo a O Mágico de Oz (mesclado com As Mil e Uma Noites) em versos como "Arabian day! / she clicked her rhinestone heels! / vistas of lace!" Mas, demonstrem-se especialmente úteis para o leitor ou não, a razão de ser dos comentários está na argúcia. As ferramentas de leitura usadas no geral são bem parecidas: isso de ir verso por verso, tentando captar a ideia apresentada e a maneira como esse verso se contrapõe aos anteriores, em específico aquela famosa tensão que Cleanth Brooks usou ao caracterizar o poema como uma urna bem lavrada (well wrought urn). Nem sempre Paglia se predispõe a olhar para o ritmo do poema de maneira mais detida, ou para sonoridades que sejam; às vezes ela faz, mas às vezes, quando poderia ter feito, não encontramos comentários seus a respeito (por exemplo, em The Chimney Sweepers, de Blake, os versos 3 e 4, que podem ser lidos como imitando o barulho da limpeza sendo feita graças às paranomásias weep e sweep e à aliteração em S: "Could scarcely cry " 'weep! 'weep! 'weep! 'weep!" / So your chimneys I sweep & in soot I sleep.").

O que não chega a ser exatamente um problema. São leituras bem realizadas, leituras firmes que, é verdade, por vezes não espantam muito (por exemplo a leitura que ela faz do red wheelbarrow de William Carlos Williams), mas que, por vezes, tão alta é a segurança e sua postura esclarecedora diante do poema, ainda que chegando a uma interpretação já conhecida por nós, ainda assim ela te surpreende, o que é visto em especial na interpretação dela para os poemas de Stevens (quando por exemplo ela menciona o jarro de Teenesse como uma paródia da urna grega de Keats) mas também na interpretação da segunda parte do Kubla Kahn de Coleridge como uma alegoria estética romântica: "Romantic inspiration is sporadic, volcanic, and explosive. Art making draws on primitive, amoral, erotic energies, whose unpredictable, occult workings surprise even the artist."

Os bons momentos, todavia, são reveladores no seu mais alto grau. Analisando o primeiro soneto sacro de Donne, Paglia, perto do final, diz:

Pictorially, the poem is a cruciform emblem. The earthly horizontal ― Donne's path from yesterday's fleshpoets to tomorrow's tomb ― is crossed by the embattled vertical extending from heaven to hell.

Isso é genial. A principal valia de um livro desses reside, claro, na confiança que é capaz de transmitir, quem sabe até mesmo no convite que faz para que o leitor faça o mesmo. As análises em si, as interpretações chegadas são o de menos. Torná-las notas de rodapé para um trabalho acadêmico qualquer é o de menos. O ânimo que um livro desses é capaz de demonstrar é o que importa. Mas é isso e algo além: as novas técnicas de leitura que ele te ensina. Porque eu tenho certeza que nunca mais serei um leitor de poesia do mesmo modo depois que aprendi a importância das assonâncias e do recorte métrico interno do verso com, por exemplo, Dámaso Alonso e Augusto Meyer. Todo poema diante do qual me vejo eu tento aplicar essas técnicas de leitura que aprendi com esses caras. É o mesmo com Paglia. A maneira como ela enxerga o movimento do poema como simbolizando uma cruz é genial; é um insight tão revelador que você passa a carregá-lo consigo, e, diante de todo poema que daqui pra frente, você tentará descobrir se ele também se encaixa nessa mesma ideia, se dá pra enxergar algo parecido com ele.

Existem outros momentos assim espalhados ao longo da obra. Comentando o poema Safe in Their Alabasters Chambers, Paglia, focalizando os dois últimos versos ("Diadems ― drop ― and Doges ― surrender ― / Soundless as dots ― on a Disc of snow"), nota não apenas a aliteração intensa ("nine d's tick off time, while nine s's create a hush and elict our exhalation") como nos convida a observar o movimento rítmico e temporal que o poema incute: "Time surreally speeds up, while the reader's perception slows, thanks to Dickinson's idiosyncratic use of dashes, six in all." Comentando o poema The Flea, também de Donne, ela chama a atenção para o fato de que as três estrofes do poema são como cenas de uma peça e de que "In the pause (a heartbeat) between stanzas, there's activity we don't see." Comentando o design do soneto 73 de Shakespeare em contraposição ao soneto 29, ela nota como o paralelismo do primeiro, apurado, se choca com a frase caudalosa e melindrosa do último. Do mesmo modo, a respeito do terceiro poema da sequência Love, de George Herbert, ela diz que as três estrofes do poema correspondem à Trindade Santa. Sobre The Second Coming de Yeats, além de notar que embora não apresente rimas completas, o poema apresenta algumas coincidências esporádicas e parciais como gyre/falconer/everywhere ou hold/world/drowned, nota que

It is structured instead by dramatic visuals and emblematic choreography. There are two main movements: a huge, expanding circle (the ascending falcon) and an arrowlike, linear track (the beast  bound for Bethlehem). Then two smaller ones: a pendulum arc (the rocking cradle) and an exploding pinwheel (the reeling desert birds).

Ou sobre Jazzonia de Langston Hughes:

Language turn iridescent to captuyre the fluidity of the music: the "silver tree" becomes a "singing tree" and finally a "shining tree" (1, 7, 14). Similarly, the "shining rivers" become "silver rivers" (2, 8, 15). The tree represents the genealogy or family tree of black music, while the shining river is the emotional continuity or soul power of black culture.

 Esse vigor que podemos ler na escolha do título do livro ― uma escolha eu considero simplesmente genial ― está presente em todas as leituras. São exemplares. Insuflam coragem. Ainda que estivéssemos em tempos de vacas gordas para com isso de ler poesia, seria ótimo que pudéssemos contar com iniciativas assim. Afinal de contas, se me for dada a palavra nestes minutos finais da resenha, a impressão de que a leitura de poesia é uma arte esquecida (o que a simples escolha do termo "arte" para qualificá-la, como se ela tivesse se tornado um arcano, um tesouro escondido numa ilha secreta, bem o atesta) parece ser realmente a que fica, se considerarmos não só o baixo número de leitores que vão lá e pegam poemas para ler mas também o número dos que resolvem pôr no papel a leitura que fazem de poemas. É, é, a impressão parece ser bem essa mesmo. Trocando em miúdos, é aquela história: aquela!..., de que teríamos mais poetas do que leitores. Parece ser um absurdo isso daí, e eu durante muito tempo achei que fosse apenas um exagero, mas, se você considerar que existem excrescências Pindorama afora que escrevem poesia mas não a leem.... Bem, aí a conta não fecha mesmo. Mas a questão é que, considerando esse pandemônio (e a tentação maior é a de fazer o que estou fazendo: proclamá-lo), um livro como esse de Paglia tem de ser recebido com alvíssaras, ainda que seu conteúdo fosse chinfrim. Não que eu ache que ele seja ― dei mostras de que existem momentos brilhantes nas leituras ―; veja você, apenas, que estamos mal das pernas, e achar o prazer, saborear um poema. lamber os beiços mais do que degluti-lo, não reduzi-lo a esse exercício entediante de epigrafe em textos quaisquer (por exemplo aquela praga de iniciar uma análise política citando um poema para debater o como ele é representativo, o como ele traduz essa balbúrdia em que vivemos)... Ahhh, que merda, viu. Pelo andar da carruagem vou acabar é reescrevendo o prefácio todo eu mesmo. O fato é: leiam o livro. Pronto.